A Política Internacional, as Ramificações do Pensamento Dispensacionalista Radical e a Ausência de Paz no Oriente Médio

O dispensacionalismo é um sistema teológico bastante criticado. Ainda assim, muitos evangélicos, especialmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil e em outras partes do mundo, são dispensacionalistas ou são influenciados por suas vertentes, mesmo que não conheçam a palavra ou o seu conceito.

Este texto  não tem a intenção de analisar se o dispensacionalismo é ou não resultado de uma hermenêutica correta, nem defender a perspectiva no outro extremo do espectro teológico, a saber, a Teologia da Aliança. Nem espero que os dispensacionalistas mudem suas convicções. Afinal, trata-se de uma escola de pensamento, uma entre muitas. O que pretendo apresentar são os efeitos da teologia dispensacionalista e seus subprodutos:

(a) na política do mundo e do Oriente Médio,

(b) na vida da Igreja no Oriente Médio,

(c) no pensamento e prática missiológica da Igreja Ocidental.

Isso para que os que têm um ponto de vista influenciado pelo dispensacionalismo possam minimamente considerar se não há uma maneira bíblica de evitar a dor que, direta ou indiretamente, está sendo causada a milhões de pessoas no Oriente Médio e nos seus arredores.

Minha esperança também é a de que este texto, mesmo que de forma modesta, encoraje a Igreja Brasileira em seu esforço missionário no mundo muçulmano em geral, e no Oriente Médio em particular.

Todavia, é necessário apresentar uma ressalva importante antes de desenvolver o tema. Na sequência, veremos alguns acontecimentos lamentáveis que aconteceram nas últimas décadas por conta da iniciativa de evangélicos com influências dispensacionalistas, especialmente nos Estados Unidos. É de suma importância levar em conta que a popularização e a ampla disseminação do dispensacionalismo apoiam-se em um forte sistema que envolve um grande número de pessoas e também a mídia. Seu avanço tomou proporções gigantescas. Tornou-se quase impossível falar a respeito de uma única versão de dispensacionalismo. Como consequência, nem todos os dispensacionalistas clássicos estão necessariamente de acordo com tudo o que se desenvolveu ao redor desse sistema teológico, nem com tudo que tem sido dito e feito como resultado de convicções escatológicas encontradas em ambientes teológicos influenciados por essa abordagem.

Outrossim, é importante ressaltar que a distinção entre diferentes conceitos –

dispensacionalismo pré-milenista e pré-tribulacionista, restauracionismo, sionismo cristão, dispensacionalismo radical e até mesmo cristianismo evangélico – nem sempre é clara, e, nas próximas linhas, os termos podem ser usados de modo intercambiável.

Vale dizer, também,  já de início, que eu estou totalmente de acordo com o direito de o povo judeu ter o seu lar na Palestina, apesar de não concordar com a forma como o  moderno Estado de Israel tem atuado em relação ao povo árabe palestino, que habita há mais de mil anos na ‘Terra Prometida’. Finalmente, é importante esclarecer que as opiniões expressadas neste artigo são de minha responsabilidade, e não representam, necessariamente, a opinião das organizações cristãs com as quais estou envolvido.

 

Definindo o dispensasionalismo

As principais características do que veio a ser definido como dispensacionalismo clássico ou normativo[1] (que inclui as posições pré-milenista e pré-tribulacionista[2]) desenvolveram-se no decorrer de anos, e, ainda que haja discordâncias, o conceito pode ser sumarizado da seguinte maneira:

  • Deus em sua soberania decidiu que a revelação e a execução de seu plano para a humanidade aconteceriam através de diferentes dispensações, introduzidas por Deus mesmo, em diferentes épocas. Uma dispensação pode ser concisamente definida como “uma economia[3]discernível na execução do plano de Deus”[4] que pode “prevalecer em uma época especial” mas “não necessariamente em outra”[5]. Os dispensacionalistas nem sempre estão de acordo sobre quantas são as dispensações, mas a maioria parece crer em sete.[6][7]Eles entendem que o alvo da história é “o estabelecimento do reino milenar na terra […]”.[8]
  • Os judeus continuam sendo entendidos como o povo escolhido de Deus que irá desfrutar na terra as promessas ainda não cumpridas do Antigo Testamento.[9]Por conseguinte, a primeira das três condições sine qua non (ou a primeira das “pedras angulares”) do dispensacionalismo é a descontinuidade clara entre Israel e a Igreja. A Igreja está limitada apenas à presente era. Os judeus, enquanto nação, não pertencem ao mesmo grupo em que está a igreja, ou os gentios. Os que pertencem à Igreja são diferentes dos santos que morreram antes de Cristo ou dos de uma dispensação futura. A Igreja do Novo Testamento não é o “Israel nacional”. Logo, não é o cumprimento das promessas dadas a esta nação. Deus tem seu povo redimido no decorrer das eras. Entretanto, o dispensacionalismo nega fortemente que isso constitui um mesmo povo. Eles creem nos “povos” de Deus.[10] Para os dispensacionalistas, “a doutrina dos dois povos… deve ser sustentada eternamente […]”.[11] Conforme Chafer, um grande defensor do dispensacionalismo,

É tão ilógico e enganoso argumentar que o judaismo e o cristianismo irão se fundir como discutir que o céu e a terra deixarão de existir como esferas separadas. O dispensascionalismo tem sua base e é entendido na distinção entre judaísmo e cristianismo.[12]

O dispensacionalista crê que através das eras Deus está executando dois propósitos distintos: um relacionado à terra com pessoas terrenas e pautados por objetivos terrenos, que é o judaísmo, enquanto o outro está relacionado ao céu com pessoas celestiais e está envolvido com objetivos celestiais, que é o cristianismo […].[13]

  • Quando a atual dispensação (conhecida como Dispensação da Graça ou Era da Igreja) acabar, o “arrebatamento”[14]irá acontecer. Jesus chamará os crentes, o que incluirá os santos ressuscitados de dispensações passadas e os vivos da dispensação presente, para o encontro com ele nos ares[15]. Eles adquirirão um corpo celestial e viverão no céu com Jesus.
  • O arrebatamento marcará o início da Grande Tribulação, um período de sete anos no qual o anticristo se manifestará e “conseguirá estabelecer-se firmemente na Palestina como um líder religioso e politico”.[16] Durante esse tempo o terceiro templo será reconstruído em Jerusalém, e o povo judeu mais uma vez viverá de acordo com a Lei Mosaica.[17]
  • Ao final dos sete anos da tribulação, haverá a grande batalha do Armagedom, quando as nações se reunirão para combater Israel.
  • Nesse momento, Jesus voltará para defender Israel, derrotar o anticristo e amarrar Satanás por mil anos.
  • É aí então que a última dispensação, o Milênio, terá lugar:
    • Será um período que durará literalmente mil anos e Jesus reinará sobre toda a terra.[18]Seu trono será em Jerusalém.
    • Imediatamente antes do início desse período, os judeus de todos os cantos do mundo serão regenerados e restaurados, e retornarão à terra de Israel.[19][20] Judeus e gentios serão “julgados para assegurar que apenas os que creem entrarão no reino.”[21]
    • De acordo com alguns dispensacionalistas, durante esse tempo, os que foram arrebatados antes do início da Grande Tribulação terão retornado com Jesus em corpos glorificados e reinarão com ele. Assim, de acordo com essa perspectiva dispensacionalista, durante o Milênio haverá na terra pessoas com corpos celestiais e com corpos terrestres (judeus e gentios que sobreviveram à Grande Tribulação).[22][23]Outros, como Dwight Pentecost, são da opinião que, durante o Milênio, apenas os sobreviventes da Grande Tribulação estarão na terra, com seus corpos físicos, e viverão sob o senhorio de Jesus.[24]
    • Devido ao fato de os dispensacionalistas enfatizarem muito a necessidade de utilizar uma interpretação da Bíblia que seja “literal, plena, normal ou histórico-gramatical”[25][26] para que a “igreja não roube as bênçãos de Israel”[27], será durante o Milênio que as promessas parcialmente cumpridas ou ainda não cumpridas do Antigo Testamento (especialmente aquelas concernentes à Aliança Davídica, como a posse incondicional e permanente da terra e suas fronteiras geográficas) serão completamente cumpridas, e a nação de Israel finalmente terá sua plena extensão[28], que será “[…] do rio do Egito ao grande rio, o rio Eufrates […]”.[29][30] Outra promessa a ser cumprida durante o Milênio é Jeremias 31.31-34, que menciona que a lei de Deus será gravada nos corações dos judeus.
    • No final do Milênio, Satanás será liberto por pouco tempo, e haverá um tempo de rebelião.[31] Entretanto, Jesus triunfará.
    • Quando o Milênio acabar, haverá um novo céu e uma nova terra. Não haverá necessidade de um templo, porque Deus mesmo será o santuário.

Se formos resumir esse sumário em poucas palavras, provavelmente não haverá melhor maneira que citar Hal Lindsay, um dos mais importantes popularizadores do dispensacionalismo do século 20:

Crucial para uma leitura dispensacionalista da profecia bíblica é a convicção que o período da tribulação é iminente, juntamente com o arrebatamento secreto da igreja e a reconstrução do templo judeu no lugar do, ou ao lado do Domo da Rocha. Isso assinalará o retorno do Senhor para restaurar o reino a Israel, centrado em Jerusalém. Esse evento pivotal também é entendido como o gatilho para o início da Guerra do Armagedom, na qual grande parte da população do mundo, juntamente com muitos judeus, irão sofrer e morrer.[32]

 

As consequências práticas das crenças dispensacionalistas no Oriente Médio

Tal como anteriormente mencionado, não é possível aplicar “culpa por associação” a todos os dispensacionalistas pelo que, no decorrer dos anos, ativistas evangélicos extremistas (com convicções dispensacionalistas) têm causado na vida de tantas pessoas. A verdade da questão, todavia, é que, mesmo quando considerando que não devemos generalizar, há importantes implicações do que vimos acima:

  1. Para os dispensacionalistas, o alvo último da história é o estabelecimento de um reino milenar terreno, quando Jesus reinará a partir de Jerusalém. Depois disso, haverá novo céu e nova terra, o estado eterno.
  2. Deus trata a Igreja e Israel de maneiras diferentes. É como se existissem dois caminhos, um espiritual para a Igreja, e um terreno para os judeus.
  3. A implicação prática dos dois pontos anteriores é que o povo judeu e o Estado de Israel serão atores importantes nos planos de Deus para o fim dos tempos.
  4. Por extensão, de acordo com a visão dispensacionalista, não poderia haver o cumprimento dos últimos dias se os judeus não tivessem iniciado a volta para a Terra Prometida, e o Estado de Israel não tivesse sido organizado, ainda que o cumprimento pleno das promessas do Antigo Testamento não vá acontecer até que o Milênio seja estabelecido. Dessa forma, esses eventos sinalizam, por assim dizer, o início do fim.
  5. Com a criação do Estado de Israel, foram estabelecidas as condições para o arrebatamento da Igreja, que será seguido por um período de grande tribulação, a manifestação do anticristo e a edificação do terceiro templo ao lado ou onde está o Domo da Rocha, um lugar considerado sagrado pelos muçulmanos, em Jerusalém.
  6. Israel, sendo tão central para os planos de Deus no que concerne ao desenvolvimento escatológico, deve ser apoiado e protegido de seus inimigos a qualquer custo.
  7. Essa percepção tem feito com que cristãos influenciados pelo dispensacionalismo queiram resolver a questão por sua própria conta.[33]
  8. Um dos resultados tem sido a “indústria escatológica”,[34]que tem influenciado milhões de pessoas ao redor do planeta. Na euforia surgida com a criação do Estado de Israel, que foi entendido como o cumprimento das profecias e o início do fim, inúmeras organizações cristãs com convicções sionistas foram organizadas, especialmente nos Estados Unidos, com o propósito de persuadir a opinião pública, fazer lobby no congresso, pressionar o governo, e apoiar, de maneira prática (inclusive financeiramente), a imigração de judeus para Israel. Esses novos imigrantes judeus são muito frequentemente estabelecidos em assentamentos ilegais que são construídos sistematicamente em terras palestinas.[35] Isso aumenta a tensão entre judeus e árabes, e torna o processo de paz ainda mais complexo e distante, para não dizer impossível.
  9. Não se pode esquecer que todos os pontos mencionados têm levado milhões de evangélicos ao redor do mundo a usar, quase como um mantra, versículos como: “Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem […]” (Gênesis 12.3) e “Sejam abençoados os que os abençoarem, e amaldiçoados os que os amaldiçoarem […]” (Números 24.9), ambos referindo-se às promessas de Deus aos descendentes de Abraão e Isaque no Antigo Testamento.

Assim, o dispensacionalismo tem contribuído para que cristãos creiam que o Estado de Israel é intocável, a despeito de consequências éticas, morais e humanitárias. Esse é exatamente o problema central.

Não é de surpreender que os líderes do grupo palestino Hamas estejam acompanhando com grande atenção a aliança entre cristãos ocidentais e o Estado de Israel. Um de seus clérigos, Ahmed al-Tamimi, disse que o sionismo cristão era “o maior perigo à paz, justiça e verdade mundiais”.[36]

Grace Halsell, tentando entender o apoio que alguns segmentos evangélicos têm dado a Israel, declara que na opinião dela a mensagem do sionismo cristão é: “Toda ação executada por Israel é orquestrada por Deus e deve ser tolerada, apoiada e até mesmo elogiada por nós”.[37]

Por que eles fazem tais afirmações? Em parte, porque foi com o apoio de cristãos com crenças dispensacionalistas que o Estado de Israel foi criado em condições consideradas injustas por muitos. Em 1947, a população judaica na Palestina era claramente uma minoria (32%) em relação aos árabes, e possuía apenas 6% das terras. Porém, o plano da Organização das Nações Unidas (ONU) que aprovou a criação de Israel concedeu 56 % da terra ao povo judeu.[38] Os palestinos, como era de se esperar, rejeitaram a decisão da ONU. “Isso aconteceu, em parte, porque se percebeu que o plano fora imposto sem consulta, e porque a divisão da terra pareceu injusta e vantajosa para os judeus. Uma guerra civil irrompeu com os dois lados aumentando suas atividades terroristas”.[39]

O resultado foi nada menos que uma catástrofe humanitária. Durante a guerra civil, milhares de vidas foram perdidas, nos dois lados. Como resultado dessa guerra em 1947, e da guerra entre árabes e israelenses em 1948, logo após a formação do Estado de Israel, cerca de 750 mil palestinos (de um total de 1.2 milhão) tornaram-se refugiados na Transjordânia, Líbano, Síria, Egito e no que restou de terras árabes na Palestina.[40]

Em meio a tal tragédia, um importante aspecto permaneceu desconhecido por muitos cristãos ocidentais: entre os árabes palestinos, havia cristãos. De acordo com a informação disponível, em 1948, 59% da população de Jerusalém e Belém, respectivamente, era formada por cristãos.[41] “Discriminados como cristãos e perseguidos como árabes”, em 1988 não havia mais que 10% de cristãos na Palestina.[42] Conversando com alguns líderes árabes palestinos cristãos há alguns anos, eles afirmaram crer que hoje não haja mais que 2% de cristãos entre os árabes palestinos cristãos. Muitos deles saíram da região, principalmente por causa da pressão social e econômica imposta pelo governo israelense.

Como os refugiados nunca obtêm permissão para voltar, a despeito das resoluções das Nações Unidas ordenando Israel a conceder tal permissão ou ressarci-los financeiramente,[43] ainda há milhões de árabes palestinos (muçulmanos e cristãos) vivendo como refugiados em diferentes partes do mundo, especialmente no Líbano e na Jordânia. Um grande número (diz-se que pelo menos 1 milhão no Líbano) vive em condições sub-humanas nos assim chamados campos de refugiados, sem nacionalidade, dignidade, e em total desamparo.

Mas quando o Estado de Israel recebe apoio sem reservas de líderes evangélicos bastante renomados e por meio de publicações que defendem certos aspectos teológicos promovidos, pelo menos inicialmente, pela hermenêutica dispensacionalista (ou, no mínimo, sionistas), é praticamente impossível que multidões de evangélicos não sejam influenciadas e se mostrem indiferentes à situação dos árabes palestinos.

Em 2014, quando estava ocorrendo o que, até o momento, foi a última batalha entre Israel e o grupo terrorista palestino Hamas, um respeitado teólogo brasileiro[44] postou em seu perfil no Facebook as razões pelas quais apoiava Israel[45]. Para ser justo, seus argumentos eram bem construídos, muito embora eu não concorde com a maioria deles. Reagindo aos seus comentários, alguém postou uma nota apoiando as convicções pró-Israel mencionadas, e citou o seguinte versículo:

Assim diz o Senhor dos Exércitos: ‘Castigarei os amalequitas pelo que fizeram a Israel, atacando-os quando saíam do Egito. Agora vão, ataquem os amalequitas e consagrem ao SENHOR para destruição tudo o que lhes pertence. Não os poupem; matem homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois, ovelhas, camelos e jumentos.” (1 Samuel 15.2-3)

Evidentemente o comentário infeliz não é culpa do teólogo pró-Israel, mas essa é a postura de muitos dos evangélicos. O Estado de Israel, e seus habitantes judeus, são vistos como divinamente protegidos e abençoados. Os árabes palestinos, por outro lado, são vistos por muitos como a versão moderna dos amalequitas. “Alguns evangélicos”, diz Weber, “demonizaram os palestinos: porque eles são os inimigos do moderno Estado de Israel, eles são também inimigos de Deus e servos de Satanás”.[46]

O que realmente parece importar para alguns cristãos é que Israel seja protegido a qualquer preço. Ao fim e ao cabo, de acordo com os dispensacionalistas, o cumprimento das profecias escatológicas depende deles.

Toda essa situação causa um desgaste tremendo na frágil igreja no Oriente Médio. Os cristãos passam a ser vistos como “agentes de Sião”, ou simplesmente castigados e perseguidos pelo fato de governos ocidentais patrocinarem Israel, não raro com apoio de cristãos sionistas. “A postura unilateral de cristãos pró-Israel”, diz Cavalcanti, “é um obstáculo à evangelização dos árabes, e deixa os cristãos locais em uma situação difícil”.[47]

Além disso, muitos evangélicos, direcionados pela mídia secular e cristã, creem que a versão radical do islã que vemos hoje representa os muçulmanos em geral.  Spector relatou que:

Quase todo evangélico que apoia Israel com quem conversei associou às suas convicções bíblicas e políticas duas conclusões relacionadas: que Deus deu aos judeus a posse eternal do inteiro território bíblico a Israe,l e que os árabes e outros muçulmanos estão determinados a sabotar a aliança divina.[48]

Isso evidentemente não contribui para com os que querem testemunhar de Jesus entre os árabes muçulmanos. Porém, é isso que alguns seminários teológicos e centros de treinamento missionário ao redor do globo, inclusive no Brasil, estão fazendo aos que querem se preparar para o campo de missão muçulmano. Em vez de ensinar os cristãos a amar os muçulmanos, estamos ensinando-os a amar Israel (o que é correto), a ter medo dos muçulmanos e a defender-se daqueles a quem deveríamos estar oferecendo nosso serviço sacrificial.

 

Um chamado ao arrependimento

Muitos muçulmanos, incluindo palestinos, creem que o sionismo cristão é o maior impedimento à paz mundial e à justiça. Existem várias razões que os levaram a essa conclusão:

  1. Já em 1917, as opiniões dispensacionalistas de dois políticos britânicos, Lord Balfour e o Primeiro Ministro David George, desempenharam importante papel nas decisões que levaram à criação do Estado de Israel.[49]
  2. Depois de Israel ser organizado, e milhares de palestinos tornarem-se refugiados ou morrerem, muitos cristãos, influenciados por ideias dispensacionalistas, não demonstraram compaixão pelos árabes palestinos que estavam sofrendo e sendo oprimidos. Pelo contrário, muitos regozijaram-se pelo fato de que Jeová estava defendendo os direitos de seu povo escolhido e limpando a terra dos modernos amalequitas.
  3. Muitos presidentes dos EUA têm demonstrado claramente suas inclinações religiosas cristãs, favorecendo Israel e, como resultado, aumentando o sofrimento e a desesperança de milhões de árabes palestinos.[50]Alguns deles até mesmo permitiram lançar ataques contra diferentes países muçulmanos, apoiados por suas crenças dispensacionalistas em relação ao final dos tempos, bem como por influência da direita sionista cristã.[51]Ao assim proceder, eles também contribuíram para dificultar o estabelecimento da paz.
  4. Líderes da direita cristã dos EUA (muitos deles com inclinações sionistas) estabeleceram laços próximos com o Partido Likud e com Primeiros Ministros israelenses,[52]ajudando Israel a ser altamente respeitado (idolatrado?) pelo povo norte-americano, o que, por sua vez, contribuiu para criar um sentimento de que os povos muçulmanos são perversos, e que devem ser combatidos e controlados a qualquer preço.
  5. Como se não fosse bastante tudo o que já foi mencionado, há entre dispensacionalistas a expectativa de que o templo de Jerusalém será reconstruído, possivelmente onde hoje situa-se o Domo da Rocha. Para nossa vergonha, infelizmente as evidências parecem confirmar que, em relação ao sionismo cristão, os muçulmanos podem ter alguma razão. As atitudes e crenças de alguns cristãos estão contribuindo para tornar a situação política, social e religiosa do Oriente Médio cada vez pior. Ao invés de serem agentes de reconciliação, estão causando divisões em um mundo que já está ferido e dividido.

Na opinião do Bispo Robson Cavalcanti (que certamente não é compartilhada pelos dispensacionalistas),

Não devemos ter medo de defender a justiça com receio de sermos acusados de antissemitismo. Os cristãos têm a consciência culpada pelo antissemitismo da inquisição e do nazismo, sentem empatia pelos “kibutsin” e pelos “moshavim”, mas não podem negar sua soteriologia histórica, que nos ensina que, inclusive para os judeus, há apenas um caminho para Deus, Jesus Cristo, e que o povo de Deus hoje é o corpo de Cristo, a Igreja, chamada a praticar o ministério da reconciliação e a lutar pelos valores do Reino.[53]

Em uma comunicação pessoal via e-mail[54] referente a esse problema, Christopher Wright, um destacado teólogo britânico, afirmou:

O ensino de Jesus e de Paulo é muito claro – não amaldiçoar, não retaliar, não cometer violência – antes, ao invés disto, amor, bênção e paciência. Então, seja o que for que o mundo disser, ou que os israelenses digam, se os cristãos advogarem violência, opressão, roubo de terra e de água, destruição de olivais e de vinhas, demolição de casas etc. – e dizer que isso é justificado pela Bíblia, eles estão voluntariamente desobedecendo o ensino do Senhor.

Vez após outra, os assim chamados especialistas em profecia bíblica mudam de opinião de acordo com o desenvolvimento de novos, e algumas vezes contraditórios, eventos históricos. No dizer de Weber, “a história da interpretação das profecias mostra que o diabo está nos detalhes”.[55] Mas mesmo que os cristãos sionistas, influenciados pelo sistema teológico dispensacionalista, tenham a interpretação correta do desenrolar da história, isto lhes permite ser “cegos quanto à injustiça? Os fins justificam os meios, só porque os fins foram profetizados?”.[56]

O Compromisso da Cidade do Cabo, do Movimento de Lausanne, faz uma confissão e um chamado ao arrependimento, afirmando o seguinte:

Reconhecemos, com tristeza e vergonha, a cumplicidade de cristãos em alguns dos acontecimentos mais devastadores de violência étnica e opressão, e o lamentável silêncio de grande parte da igreja no decorrer dos conflitos. Tais conflitos incluem o legado do racismo […] o holocausto contra os judeus […] o sofrimento palestino […] as castas oprimidas e o genocídio tribal. Os cristãos que, por ação ou omissão, agravam o sofrimento do mundo, comprometem seriamente nosso testemunho pelo evangelho de paz. Portanto, por causa do evangelho, lamentamos e chamamos ao arrependimento os cristãos que têm participado da violência étnica, da injustiça e da opressão. Também chamamos ao arrependimento os cristãos que muitas vezes foram cúmplices de tais males, por meio do silêncio, da apatia ou de presumida neutralidade, ou ainda oferecendo falsa justificativa teológica para tais atos.[57]

Faremos bem se prestarmos atenção a essa oportuna exortação, e reconhecermos diante de Deus e do mundo que não temos sido fieis aos ensinos de nosso Senhor Jesus, que nos chamou para cuidar dos oprimidos, dos perseguidos e dos quebrantados de coração, como vemos tão claramente e de forma tão abundante tanto no Antigo como no Novo Testamentos.

 

[1] O dispensacionalismo está constantemente se desenvolvendo, e diferentes tipos desse sistema teológico são mencionados na literatura disponível, incluindo o ultradispensacionalismo. Mais recentemente, tem acontecido o desenvolvimento do dispensacionalismo progressivo, que tenta reexaminar algumas das mais polêmicas afirmações do dispensacionalismo clássico, sem perder sua essência. Ver Craig A.; Bock Blaising, Darrel L., Progressive Dispensationalism, (Gran Rapids, MI: Bridgepoint Books, 1993).

[2] Ryrie, Dispensationalism, 148.

[3] Ou ‘administração’.

[4] Ryrie, Dispensationalism, 28.

[5] Harry Ironside, citado por ibid., 30.

[6] Ryrie identifica as sete dispensações: (1) Inocência, (2) Consciência, (3) Governo Civil, (4) Governo Patriarcal ou da Promessa, (5) Lei, (6) Graça e (7) o Milênio (ibid., 56). Watson, todavia, é da opinião que a Bíblia mostra apenas cinco dispensações: (1) Patriarcal, (2) Torá, (3) a Igreja, (4) a tribulação e (5) o milênio (Watson, Dispensationalism before Darby. pos. 151).

[7] C.I. Scofield, The Scofield Reference Bible: The Holy Bible Containing the Old and New Testaments (New York: Oxford University Press, 1917), 5.

[8] Ryrie, Dispensationalism, 17.

[9] Watson não inclui essa característica como parte da definição de dispensacionalismo. Ele prefere considerá-la como parte da definição de sionismo cristão ou restauracionismo, como era conhecida no passado (Watson, Dispensationalism before Darby, pos. 118). Enquanto Watson parece considerar o sionismo cristão e o restauracionismo como sinônimos, Chapman estabelece distinção entre os dois. Em sua opinião, diferentemente dos sionistas, os restauracionistas estão mais preocupados com o conceito teológico, e a expectativa que Deus irá, no fim dos tempos, trazer os judeus para a Palestina. A palavra “expectativa” é importante nesse contexto. Eles se envolveriam na evangelização de judeus, mas em geral não são apoiadores ativos do Estado de Israel. A expectativa deles é que Deus, e não os homens, fará isso. Colin Chapman, Whose Promised Land? (Oxford: Lion Hudson, 2015), pos. 6365.

[10] Ryrie, Dispensationalism, 126-31.

[11] Blaising, “Dispensationalism: The Search for Definition”, pos. 333.

[12] Lewis S. Chafer, Dispensationalism (Texas: Dallas Seminary Press, 1951), 41.

[13] Chafer, citado por Ryrie, Dispensationalism, 39.

[14] 1 Tessalonicenses 4.16-17.

[15] Got Questions Ministries, “Pretribulationism”, in Got questions? Bible questions answered (Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2002-2013).

[16] Ryrie, Basic Theology, 555.

[17] Ibid., 541.

[18] Dispensationalism, 56.

[19] Basic Theology, 599.

[20] Dispensationalism, 136.

[21] Basic Theology, 599.

[22] Dispensationalism, 137.

[23] Basic Theology, 569.

[24] Dispensationalism, 137.

[25] Ibid., 19. Essa é a segunda condição sine qua non estabelecida por Ryrie. Ele afirma que o sistema hermenêutico utilizado pelos dispensacionalistas “não espiritualiza nem alegoriza, como geralmente a interpretação não dispensacionalista faz”. A terceira é a afirmação que “o propósito subjacente de Deus no mundo… é a glória de Deus” (ibid., 40).

[26] Na opinião de Blaising, é importante observar que a palavra ‘literal’ não é oposta a ‘figurado’, mas a alegórico ou espiritual. As palavras normal ou plena devem ser usadas no lugar de literal…” (Blaising, Dispensationalism: The Search for Definition, pos. 351). Todavia, Darby and Scofield, “aprovaram a interpretação espiritual ou alegórica do Antigo Testamento, ainda que Scofield a excluísse da profecia”. Ibid., pos. 356.

[27] Ryrie, Dispensationalism, 127.

[28] Basic Theology, 523-30.

[29] Gênesis 15.18.

[30] Se isso acontecesse hoje, o Israel nacional compreenderia partes do Iraque, partes do Egito e toda a extensão da Palestina, Síria, Líbano e Jordânia.

[31] Ryrie, Dispensationalism, 56.

[32] Citado por Chapman, Whose Promised Land?, pos. 6391.

[33] Donald Wagner, “The Evangelical-Jewish Alliance”, em The Christian Century, June 28, 2003: 21.

[34] Timothy Weber, On the Road to Armageddon (Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2004), pos. 2568.

[35] Donald Wagner, “Evangelicals and Israel: Theological Roots of a Political Alliance”, 24.

[36] Judith Mendelsohn Rood and Paul W. Rood, “Is Christian Zionism Based on Bad Theology?”, Cultural Encounters 7, no. 1 (2011): 37.

[37] Stephen Sizer, Christian Zionism (Nottingham, England: Inter-Varsity Press, 2004), 21.

[38] Chapman, Whose Promised Land?, pos. 432.

[39] Ibid., pos. 438.

[40] Ibid., pos. 5741.

[41] Robson Cavalcanti, “Palestina: O Holocausto Dos Filhos De Ismael”, Editora Ultimato, http://www.ultimato.com.br/conteudo/palestina-o-holocausto-dos-filhos-de-ismael#palestina.

[42] Ibid.

[43] The People of the United Methodist Church, “United Nations Resolutions on the Israel-Palestine Conflict”, United Methodist Church, http://www.umc.org/what-we-believe/united-nations-resolutions-on-the-israel-palestine-conflict.

[44] Desconheço se ele é dispensacionalista ou não, mas o argumento central aqui não é o que ele, mas sim o que a outra pessoa mencionada logo abaixo disse.

[45] Por respeito à sua privacidade, seu nome não será mencionado.

[46] Weber, “How Evangelicals Became Israel’s Best Friend”, 49.

[47] Cavalcanti, “Palestina: O Holocausto Dos Filhos De Ismael”.

[48] Stephen Spector, Evangelicals and Israel (Oxford: Oxford University Press, 2009), 76.

[49] Wagner, “Evangelicals and Israel: Theological Roots of a Political Alliance”, versão eletrônica.

[50] Weber, “How Evangelicals Became Israel’s Best Friend”, 47.

[51] Donald Wagner, “A Heavenly Match: Bush and the Christian Zionists”, Information Clearing House, http://www.informationclearinghouse.info/article4960.htm.

[52] Wagner, “The Evangelical-Jewish Alliance”, The Christian Century, June 28, 2003: 22.

[53] Cavalcanti, “Palestina: O Holocausto Dos Filhos De Ismael”.

[54] Esse e-mail foi recebido no dia 22 de fevereiro de 2016.

[55] Weber, “How Evangelicals Became Israel’s Best Friend”, 49.

[56] Ibid.

[57] The Lausanne Movement, “The Cape Town Commitment,”  https://www.lausanne.org/content/ctc/ctcommitment#p2-2.

 

Bibliografia

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Photo by Mauricio Artieda

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