“A Igreja brasileira precisa recuperar a sua voz”

Sandro Baggio, em entrevista, fala sobre a necessidade de nos desvencilharmos de rótulos e equilibrarmos discurso e ações

No imóvel em que a comunidade cristã Projeto 242 reúne-se no bairro da Liberdade, em São Paulo, o Martureo conversou com o missionário Sandro Baggio. Esta descrição – “missionário do Steiger Internacional servindo como pastor-mentor” na igreja (agora) batista –  encontramos em algumas das ‘bios’ de Baggio em pesquisa no Google.

Conhecido por muitos como fã do grupo musical do U2, com voz mansa mas firme, o também escritor (ele tem 2 livros publicados) cursou Teologia com ênfase em Missiologia no Seminário Missio Teológico – SEMITE (RJ, 1988), fez o treinamento de líderes do Instituto Haggai em Maui (Havaí), e serviu como missionário junto a Operação Mobilização na Europa e a bordo do navio Logos II.

Vamos à entrevista!

 

Martueo (M) – Como você definiria Missões?

Sandro Baggio (SB) – Prefiro a palavra Missão no singular. Trata-se do que Deus está fazendo, por meio de Jesus, de sua obra redentora e reconciliadora da qual somos beneficiários e temos o privilégio de participar.

 

M – Como a Igreja participa da Missão?

SB – Concordo com Chris Wright quanto à abrangência da Missão de Deus. Há o aspecto da proclamação, do que chamaríamos de evangelismo, mas as obras, a promoção da justiça social, não podem ser excluídas, bem como outros aspectos. E a liderança evangélica brasileira parece estar perdida, confusa, não tem claro, sequer, o papel da igreja na Missão de Deus. E, em vez de dialogar, de mergulhar fundo nisso, há uma discussão de ideologias, inclusive com viés político e polarizações, e rotulações, isso é de direita ou de esquerda, é progressista ou conversador, e por aí vai.

 

M – Muita falação?

SB – Precisa haver diálogo sério. Timothy Keller defende a ideia de uma rede de colaboração entre as igrejas, um ecossistema pelo evangelho como ele menciona em seu livro Igreja Centrada, o movimento City to City almeja isso. O Compromisso da Cidade do Cabo, do Movimento de Lausanne, completa 10 anos em 2020. Avançamos?

 

M – Dados estatísticos mostram que a igreja evangélica brasileira vem crescendo em número de fiéis nas últimas décadas, e os evangélicos devem ser maioria no País em alguns anos. Como você enxerga isso?

SB – Ouso dizer que boa parte desse número não se deva a um crescimento de fato, mas a um inchaço. As palavras atribuídas a John Stott valem para a igreja brasileira evangélica de hoje: “Quilômetros de extensão e poucos centímetros de profundidade”. O conhecimento das Escrituras é raso, o que gera muitos problemas. Há uma ênfase em triunfo, vitórias, curas, milagres, prosperidade, em uma escatologia já realizada. O crescimento da Igreja deveria gerar diminuição da corrupção, da desigualdade social, e ela aumentou segundo o estudo “A Escalada da Desigualdade” da FGV. Creio que muitos que lerão a entrevista vão me rotular como de esquerda, ou do time da Missão Integral, por essa frase.

 

M – Toda igreja local deve se envolver com as questões sociais, então?

SB – Creio que a vocação da Igreja seja uma só, e o contexto em que está inserida, seu público imediato, norteie boa parte de suas ações. Quando estudamos a história da Igreja, identificamos que nos primeiros séculos ela levou em conta os párias da sociedade de seu tempo, bem como Jesus em seus ensinamentos e ações. O que acontece com a Igreja hoje na Europa? As gerações anteriores não cumpriram bem a tarefa de transmitir a fé para a geração atual, e o secularismo é uma realidade com que ela tem de lidar, bem como o fluxo migratório. No Brasil, não há dúvida que a desigualdade social, a pobreza e a miséria sejam problemas sérios que devamos combater, não se trata de uma pauta política. Nesse sentido, não é colocar foco na questão social, mas entender a obra redentora de Cristo em toda a sua amplitude, olhar para a ação de Deus em todo o fio da história, desde o Antigo Testamento, com o chamado de Abraão e a nação de Israel, inclusive, até o Novo Testamento. Dessa compreensão mais ampla do que Deus está fazendo na história é que surge, inclusive, o despertar para as igrejas locais envolverem-se, também, com o aspecto transcultural da Missão, muitas vezes com projetos distantes geograficamente. Por que investir em algo que não traz mais pessoas para a minha comunidade? Ora, a Missão de Deus vai muito além da minha comunidade. Outro aspecto que eu acho importante destacar é que, quando a Igreja envolve-se com as questões latentes de seu contexto, ela ganha voz junto à sociedade. Ela ama, ela fala, ela faz, e as pessoas prestam atenção, não só as que estão sendo alcançadas diretamente por alguma ação ou projeto, mas diferentes grupos que, de outro modo, considerariam o evangelho apenas um discurso. A Igreja brasileira precisa recuperar a sua voz.

 

M – O Brasil precisa de mais igrejas?

SB – Se eu não acreditasse que sim, não ministraria a disciplina sobre plantação de igrejas no Seminário Teológico Servo de Cristo (risos). Igrejas novas, jovens, têm mais vigor para a evangelização. Pesquisas mostram que, após 4 ou 5 anos, as igrejas perdem boa parte de sua força evangelizadora inicial. Igrejas novas têm uma rede de contato maior com pessoas que não conhecem o evangelho. Além disso, igrejas recém formadas têm uma conexão melhor com as novas gerações. E tudo isso tem a ver com a Missão de Deus.

 

M – Por que o islamismo tem se expandido?

SB – É um reflexo, dentre outras coisas, de um dos aspectos da pós-modernidade, o vazio de verdade. As pessoas precisam de uma direção, algo em que possam crer, confiar. O islamismo apresenta uma doutrina clara, os cinco pilares da fé islâmica são muito bem definidos e fáceis de assimilar. Jonathan Sacks, rabino ortodoxo britânico e filósofo, escreve e fala sobre isso. Segundo ele, o secularismo não venceu, e as pessoas precisam agarrar-se a algo.

 

M – Tiramos alguma lição disso?

SB – Os pilares da fé cristã devem estar claros e ser apresentados de forma clara, não acanhada. Deus não é uma harmonia, uma inspiração, uma energia. Deus é o Criador de todas as coisas. Jesus Cristo é o Filho de Deus. Acreditamos na vida eterna. A questão do transcendental, do mistério, do sobrenatural, não pode se perder jamais. Ao mesmo tempo, gosto da metáfora da pipa, ela está no céu, mas conectada com o chão, a tensão da linha é imprescindível para que ela se mantenha no alto. Temos uma mensagem transcendental, mas os pés no chão. O invisível, mas visível. Olhamos para o céu, mas não podemos deixar de enxergar a realidade que nos cerca.

 

M – Sua geração cumpriu bem o papel de formar uma nova geração de líderes na Igreja brasileira?

SB – Com pesar no coração, digo que não. Nos anos 1970, 1980, vivemos no Brasil um despertar para a Missão de Deus, muitos jovens brasileiros foram atuar em outros países, com povos não alcançados, inclusive, por meio de organizações como Operação Mobilização (OM), JOCUM, Missão Antioquia, Sepal etc. Nos eventos que reuniam os líderes da Igreja brasileira, o desejo de falar de Cristo, de evangelizar, era latente. Parece-me que hoje vivemos uma crise de identidade.

 

M – Como reverter esse quadro?

SB – Há coisas muito positivas acontecendo, é claro. O trabalho do Perspectivas Brasil é um exemplo e há muitos brasileiros participando das jornadas ao redor do País. Recentemente, o evento The Send Brasil lotou 3 estádios. Apesar de eu considerar a iniciativa controversa em alguns pontos, ela mostra que existe um anseio dos jovens que não deve ser desprezado. A Igreja Presbiteriana A Ponte, em Recife, cujo pastor é o jovem Guilherme Franco, é um exemplo de uma comunidade engajada na amplitude da Missão de Deus. Deixo aqui aos líderes duas recomendações de leitura para um início de discussão, de diálogo, sobre alguns dos tópicos sobre os quais falamos: A Missão da Igreja Hoje, de Michael Goheen; e O Segredo Revelado, de Lesslie Newbigin.

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