Cristãos palestinos na história moderna

Por conta de migrações e deslocamentos, menos de 2% da população da Palestina histórica é cristã

Rev. Mitri Raheb

O alto índice de emigração de cristãos da Palestina tem como resultado a contínua redução da presença cristã na Terra Santa. Vários líderes reconheceram a gravidade da situação e alertaram sobre o risco de a Terra Santa transformar-se em uma espécie de parque temático cristão, onde habitantes cristão autênticos inexistem. E não há exagero nesse aviso. Isso porque, devido ao declínio da população cristã da Palestina histórica, os cristãos são, na melhor das hipóteses, 1,7% da população total hoje (contabilizando os cristãos em Israel, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza).

Com o intuito de compreender como esse fenômeno de migração de cristãos da Palestina desenvolveu-se, decidi estudar as várias circunstâncias que, ao longo de um século inteiro, redundaram no declínio atual. Para tanto, tomei por base os censos oficiais realizados pelos otomanos em 1905, pelos britânicos em 1922 e em 1931, pelos jordanianos em 1961, pela ocupação militar israelense em 1967, pelos palestinos em 2007 e em 2017, e pelos israelenses em diversos anos entre 1949 e 2011.

Migração cristã no período otomano
Até o ano 1917, a Palestina era uma parte inseparável do extenso Império Otomano, e seus moradores, tanto muçulmanos como cristãos, eram livres para circular pelos territórios do império, bem como sair dele e para ele retornar. Entre os anos 1860 e 1914, estimativas otomanas indicam que os cristãos representavam 11% da população na Palestina.

Durante as últimas três décadas de domínio otomano, a migração de cristãos da Palestina representou uma parcela significativa da migração total da região: cerca de 1 milhão de palestinos deixaram sua terra natal e foram para a América do Norte e do Sul. Alguns historiadores supõem que as razões para a evasão foram a busca por melhores condições financeiras e o desejo de fugir da pobreza e de doenças que infectaram a região à época. Outros relatos, contudo, apontam a obrigatoriedade do serviço militar como causa principal uma vez que, durante o período otomano, os cristãos que pagavam o imposto (jizya) não precisavam servir no exército, mas os Jovens Turcos, que assumiram o poder em 1908, queriam mudar essa regra.

Um ponto peculiar em relação à migração de cristãos palestinos é que a noção de “Terra Santa” estava ganhando destaque durante esse período. Isso levou a um aumento nas vendas de artefatos da “Terra Santa” por imigrantes palestinos a peregrinos religiosos localmente e também no exterior. A emigração, então, aumentou de tal forma que, nos 10 anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, Belém perdeu metade de sua população, passando de 12 mil habitantes para 6 mil. Especula-se que 13% dos cristãos palestinos migraram entre 1907 e 1917.

Embora o principal motivo para emigrar – escapar do serviço militar compulsório – tenha perdido força após o fim da Primeira Guerra e o início do Mandato Britânico na Palestina, determinações impediram que aqueles que haviam saído retornassem ao seu país de origem. Ao final da Primeira Guerra Mundial, o número de cristãos palestinos foi registrado como sendo 8% da população total.

O deslocamento palestino de 1948 (Nakba[1])
Enquanto a primeira onda de emigração foi, de algum modo, optativa, a segunda onda de deslocamento palestino da terra foi coerciva. Como resultado da catástrofe (Nakba) de 1948 e da destruição de mais de 420 povoados, mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas casas, passando para a condição de refugiados e vivendo no que restava da Palestina e em territórios circunvizinhos. Hoje, o número de refugiados palestinos chega a mais de 6 milhões, a maior contagem de refugiados no mundo.

A Nakba de 1948 teve um impacto imenso e específico nos cristãos palestinos. Em questão de meses, quase 50 mil de 135 mil cristãos foram deslocados. Eles, que eram 8% da população na contagem do ano anterior, diminuíram para impressionantes 2,8% da população total após a Nakba. Foi um golpe devastador para os cristãos palestinos, do qual eles não se recuperaram. Assim como aconteceu quando sob o Mandato Britânico, as autoridades israelenses proibiram o retorno dos palestinos às suas casas. O estudo conduzido pela Evangelical Lutheran Christmas Church (Igreja Evangélica Luterana Natal) em Belém pode nos dar uma visão mais clara da profundidade da tragédia que o evento foi para os cristãos palestinos. Em um censo realizado pelo Rev. Elias Shihadeh Khoury em 1950, constatou-se que o número de luteranos em Belém era de 528 antes da Nakba, e dois terços desses cristãos foram expulsos em 1948. O terço que restou também não permaneceu em Belém: mais de 50% foram para a Jordânia após a Naksa[2] em 1967.

Ainda segundo o estudo da igreja luterana, os cristãos palestinos da diáspora mantiveram fortes laços com as famílias (da fé e biológica) que permaneceram na Cisjordânia. Contudo, perderam não apenas o direito de retornar à sua terra, mas também o de visitar suas famílias.

Migração durante o período jordaniano
O período de domínio jordaniano na Palestina – entre os anos de 1949 e 1967 – testemunhou uma escalada da migração interna da Cisjordânia para a Jordânia. O novo reino emergente da Jordânia estava ávido por construir sua capital, Amã. Por conta disso, precisavam de trabalhadores qualificados e pessoas instruídas, e a Grande Jerusalém, entre Ramallah e Belém, tinha essa mão de obra. A região do Golfo, bem como outros países produtores de petróleo, também crescia rapidamente, demandando trabalhadores desse tipo, e se voltou para a Palestina para recrutá-los. Estudos indicam que, entre 1952 e 1961, de 15% a 22% dos habitantes da Palestina deixaram suas casas e, entre 1961 e 1967, o número de habitantes foi reduzido entre 11% e 16%.

De forma mais específica, o número de cristãos na Cisjordânia declinou de 42.618 em 1961 para 29.446, o que significa que um terço dos cristãos palestinos deixou a Cisjordânia, e o percentual caiu de 5,8% para 4,9%.

O impacto da ocupação israelense na migração de cristãos palestinos
As pressões da ocupação israelense obviamente ampliaram os obstáculos e levaram a uma quarta onda de imigração cristã. As imposições e restrições contínuas às pessoas, as políticas discriminatórias, as prisões arbitrárias e o confisco de terras aumentaram o sentimento geral de desesperança em meio a guerras e destruição em toda a região. Atualmente, a maioria dos cristãos palestinos vive em países da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá, lugares em que encontraram refúgio.

A seguir, falarei de três estudos realizados nos últimos 12 anos:

  • O primeiro é um que preparamos em 2008 a respeito de cristãos palestinos da Cisjordânia;
  • O segundo trata de cristãos árabes dentro da chamada Linha Verde (Israel) e foi elaborado em 2012;
  • O terceiro é mais recente e inclui uma pesquisa de opinião feita em 2017.

Em 2017, segundo dados do senso do Escritório Central Palestino de Estatística, o total da população de palestinos cristãos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza era de 47 mil pessoas. Em nosso primeiro estudo, realizado em 2008, as causas da emigração cristã foram elencadas da seguinte forma:

  • Quase um terço (32,6%) optou por emigrar devido à perda de liberdade e falta de segurança decorrente da ocupação, o que faz da ocupação israelense a primeira e principal razão para partida;
  • Quase um quarto (26,4%) saiu devido à deterioração das condições econômicas;
  • Cerca de um quinto (19,7%) sucumbiu à opção de emigração devido a distúrbios políticos, especialmente durante e após a segunda intifada.
  • Mais de um décimo (12,6%) deslocou-se em busca de educação. Essa não é uma percentagem pequena do intelecto juvenil e não deve ser subestimada;
  • Apenas 0,3% foi motivada a sair por motivos religiosos. Por ser essa percentagem tão pequena, é descartada como irrelevante a premissa da religião como causa da emigração.

O estudo de 2012 demostrou que as causas para a emigração de cristãos palestinos dentro da Linha Verde eram inúmeras. As leis militares israelenses postas em prática entre os anos 1948 e 1966 contemplavam medidas preventivas que isolavam os palestinos, restringiam sua liberdade de ir e vir e impediam seu acesso ao mercado de trabalho. Além disso, políticas discriminatórias de Israel impediram os palestinos de obter certos títulos acadêmicos em áreas como medicina, ciência, tecnologia, pesquisa e áreas relacionadas à segurança, levando muitos palestinos em Israel a seguir seus estudos no exterior. As políticas de emprego israelenses que discriminavam árabes palestinos sobrecarregavam-nos economicamente, e o incessante conflito árabe-israelense (sem qualquer horizonte de ter uma solução viável) colocava os palestinos em uma situação continuamente extenuante.

O estudo mais recente sobre emigração de cristãos foi feito em 2017 com uma amostragem de 530 cristãos e 500 muçulmanos palestinos. Foi o primeiro estudo dessa natureza a incluir tanto cristãos como muçulmanos palestinos.
É desconcertante tomar conhecimento do elevado percentual de cristãos que, na pesquisa, responderam estar considerando emigrar: 28% no geral, 47% em Gaza (o que é bem mais elevado comparando-se com os cristãos da Cisjordânia: 25%). As estimativas entre os muçulmanos são discretamente mais baixas: 25% no geral, 27% em Gaza e 23% na Cisjordânia.
As duas principais razões para que a emigração seja considerada são instabilidade política e situação econômica, que é o fator dominante entre 64% dos cristãos e entre  72% dos muçulmanos. Em contraste, a primeira razão apontada para permanecer no país e não considerar uma mudança para o exterior é o senso de determinação palestino a resistir: 41% dos cristãos e 49% dos muçulmanos entrevistados expressaram que a perseverança é a razão para a permanência.

Conclusão
O declínio constante do número de cristãos no Oriente Médio, e especificamente na Palestina, é um tópico que merece atenção e que tem repercussões não só para a comunidade de cristãos palestinos mas para a sociedade como um todo. Sem a presença do povo cristão palestino, a Terra Santa – a terra das origens da fé cristã – seria nada mais que um mero destino turístico com ruínas antigas e igrejas e construções vazias.

A evasão de cristãos da Palestina priva o país de uma espetacular história inter-religiosa de 1.400 anos. Desperdiçar um fundamento tão excepcional seria perder uma herança cultural gloriosa e expansiva. Se os cristãos desaparecerem da Palestina, a sociedade palestina perderá um ingrediente muito importante de sua tapeçaria religiosa e cultural que salvaguardou a natureza pluralista da Palestina, tornando-a uma ponte entre os mundos árabe-islâmico e ocidental.

 

Sobre o autor
Dr. Mitri Raheb é o fundador e presidente da Dar al-Kalima University College of Arts and Culture em Belém, na Palestina. Doutor em Teologia pela Universidade Philipps de Marburg, Alemanha, é o teólogo palestino com mais obras publicadas: 16 livros até o momento. Empreendedor social, fundou também o Centro Cultural e de Conferências Dar Annadwa, além de ser o responsável por iniciativas cívicas nos níveis nacional, regional e internacional. Recebeu o Prêmio Olof Palme de 2015 por sua luta corajosa e incansável contra ocupação e violência. Para mais informações, visite www.mitriraheb.org

 

Este artigo, escrito em dezembro de 2019, tem como base o texto Palestinian Christians: Emigration, Displacement and Diaspora (Cristãos palestinos: Emigração, Descolamentos e Diáspora), do mesmo autor, publicado em 2017.

Escrito originalmente em inglês, foi traduzido para o português para publicação pelo Martureo com a devida autorização.

 

[1] Nota do tradutor – Nakba é uma palavra árabe que significa “catástrofe”. É o termo usado para se referir ao fim do Mandato Britânico na Palestina e a partilha do território por determinação da ONU em 1948 com a criação do Estado de Israel, decisão que deflagrou uma série de combates e o êxodo de mais de 700 mil palestinos.

[2] Nota do tradutor – Naksa é uma palavra árabe que significa “dia do revés”. Refere-se à Guerra dos Seis Dias em 1967, ocasião em que Israel expandiu drasticamente seu território e assumiu o controle da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

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