As cinco marcas da missão

Missão é o modo de existência para a vida como um todo de todo membro de toda igreja

Chris Wright

Por onde começar?

Missões é um tópico tão vasto que é difícil saber por onde começar na tentativa de fazer um relato conciso daquilo que ela significa. De tempos em tempos, algumas frases entram na moda e se tornam maneiras populares de pensar na tarefa. Por exemplo:

Missão holística é uma expressão já usada há algum tempo. Ela enfatiza que, em nossas atividades missionárias, devemos abordar todas as necessidades humanas, ou seja, considerar as áreas física, material, intelectual, emocional, social e espiritual. Isso é certamente importante para não resumir a missão a uma única tarefa. Contudo, pode deixar nossa missão bastante antropocêntrica — tudo gira em torno de “mim e meus problemas” (ou “você e os seus”), e, nessa lógica, a missão pode se tornar algo terapêutico. “Você tem todas essas necessidades e estamos aqui para te ajudar a fim de que sejam supridas, sejam quais forem.” Isso levanta imediatamente uma pergunta: “Qual é de fato a maior necessidade humana?”. Se a missão concentrar-se na necessidade humana, então não importará o quão holístico você tente ser, pois continuará voltando à pergunta: “Do que os seres humanos realmente mais precisam?”. Rapidamente, seremos lançados novamente à discussão sobre a prioridade relativa do evangelismo e da ação social. Assim, somos impelidos a definir a prioridade com base numa taxonomia de necessidades, mas a discussão como um todo ainda gira em torno da necessidade humana.

Igreja missional é uma expressão amplamente usada de diversas maneiras, mas, em essência, sua ideia é que a igreja exista para a missão, e tudo o que uma igreja é e faz deve ser missional — seja “em casa ou fora dela”. A igreja está “em missão” em todo lugar e sempre. Muito verdadeiro. Mas isso pode deixar nosso conceito de missão ainda bastante antropocêntrico, com o foco em nós mesmos como seres humanos — não tanto como pecadores necessitados de salvação, mas como santos necessitados de uma missão. Então surge a pergunta: “O que está legitimamente incluído na missão da igreja?”. O dito familiar (e enganador) – “Se tudo é missão, então nada é missão” – nasceu a partir de uma preocupação com o fato de que a missão havia se tornado uma cesta repleta de nada que a igreja quisesse fazer. Assim, somos lançados de volta às velhas discussões sobre se a missão da igreja deve incluir questões sociais, econômicas, ecológicas, compassivas, ou simplesmente proclamar verbalmente o evangelho.

Seja como for, se começarmos com definições de missão que se concentrem inicialmente nos humanos — seja como “objetos” dela ou como agentes da atividade missionária —, terminamos na mesma discussão infindável sobre necessidades e prioridades relativas. Tal debate ainda tem o seu lugar, uma vez que de fato precisamos ser claros sobre o que devemos fazer e a razão porque fazê-lo, mas parece que só devemos chegar a esse debate depois de começarmos, antes de qualquer coisa, com Deus, procurando entender a missão de Deus conforme revelada na Bíblia.

1. A Missão de Deus 

Qual é, portanto, o grande plano e propósito de Deus? Uma das respostas mais concisas a essa pergunta é dada por Paulo. Deus “revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos” (Ef 1.9-10, NVI). Quando Paulo fala da “vontade de Deus”, ele (normalmente) não se refere à orientação pessoal de Deus para nossa vida individualmente, mas a seu grande propósito cósmico para todo tempo e espaço.

E Paulo diz: o plano de Deus é trazer cura e unidade para toda a criação em e através de Cristo. A missão de Deus é redimir toda a criação, ferida pelo pecado e pelo mal, e fazê-la nova criação, povoada pelos redimidos de todas as culturas, através da cruz e da ressurreição de Cristo. Penso que é isso a que Paulo se referiu ao dizer “toda a vontade de Deus” (At 20.27). É o plano de Deus desde Gênesis até Apocalipse. Ele inclui toda a grande narrativa bíblica: criação – queda – redenção – nova criação, centrada em e unida em Cristo.[1]

Missão, portanto, é fundamentalmente a atividade de Deus, levando adiante toda a história e a conduzindo à sua gloriosa conclusão. Por essa razão, quando o Compromisso da Cidade do Cabo (documento do 3o Congresso de Lausanne, na África do Sul, em 2010) define a missão com a qual nos comprometemos, ele imediatamente faz um movimento na direção de um resumo da missão do próprio Deus:

Nós estamos comprometidos com a missão mundial, porque ela é central para nosso entendimento de Deus, da Bíblia, da Igreja, da história humana e do futuro final. Toda a Bíblia revela a missão de Deus de trazer unidas sob Cristo todas as coisas, no céu e na terra, reconciliando-as através do sangue da sua cruz. No cumprimento da sua missão, Deus transformará a criação ferida pelo pecado e pelo mal em uma nova criação na qual não exista mais pecado nem maldição. Deus cumprirá sua promessa a Abraão de abençoar todas as nações na terra, através do evangelho de Jesus, o Messias, a semente de Abraão. Deus transformará o mundo partido formado pelas nações espalhadas sob o juízo de Deus em uma nova humanidade, de toda tribo, nação, povo e língua, redimida pelo sangue de Cristo, reunidos ali para adorar nosso Deus e Salvador. Deus destruirá o reino de morte, corrupção e violência quando Cristo voltar para estabelecer seu reino eterno de vida, justiça e paz. Então, Deus, Emanuel, habitará conosco, e o reino do mundo se tornará o reino do nosso Senhor e do seu Cristo e ele reinará para sempre e sempre.

Certamente podemos dizer “Aleluia! Amém!” a isso. Glória a Deus pela grande missão que ele certamente realizará. Mas ainda ficamos com as pergunta: “E daí?” E o nosso papel? Quem somos nós e para que estamos aqui? Qual é a missão do povo de Deus?”. A declaração acima deve, pelo menos, preparar-nos para uma resposta claramente ampla, pois, se a Bíblia mostra-nos que a grande missão de Deus é tão abrangente em escopo, então a missão da igreja deve ter uma amplitude análoga. Não no sentido de que possamos fazer tudo o que Deus faz. Deus é Deus e nós não somos! Falo no sentido de que, quando Deus nos chama para participar com ele no cumprimento do seu grande propósito para a criação e a humanidade, ele nos chama para uma tarefa realmente grande.

2. A missão do povo de Deus, a igreja

Já houve muitas tentativas de definir e descrever a missão da igreja. Uma que considero bastante útil foi produzida pelo Conselho Consultivo Anglicano em 1984. Ela foi concebida como uma declaração de missão para a Comunhão Anglicana Mundial e foi adotada pela Conferência dos Bispos de Lambeth em 1988 sob o título “As cinco marcas da missão”. Ela declarava que:

A missão da igreja é a missão de Cristo

  1. Proclamar as boas novas do reino;
  2. Ensinar, batizar e treinar os novos crentes;
  3. Responder à necessidade humana com serviço amoroso;
  4. Buscar a transformação das estruturas injustas da sociedade;
  5. Lutar para preservar a integridade da criação e sustentar a vida na terra.[2]

Tudo isso poderia ser resumido em algumas palavras: evangelismo, ensino, compaixão, justiça e cuidado com a criação. É uma lista notavelmente ampla e holística que, pode-se perceber, possui raízes profundas em toda a Bíblia. De fato, espero mostrar que todas as cinco “marcas” podem ser ligadas, direta ou indiretamente, à “Grande Comissão”, contanto que coloquemos no centro de todas elas a afirmação inicial da Grande Comissão: o senhorio de Cristo sobre toda a criação.

O último ponto é essencial. Todas essas cinco dimensões da missão dependem do senhorio de Cristo.

“As cinco marcas da missão”

  • No evangelismo: proclamamos as boas novas que Jesus Cristo é Senhor, Rei e Salvador.
  • No ensino: levamos as pessoas à maturidade da fé e do discipulado, em submissão a Cristo como Senhor.
  • Na compaixão: seguimos o exemplo do Senhor Jesus, que andava “por toda parte fazendo o bem” (At 10.38).
  • Na busca pela justiça: lembramos que o Senhor Jesus Cristo é o juiz de toda a terra.
  • No uso e no cuidado com a criação: lidamos com aquilo que pertence ao Senhor Jesus Cristo por direito de criação.

Contudo, prefiro manter as coisas mais simples, e podemos fazer isso agrupando quatro dos cinco em dois pares, colocando evangelismo e ensino juntos, e compaixão e justiça em outro par. Isso, então, cria três grandes tarefas missionais, ou três pontos focais para nosso envolvimento missional: igreja, sociedade e criação. Nossa missão, portanto, inclui:

  1. Construir a igreja(através do evangelismo e do ensino), trazendo pessoas ao arrependimento, à fé e à obediência como discípulos de Jesus Cristo.
  2. Servir a sociedade (através da compaixão e da justiça), em resposta à ordem de Jesus de irmos “ao mundo”, amar e servir, ser sal e luz, fazer o bem e “buscar a prosperidade” das pessoas ao nosso redor (como Jeremias disse aos israelitas na Babilônia – Jr 29.7).
  3. Cuidar da criação (através do uso piedoso dos recursos da criação, juntamente com preocupação ecológica e ação), cumprindo a primeira “grande comissão” dada à humanidade em Gênesis 1 e 2.

 

Neste ponto, pode surgir a seguinte pergunta: “A Grande Comissão não nos diz simplesmente para ‘ir e evangelizar o mundo’?”. Bem, não exatamente; ela não diz apenas isso. Não é uma ordem única, mas várias. E não começa com uma ordem, mas com uma declaração: “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra”. Tudo flui a partir disso. Construímos a igreja porque Jesus é o Senhor da igreja. Servimos à sociedade porque Jesus (e não “César”) é Senhor de todas as nações, governos e culturas (quer seja reconhecido como tal ou não). E cuidamos da criação porque Jesus é Senhor do céu e da terra: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe” (1Co 10.26).

O escopo triplo da missão é plenamente bíblico. O Compromisso da Cidade do Cabo reconhece que todas as três partes precisam ser mantidas juntas em uma compreensão verdadeiramente holística e integrada da missão.

“Missão integral significa discernir, proclamar e viver a verdade bíblica de que o evangelho é a boa nova de Deus, através da cruz e da ressurreição de Jesus Cristo para indivíduos, para a sociedade e para a criação. Todos os três estão feridos e sofrem por causa do pecado; todos os três estão incluídos no amor redentor e na missão de Deus; todos os três devem fazer parte da missão global do povo de Deus.”[3]

Sendo assim, seguiremos em torno desses três pontos focais principais, conectando-os dentro de nossa compreensão da missão integral, e entendendo como eles se conectam com a Grande Comissão.

3. Construir a Igreja (Evangelismo e Ensino)

 “…Façam discípulos de todas as nações, batizando-os… ensinando-os…”

Isso flui de maneira imediata e direta do Senhorio de Cristo. Pois, se Jesus de Nazaré é verdadeiramente Senhor e Deus, então somos convocados a nos tornar discípulos ao nos submetermos a ele em arrependimento e fé, e somos enviados para fazer discípulos ao levar outros a esse mesmo relacionamento.

3.1 Evangelismo

 Evangelismo significa “evangelizar” as boas novas daquilo que Deus prometeu e realizou através de Cristo. Significa contar a história completa daquilo que Deus fez (usando tanto o Antigo quanto o Novo Testamentos). É proclamar as boas novas de que o Deus que criou o mundo agiu para salvá-lo das consequências geradas pelo pecado humano e pelo mal satânico; que Deus fez isso através de seu Filho, Jesus de Nazaré, que veio para cumprir a promessa de Deus a Israel e que, como o Messias apontado por Deus, morreu por nossos pecados e foi trazido de volta à vida pelo poder de Deus; que esse mesmo Jesus é agora o Senhor que ascendeu ao céu e que voltará como Juiz e Rei para reivindicar sua herança com a humanidade redimida na nova criação.

E evangelismo significa que, quando as pessoas respondem a essa boa notícia daquilo que Deus fez através de Cristo — ao afastarem-se em arrependimento de qualquer viver autoconstruído e de serviço a si mesmo no qual estejam vivendo, e colocando sua fé em Jesus para salvação —, nós lhes garantimos que elas terão uma parte naquela grande história bíblica do propósito salvador de Deus para o mundo, que seu pecado é perdoado e que elas podem desfrutar de um relacionamento correto com Deus agora e eternamente.

Quando as pessoas dão essa resposta, Jesus nos instrui a batizá-las “em nome do” (ou seja, em um relacionamento com) Deus Pai que as ama, do Deus Filho que morreu por elas e do Deus Espírito Santo que habita nelas, dando seu fruto numa vida que está sendo transformada à semelhança de Cristo.

Neste ponto, é importante enfatizar que missão holística, da forma como a compreendo, não apenas inclui o evangelismo, mas integra tudo o mais em torno dele, uma vez que o evangelho é o coração e o núcleo da missão de Deus e da nossa. Já me deparei com duas maneiras enganosas de usar a expressão “missão holística”:

  • Às vezes, a expressão “missão holística” é usada para classificar tudo exceto evangelismo. É um tipo de “cesta” na qual se colocam todos os outros ministérios — ação social, missão médica, auxílio aos pobres, desenvolvimento comunitário, ação ambiental, defesa de direitos humanos, esforços pela paz e reconciliação… Ela tem sido usada dessa forma até mesmo em círculos ligados ao Lausanne, apesar dos meus protestos! Mas isso é errado e enganoso. “Holístico” significa “o todo”. Ação social sem evangelismo é simplesmente tão não holístico quando é o evangelismo sem envolvimento social.
  • Às vezes, a expressão “missão holística” é usada para significar toda e qualquer coisa que possa ser chamada de “missão”, incluindo o evangelismo, mas sem integração. É apenas um saco de bolinhas de gude no qual o evangelismo se torna simplesmente uma entre uma multiplicidade de coisas nas quais uma igreja pode ou não estar interessada. A missão se torna um bufê de atividades no qual o evangelismo é uma das muitas opções. Isso também é equivocado e não bíblico.

Prefiro falar da centralidade do evangelismo. E prefiro essa palavra não porque o evangelismo trate de nossa maior necessidade humana (o que nos levaria de volta ao dilema antropocêntrico com o qual começamos), mas sim porque ela nos conecta à centralidade do evangelho como as boas novas do que Deus fez para salvar o mundo. Podemos fazer diversas outras coisas, de maneira bastante legítima, dentro da amplitude dos chamados missionais, mas o coração integrador no centro de todas elas deve ser a realidade do evangelho, centrada em Deus e gerada por ele — concebido não apenas como um plano de segurança pessoal, mas como a declaração dos fatos bíblicos da história da salvação, a história cósmica do propósito redentor de Deus para toda a criação. E é no evangelismo que contamos essa história. E é a partir dessa história (apenas) que toda missão flui.

Assim, quando falo da centralidade do evangelho e do evangelismo, não me refiro a um centro que torna tudo o mais periférico — marginal e desimportante, “lá de fora, longe do centro”. Em vez disso, uso o termo central como um eixo que é central a uma roda. Uma roda é um objeto funcional integrado, com um aro ou um pneu conectado à estrada. Mas o círculo inteiro da roda deve estar conectado em todos os pontos ao eixo através dos raios. Nesse sentido, o eixo é o centro integrador de tudo o que a roda é e faz. E o eixo está conectado ao motor, transmitindo seu poder para “as coisas realmente andarem”. Não há sentido em perguntar: “O que é mais importante: o eixo ou o aro?”. Se os dois não estiverem juntos e integrados, você não terá de forma alguma uma roda. Ambos são essenciais e devem funcionar juntos.

Nessa analogia para a missão integral ou integrada, o motor é o poder dinâmico do evangelho bíblico (o que Deus fez em Cristo para salvar o mundo). O eixo é o nosso compartilhamento daquelas boas novas. O aro é a materialização do evangelho no mundo, na vida e no trabalho, bem como todo nosso envolvimento com o contexto e a cultura (a estrada). Para dirigir um carro, você precisa da integração e da conectividade das coisas que são diferentes umas das outras em si mesmas, mas que não podem de fato funcionar de maneira significativa separadas umas das outras — você precisa do eixo da roda conectado ao motor, e você precisa do aro da roda conectado à estrada. Se não for assim, você não chegará a lugar algum! Para se envolver na missão integral, você precisa de integração entre a verdade histórica do evangelho, a declaração disso no evangelismo e a materialização dele no envolvimento social e contextual com a sociedade e a criação.

Mais uma vez, o Compromisso da Cidade do Cabo procura capturar esse entendimento integrado de missão:[4]

A integridade da nossa missão. A origem de toda nossa missão é o que Deus fez em Cristo pela redenção de todo o mundo, conforme revelado na Bíblia. Nossa tarefa evangelística é fazer as boas novas conhecidas a todas as nações. O contexto de toda a nossa missão é o mundo no qual vivemos, o mundo de pecado, de sofrimento, de injustiça e de desordem da Criação, para onde Deus nos envia a fim de que amemos e sirvamos por amor a Cristo. Toda a nossa missão deve, portanto, refletir a integração do evangelismo e do envolvimento comprometido com o mundo, sendo ambos ordenados e conduzidos por toda a revelação bíblica do evangelho de Deus.

Evangelismo propriamente dito é a proclamação do Cristo bíblico e histórico como Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir outros a que venham a ele pessoalmente e, assim, sejam reconciliados com Deus. Os resultados da evangelização incluem a obediência a Cristo, o ingresso em sua Igreja e o serviço responsável no mundo… Afirmamos que tanto a evangelização quanto o envolvimento sociopolítico fazem parte do nosso dever cristão. Pois ambos são expressões necessárias das nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, do nosso amor por nosso próximo e da nossa obediência a Jesus Cristo… A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.[5]

A missão integral é a proclamação e a demonstração do evangelho. Não significa simplesmente que a evangelização e o compromisso social devam ser realizados de forma concomitante. Mas sim que, na missão integral, nossa proclamação tem consequências sociais quando convocamos as pessoas ao amor e ao arrependimento em todas as áreas da vida. E nosso compromisso social tem consequências para a evangelização na medida que testemunhamos da graça transformadora de Jesus Cristo. Se ignoramos o mundo, traímos a Palavra de Deus, que nos envia para que sirvamos ao mundo. Se ignoramos a Palavra de Deus, não temos nada a oferecer ao mundo.[6]

Assim, portanto,

Vamos manter o evangelismo como parte central do escopo plenamente integrado de toda nossa missão, na medida em que o evangelho propriamente dito seja a fonte, o conteúdo e a autoridade de toda missão biblicamente válida. Tudo o que fazemos deve ser tanto uma personificação quanto uma declaração do amor e da graça de Deus e da sua obra salvadora através de Jesus Cristo.[7]

3.2 Ensino/discipulado

 “…ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei.” Ou seja, devemos fazer discípulos da mesma maneira que Jesus fez. Não há utilidade em apenas trazer as pessoas à conversão e deixá-las ali. A semente precisa de solo profundo e boas raízes para que possa dar fruto. As igrejas precisam não apenas ser plantadas através do evangelismo, mas também regadas por meio do ensino. As duas coisas são ordens da Grande Comissão.

O ensino está profundamente enraizado na Bíblia. Foi uma parte essencial da maneira como Deus chamou, moldou e “educou” seu povo Israel no Antigo Testamento. O professor Andrew Walls chamou o Antigo Testamento de “o mais antigo e mais longo programa de educação teológica”.[8] Por muitas gerações, Deus ensinou seu povo — por meio da Torá, dos Salmos e livros da Sabedoria, através de sacerdotes e profetas —, ensinando-lhes a verdade sobre Deus, a criação, a humanidade, o pecado, a redenção, a adoração e como viver como povo da aliança em favor da derradeira bênção sobre as nações.

Portanto, não é surpresa que Jesus tenha vindo como um professor. “Rabi” era como o chamavam. Ele era muito mais do que isso, é claro, mas a partir do momento em que chamou seus discípulos para estarem com ele, ensinou, ensinou e ensinou. O discipulado não aconteceu da noite para o dia.

Quando olhamos para Paulo, notamos que o ensino foi parte integral de toda sua vida como missionário plantador de igrejas. Era comum ele ter de deixar uma igreja recém-plantada rapidamente, sob ameaça, mas mesmo assim, escrevia aos irmãos para encorajar e ensinar. E, quando teve a oportunidade, em Éfeso, ele permaneceu por quase três anos, período em que transformou um grupo de doze discípulos em uma igreja metropolitana com vários lares e presbíteros ativos. Ele nos diz que lhes ensinou não apenas tudo o que era útil para eles, mas “toda a vontade de Deus” — ou seja, toda a revelação das Escrituras sobre o grande plano e propósito de Deus (At 19-20). Quando não pôde ensinar pessoalmente, Paulo garantiu que isso fosse feito por outros que faziam parte de sua equipe missionária, como Timóteo e Tito. Ou Apolo (da África), que era letrado nas Escrituras, um professor talentoso, que recebeu educação teológica adicional na casa de Priscila e Áquila (na Ásia) e então foi para Corinto (na Europa), onde se envolveu sistematicamente no ensino que incluía hermenêutica do Antigo Testamento, cristologia e apologética (At 18.24-28). Mais tarde, quando os cristãos de Corinto quiseram se dividir em facções, vangloriando-se da lealdade a Paulo ou a Apolo, Paulo não permitiria. Sim, Paulo era o evangelista plantador de igrejas. Sim, Apolo era um professor eclesiástico letrado. Mas eles compartilhavam uma missão comum. Paulo insiste que o evangelista (plantador) e o mestre (regador) tenham “um propósito” — ou uma única missão (1Co 3.5-9).

Portanto, o ensino dentro da igreja em todas as suas formas, incluindo aquilo que poderíamos chamar de educação teológica, é uma parte intrínseca da missão. Não é um extra. Não é simplesmente subsidiário da “missão real”. Se levarmos Jesus a sério, o ensino tem de ser incluído dentro de nossa obediência à Grande Comissão. Mais uma vez, o Compromisso da Cidade do Cabo acerta em cheio nesse ponto em particular.

A missão da Igreja na terra é servir à missão de Deus, e a missão da educação teológica é fortalecer e acompanhar a missão da Igreja. A educação teológica serve primeiro para treinar aqueles que lideram a Igreja como professores-pastores, capacitando-os para ensinar a verdade da Palavra de Deus com fidelidade, relevância e clareza; e segundo, para capacitar todo o povo de Deus para a tarefa missional de entender e comunicar com relevância a verdade de Deus em qualquer contexto cultural. A educação teológica envolve guerra espiritual, uma vez que “destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo.[9]

Aqueles de nós que lideram igrejas e agências missionárias precisam reconhecer que a educação teológica é intrinsecamente missional. Aqueles que oferecem educação teológica precisam garantir que ela seja intencionalmente missional, uma vez que seu lugar na área acadêmica não é um fim em si, mas é servir a missão da Igreja no mundo.[10]

4. Servir a sociedade (compaixão e justiça)

 “Onde isso aparece na Grande Comissão?” alguém pode perguntar. Vejo isso claramente implícito naquilo que Jesus diz no versículo 18: “… ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei”. Pois é certo que Jesus teve muitas palavras a dizer a seus discípulos sobre compaixão e justiça.

Mas primeiro vale a pena ouvir os ecos nessa frase em si. Ela soa como um eco bastante claro da maneira como Moisés ou Deus se dirigiram aos israelitas no livro de Deuteronômio, insistindo com eles por repetidas vezes usando a expressão: “Tenham o cuidado de obedecer a todos estes regulamentos que eu (o Senhor, seu Deus) lhes estou dando[11]. E, em Deuteronômio, está bastante claro que aquilo que o Senhor ordenou a Israel deveria refletir o próprio caráter de Deus, ao “andar nos seus caminhos”. Leia, por exemplo, Deuteronômio 10.12-19. Depois de lhes dizer como Deus é e por quem ele mais se importa, o texto imediatamente diz para os israelitas fazerem o mesmo: cuidar dos necessitados.

Pois o Senhor, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Soberano dos soberanos, o grande Deus, poderoso e temível, que não age com parcialidade nem aceita suborno. Ele defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe alimento e roupa. Amem os estrangeiros, pois vocês mesmos foram estrangeiros no Egito. (Dt 10.17-19)

Esse é apenas um único exemplo, que poderia ser multiplicado muitas vezes por todo o Antigo Testamento, daquilo que saturava a mente de Jesus. É o chamado para ser igual a Deus por meio da demonstração de compaixão e da busca pela justiça para o pobre e o necessitado, para o desabrigado, para quem não tem família, para o que não tem terra — assim como Deus fez por Israel em sua necessidade.

Assim, da mesma forma e com o mesmo tom de voz, Jesus diz aos seus discípulos: “Sua missão é fazer discípulos e ensiná-los a obedecer àquilo que lhe ordenei, o que se alinha com tudo o que Deus ordenou a seu povo desde o início”.

Se olharmos para o Evangelho de Mateus, encontraremos essa nota em vários lugares.

  • Mateus 5.6: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”. A palavra “justiça”, às vezes, é confinada ao sentido de que justiça é estar bem com Deus. Ela inclui isso, é claro, mas para Jesus e para o Antigo Testamento, a palavra significava não apenas um relacionamento justo com Deus, mas relacionamentos justos, corretos e honrados na terra. Bem-aventurados são aqueles que têm fome e sede disso, falou Jesus.
  • Mateus 6.33: “Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça”.
  • Mateus 23.23: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas”.

Jesus diz que as coisas realmente importantes (literalmente “as coisas com mais peso”) da Torá são “justiça, misericórdia e humildade”. Mais uma vez, é bem provável que ele tivesse em mente um trio similar ao encontrado em Miquéias 6.8: “Pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus”. Ou o trio encontrado em Zacarias 7.9: “Administrem a verdadeira justiça, mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros”.

A partir desse pano de fundo escriturístico, vem a palavra impressionante de Jesus para seus discípulos: “Vocês são a luz do mundo” (cf. Mt 5.14-16). Mas qual foi sua intenção ao fazer uma declaração tão abrangente? Será que ele quis dizer que eles deveriam ser pregadores da verdade do evangelho que levariam luz às pessoas nas trevas da ignorância e do pecado? Sim, é claro que ele teria incluído isso na tarefa geral da missão apostólica — como Paulo explica, usando a mesma metáfora, em 2 Co 4.4-6. Mas olhe novamente para aquilo que Jesus de fato enfatiza quando explica o que quis dizer com o termo “luz”. “Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus”. Não foi “para que eles possam ouvir seu testemunho impressionante”, mas para “que vejam as suas boas obras”. Eles de fato tinham uma mensagem para pregar — é claro que sim. As boas novas do reino de Deus devem ser compartilhadas. Mas, quando Jesus fala sobre “luz”, ele está se referindo a vidas que são atraentes[12] por serem cheias de bondade, misericórdia, amor, compaixão e justiça.

Jesus está mais uma vez bebendo de uma forte tradição do Antigo Testamento. Deus havia chamado Israel para ser “luz para as nações”, e isso incluía a qualidade da vida do povo como uma sociedade. “Luz” tinha um forte significado ético e social. Ouça Isaías e perceba a combinação de “luz” e “justiça” no sentido explicado acima. A luz brilha a partir de pessoas dedicadas à compaixão e à justiça. E, como Isaías continuaria, tal luz, pelo fato de refletir a luz da própria presença e da glória de Deus entre seu povo, atrairá as nações — é atraente em termos missionais (Is 60.1-3). Ela trará pessoas para glorificarem o Deus vivo. Não foi isso o que Jesus disse?

O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? Aí sim, a sua luz irromperá como a alvorada, e prontamente surgirá a sua cura; a sua retidão irá adiante de você. Se com renúncia própria você beneficiar os famintos e satisfizer o anseio dos aflitos, então a sua luz despontará nas trevas, e a sua noite será como o meio-dia. (Is 58.6-8, 10)

Assim, portanto, Deus ordenou a Israel no Antigo Testamento que fosse um povo comprometido com o exercício prático e terreno de compaixão e justiça. E Jesus tanto endossou esse mandamento a seus discípulos (e, de fato, o aprofundou radicalmente) quanto depois, na Grande Comissão, ordenou que eles o passassem adiante para os novos discípulos que eles fariam (“ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei”). Tanto em sua vida como uma comunidade de discípulos e em sua missão de fazer discípulos, eles deveriam refletir o caráter do Deus que se importa com o pobre e o necessitado, que defende a causa da viúva e do órfão. E eles o fizeram.

Conhecemos, é claro, a empolgante história da missão da igreja primitiva, espalhando-se em todas as direções através do evangelismo e da plantação de igrejas. Mas não devemos desprezar a maneira como os apóstolos e aquelas primeiras comunidades de crentes mostraram um forte compromisso com essa outra dimensão da Grande Comissão: obedecer àquilo que o próprio Jesus havia ensinado sobre compaixão e justiça social e econômica.

Lucas nos conta por duas vezes que a primeira comunidade de seguidores de Jesus em Jerusalém procurava dar à sua unidade espiritual um trabalho prático extra em mutualidade econômica (At 2.44-45; 4.32-38). Eles não acreditavam que deveria haver nenhuma pessoa pobre entre eles enquanto tivessem condições de fazer algo em relação a isso. Quer conscientemente ou não, eles estavam cumprindo outra palavra de Deus em Deuteronômio (At 4.43 é quase uma tradução literal em grego do texto em Dt 15.4).

A primeira viagem missionária de Paulo com Barnabé aconteceu de fato não quando eles foram enviados pela igreja de Antioquia para pregar o evangelho na Ásia Menor (At 13), mas quando foram enviados anteriormente por aquela mesma igreja para trazer alívio à fome dos crentes necessitados em Jerusalém (At 11.27-30). Essa lembrança deve ter sido parte da razão pela qual Paulo realizou esforços constantes para levantar fundos entre as igrejas gentias na Grécia para o apoio aos pobres na Judeia. Claramente, Paulo havia ensinado tal responsabilidade àqueles novos discípulos, a ponto de eles mesmos suplicarem pelo privilégio de participar dela (2Co 8.9). De fato, em um momento muito significativo na carreira missionária de Paulo, quando ele recebeu a aceitação (“a mão direita” que lhes foi estendida, cf. Gl 2.9) por parte dos apóstolos de Jerusalém para a mensagem do evangelho que ele estava pregando, Paulo adiciona este comentário revelador, mostrando que incluía o cuidado aos pobres como uma parte integral de seu trabalho missionário: “Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o que me esforcei por fazer”(Gl 2.10).

Essa ênfase na prática da compaixão econômica e social ecoa em outros lugares. As passagens a seguir falam por si mesmas e não nos deixam nenhuma dúvida sobre a importância desse tipo de obediência: 1Tm 6.17-19; Tg 2.14-17; 1Jo 3.17-18. Jesus e os apóstolos teriam todos concordado com a afirmação simples de Pv 29.7: “Os justos levam em conta os direitos dos pobres, mas os ímpios nem se importam com isso”.

Mais uma vez, o Compromisso da Cidade do Cabo fornece uma rica fundação bíblica para essa dimensão da missão:

Nós amamos todos aqueles que vivem em pobreza e sofrimento no mundo. A Bíblia nos diz que o Senhor tem amor para com todas as suas criaturas, defende a causa do oprimido, ama o estrangeiro, alimenta o faminto, sustenta o órfão e a viúva”.[13] A Bíblia também mostra que Deus deseja fazer essas coisas através de seres humanos comprometidos com tal ação. Deus responsabiliza principalmente aqueles que são nomeados para liderança política ou jurídica na sociedade,[14] mas ao povo de Deus também foi ordenado – através da lei e dos profetas, dos Salmos e Provérbios, de Jesus e Paulo, Tiago e João – que refletisse o amor e a justiça de Deus em atos de amor e justiça para com o necessitado.”[15]

“Tal amor pelo pobre exige não apenas nosso amor, nossa misericórdia e nossas obras de compaixão, mas também que façamos justiça, expondo e nos opondo a tudo o que oprime e explora o pobre. “Não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam.[16][17]

Penso eu que missão integral nada mais é do que colocar carne na frase que Paulo usa para resumir seu esforço missional completo entre todas as nações, no início e no final de Romanos: “A obediência que vem pela fé”. Somos chamados à integração da fé e das obras, de palavras e atos, de proclamação e demonstração do evangelho.

5. Cuidar da criação

 De fato, poderíamos ter iniciado aqui, com a criação, uma vez que é onde Jesus inicia na Grande Comissão. Como eu disse anteriormente, a Grande Comissão não começa com uma ordem, mas com uma afirmação: “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra.” Essa combinação de céu e terra é uma maneira típica das Escrituras de se referir a toda a criação. Não é onde Jesus começa apenas, mas também é onde a Bíblia começa (Gn 1.1) e onde a Bíblia termina (com um novo céu e uma nova terra — a nova criação de Ap 21-22). A missão completa de Deus na história bíblica vai da criação à nova criação, e Jesus se coloca no centro dela, afirmando ser o Senhor sobre tudo. Jesus não está apenas “lá no céu”. Jesus é Senhor do céu da terra.

Deuteronômio, mais uma vez, fornece o pano de fundo para a maravilhosa declaração que Jesus faz em Mateus 28.18. Ouça Moisés falando aos israelitas sobre o Deus deles: “Reconheçam isso hoje, e ponham no coração que o Senhor é Deus em cima nos céus e embaixo na terra. Não há nenhum outro (Dt 4.39).

YHWH, o Senhor Deus de Israel, é Deus do céu e da terra (ou seja, de toda a criação). Essa é uma verdade sobre Deus que o Antigo Testamento repete por todo lugar, especialmente nos Salmos. E Jesus, em pé no Monte da Ascenção, faz uso dessa verdade sobre o Deus a quem todos os seus seguidores conheciam e adoravam e toma-a para si próprio. Não é surpresa que Mateus registre que quando encontraram Jesus ali, “eles o adoraram” (embora ele também destaque com honestidade que alguns duvidaram). Eles agora sabiam que, ao se encontrarem com o Cristo crucificado e ressurreto, estavam na presença do Deus vivo, criador do céu e da terra.

Seja o que for que nossa missão inclua no cumprimento da Grande Comissão, isso pressupõe que Jesus é Senhor da criação, que a terra pertence a ele. Somos ocupantes e administradores de sua propriedade.

Em sua maneira usual, Paulo expande a verdade cósmica e criacionista sobre Cristo em uma das passagens mais impressionantes que ele já escreveu. Leia Cl 1.15-20 por inteiro. Aqui está apenas um extrato. Perceba quantas vezes Paulo se refere a “céu e terra” ou a “todas as coisas” — que era outra maneira judaica de se referir ao universo criado como um todo.

Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criação, pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra…; todas as coisas foram criadas por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste… Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz.

O universo inteiro, incluindo nosso planeta Terra, foi criado por e para Cristo, é sustentado em existência por Cristo, pertence a Cristo como sua herança e foi redimido por Cristo através da cruz. A mesma verdade cósmica é declarada de maneiras diferentes em João 1 e em Hebreus 1.

Sendo assim, se a terra onde vivemos é propriedade de Jesus, pertencendo a ele por direito de criação e redenção, não podemos separar nossa submissão pessoal a Jesus como Senhor da maneira como pensamos na terra e de como agimos nela.

O uso piedoso e a administração cuidadosa dos recursos da terra, juntamente com defesa ecológica e ação específicas, são dimensões legítimas da missão cristã. A missão cristã não pode excluir nossa missão humana primária, que era exercer governo piedoso sobre a criação ao servi-la e mantê-la (Gn 1.26-28, combinado com Gn 2.15).

A terra é criada, sustentada e redimida por Cristo.[18] Não podemos dizer que amamos a Deus enquanto destruímos o que pertence a Cristo por direito de criação, redenção e herança. Nós [como cristãos] cuidamos da terra e de maneira responsável fazemos uso dos seus abundantes recursos, não de acordo com a mentalidade deste mundo secular, mas por causa do Senhor. Se Jesus é o Senhor de toda a terra, não podemos desvincular nosso relacionamento com Cristo da forma como agimos em relação à terra. Proclamar o evangelho que diz que “Jesus é Senhor” é proclamar o evangelho que inclui a terra, uma vez que o senhorio de Cristo é sobre toda a criação. O cuidado com a criação é, portanto, uma questão do evangelho dentro do Senhorio de Cristo.

Tal amor pela criação de Deus exige que nos arrependamos da nossa contribuição na destruição, no desperdício e na poluição dos recursos da terra e do nosso consentimento com a idolatria tóxica do consumismo. Em vez disso, nos comprometemos com urgente e profética responsabilidade ecológica. Apoiamos os cristãos cujo chamado missionário particular seja principalmente em defesa e ação em favor do meio ambiente, bem como aqueles comprometidos com o cumprimento do mandato divino de proporcionar bem estar e atender as necessidades humanas, exercendo domínio e mordomia responsáveis.[19]

Para mim, é desconcertante perceber que existam tantos cristãos, incluindo infelizmente (e especialmente) aqueles que afirmam ser evangélicos, para os quais essa questão de cuidado com a criação — ou preocupação ecológica e ação — seja fraca e negligenciada, na melhor das hipóteses, e até mesmo rejeitada com preconceito hostil, na pior. Parece-me que a razão para isso seja uma teologia da criação bastante defeituosa entre os evangélicos contemporâneos. Falando de maneira bem direta, algumas pessoas parecem ter bíblias com defeito, nas quais as duas primeiras e as duas últimas páginas foram misteriosamente arrancadas. Elas começam em Gênesis 3, porque sabem tudo sobre pecado. E terminam em Apocalipse 20, porque sabem tudo sobre o dia do julgamento. E possuem sua solução pessoal para o problema do pecado e sua segurança pessoal para o dia do julgamento, fornecida naturalmente pela morte e ressurreição de Jesus. Glória a Deus, também acredito nisso. Mas a Bíblia tem uma história muito maior, a história de toda a criação, dentro da qual minha salvação pessoal se encaixa. E o Senhorio de Cristo cobre a história inteira. Assim, preciso vê-lo como Senhor do meu ambiente físico assim como minha salvação espiritual, e comportar-me como discípulo dele em relação a ambos.

Não há espaço aqui para explorar o ensinamento bíblico completo sobre a criação que faz com que seja inteiramente legítimo incluir o cuidado com a criação dentro do espectro da missão cristã. Em outros lugares eu forneço uma pesquisa sobre a bondade, a glória e o objetivo da criação.[20] 

Conclusão: e daí?

Finalmente, quais implicações podemos tirar da análise das cinco marcas da missão, ou dos três pontos focais da missão, no que se refere à Grande Comissão? Três pontos parecem se destacar.

1. A missão toda de Deus épara toda a igreja de Deus (mas todos não conseguem fazer tudo)

Missão não é uma atividade especializada para alguns profissionais (missionários ou participantes de missões). A igreja como um todo existe pela missão de Deus. Como foi dito, não se trata tanto de Deus ter uma missão para a igreja (a ser cumprida por alguns profissionais eclesiásticos pagos), mas de que Deus tem a igreja para sua missão. A igreja como um todo é, nesse sentido, missional.[21] Tudo o que a igreja é e faz deve estar conectado de alguma maneira à nossa própria razão de existir. É por isso que não gosto da frase tão usada que diz “se tudo é missão, nada é missão”. Normalmente isso surge a partir de um temor de que se tudo o que uma igreja faz for descrito como “missão”, então não sobrará nenhuma categoria especial para o evangelismo e o envio de missionários. Espero que esteja claro, a partir do que eu disse acima sobre a centralidade do evangelismo e do evangelho, que estou totalmente comprometido com a importância dessas duas coisas. Mas elas simplesmente não são o todo daquilo que creio que a Bíblia inclui na missão da igreja, no sentido de tudo para o que Deus chamou a igreja à existência. Em termos bíblicos, seria mais correto simplesmente dizer: “Se tudo é missão, tudo é missão”. A igreja inteira é chamada a participar de toda a missão de Deus.

Contudo, não se sobrecarregue! Não é o caso de todos fazerem tudo, mas de todos serem intencionais em relação a alguma coisa, de acordo com o dom e a orientação de Deus. Às vezes, depois de um sermão ou de uma palestra sobre missão holística, as pessoas dizem: “Você fala sobre todos esses tipos diferentes de missão, mas sou apenas um; não consigo fazer tudo isso!”. Diante disso, minha resposta é: “Espero que Deus pense assim também, pois essa é a razão de ele ter criado a igreja”. É preciso a igreja inteira para que haja envolvimento na missão inteira de Deus.

2. Toda amissão da igreja inclui todos os membros da igreja (mas temos diferentes chamados e envios)

Se a igreja inteira existe para a missão de Deus, então o mesmo acontece com todos os seus membros. A igreja é missional por definição, de modo que todos os cristãos são missionais por chamado. Precisamos desafiar radicalmente o paradigma errôneo de que apenas alguns membros são “participantes de missões”. Em que isso transforma todos os outros? Não participantes de missões? Participantes dorminhocos? Ora, naturalmente usamos o termo “participantes de missões” para nos referir àqueles que são apoiados e enviados pela igreja e foram para o exterior ou para algum outro tipo de missão transcultural. Então, que os chamemos disso — “participantes de missões transculturais” ou “participantes de missões internacionais” — para não darmos a impressão de que missão não é para o resto de nós. Como disse Hugh Palmer, pastor de All Souls, Langham Place, num certo domingo: “Esta igreja envia 1.500 participantes para a missão todas as semanas — e alguns deles estão servindo no exterior”, o que deixa implícito, é claro, que a maioria estava entrando no campo missionário do mundo imediatamente depois de passar pelas portas da igreja, vivendo e trabalhando ali em seu trabalho e chamado diários. O campo missionário é todo lugar onde a fé encontra a descrença, onde o reino de Deus na vida de um crente encontra o reino deste mundo. Essa é a linha de frente da missão. E isso pode estar na porta ao lado ou no continente ao lado.

Precisamos fazer distinção entre o chamado missional geral do qual todos nós participamos, e os dons e chamados específicos que Deus colocará sobre pessoas diferentes de acordo com sua graça soberana. Todos nós precisamos estar prontos para dar testemunho de nossa fé, mas alguns são especialmente dotados como evangelistas. Todos nós devemos seguir o versículo: “Habite ricamente em vocês a palavra de Cristo; ensinem e aconselhem-se uns aos outros”. Mas alguns são especificamente dotados como mestres. Todos nós devemos estar prontos para realizar atos de bondade e falar daquilo que é justo e reto, mas alguns são especificamente chamados a trabalhar na política e na advocacia judicial, ou a lidar com a pobreza global, a fome e as doenças. Todos nós devemos viver de maneira responsável em nosso uso e cuidado da criação, mas alguns são chamados e equipados a buscar a biologia ambiental e a fazer pesquisa cientifica ecologicamente apropriada e advocacia.

3. A missão de todo membro inclui a vida como um todo (não existe divisão entre secular e sagrado)

Se o último tópico nos chama a uma mudança de paradigma sobre o conceito de missão da igreja, então este chama a uma mudança de perspectiva pessoal em relação à vida. Precisamos romper o hábito enraizado de pensar em duas esferas — a secular e a sacra. Isso se tornou um paradigma tão dominante que mal temos consciência dele. Simplesmente parece que as coisas são assim. Existe uma parte “religiosa” da vida, na qual Deus está interessado — igreja, atividades cristãs, adoração e oração, evangelismo etc. Então, existe o resto da vida, onde a maioria de nós passa a maior parte de nosso tempo — trabalho, família, lazer. E presumimos que o objetivo geral da segunda esfera é apenas nos dar um pouco de dinheiro e tempo livre para fazermos o que pudermos para “apoiar” a primeira esfera (onde os cristãos verdadeiramente bons vivem, como pessoas em “tempo integral”, pagas pela igreja).

Essa é uma divisão tóxica e pervertida. As pessoas ficam pensando que aquilo que fazem na maior parte do tempo (trabalhar no mundo “secular”) não tem valor para Deus ou para a eternidade, enquanto podem dar apenas tempo livre e algum dinheiro para aquela coisa com a qual elas supõem que Deus realmente se importa.

Mas a Grande Comissão começa nos dizendo que Jesus é Senhor de toda a vida dentro de sua criação completa. Jesus é Senhor do local de trabalho e da família, Senhor das ruas e dos céus, Senhor das escolas e das favelas, Senhor dos hospitais e das residências, Senhor dos governos, negócios, academia, esporte e cultura, Senhor de todo tempo e espaço.

Assim, o discipulado e a missão para os quais Jesus nos chama é para a vida como um todo. Se Jesus é Senhor do céu e da terra, então não há lugar, trabalho, vocação, dia ou noite, ou parte da vida que seja dispensada do restante daquilo que ele diz na Grande Comissão e tudo a que ele se refere no restante do Evangelho.

Missão não é compromisso na agenda a ser cumprido por pessoas que receberam a ordem “façam isso pelo resto de nós.” Missão é o modo de existência para a vida como um todo de todo membro de toda igreja.

Todas as referências ao Compromisso foram extraídas de http://www.aliancaevangelica.org.br/index.php/movimento-de-lausanne/item/78-compromisso-da-cidade-do-cabo

 

[1] Esta é uma convicção que exploro em profundidade e amplitude considerável no livro The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative (InterVarsity Press: 2006).

[2] Bonds of Affection-1984 ACC-6 p49, Mission in a Broken World-1990 ACC-8 p. 101.

Veja: <http://www.anglicancommunion.org/identity/marks-of-mission.aspx>. Desde 1984, tem havido debate constante em torno das “cinco marcas”, bem como alguma modificação na terminologia. Mas a força essencial delas permanece, até mesmo debaixo de diferentes expressões. Por exemplo: A Junta de Missões Anglicanas na Austrália recentemente as reformulou como se segue:

  1. Testemunhar do amor salvador, perdoador e reconciliador de Cristo a todas as pessoas;
  2. Construir comunidades de fé receptivas e transformadoras;
  3. Manter-se em solidariedade com o pobre e o necessitado;
  4. Desafiar a violência, a injustiça e a opressão, e trabalhar por paz e a reconciliação;
  5. Proteger, cuidar e renovar a vida em nosso planeta.

[3]http://www.anglicannews.org/news/2013/01/abm-welcomes-change-to-the-marks-of-mission.aspx>.

[4]  Compromisso da Cidade do Cabo I.7a.

[5] O Pacto de Lausanne, Parágrafos 4 e 5.

[6] Declaração de Miquéias Sobre Missão Integral.

[7] Compromisso da Cidade do Cabo IID.1.e

[8] De um trabalho não publicado e apresentado no Fórum de Líderes de Missões no Overseas Ministry Studies Centre, New Haven, Connecticut, EUA.

[9] 2Co 10.4-5.

[10] Compromisso da Cidade do Cabo, IIF.4.

[11] Isso não seria surpresa, uma vez que Jesus meditou profundamente sobre Deuteronômio, fazendo citações daquele livro por três vezes quando foi tentando por Satanás no deserto.

[12] A palavra traduzida como “boas” é kalos, que também significa “bela”, não apenas moralmente correta.

[13] Sl145.9, 13, 17; 147.7-9; Dt 10.17-18.

[14] Gn 18.19; Ex 23.6-9; Dt 16.18-20; Jo 29.7-17; Sl 72.4, 12-14; 82; Pv 31.4-9; Jr 22.1-3; Dn 4.27.

[15] Ex 22.21-27; Lv 19.33-34; Dt 10.18-19; 15.7-11; Is 1.16-17; 58.6-9; Am 5.11-15, 21-24; Sl 112; Jo 31.13-23; Pv 14.31; 19.17; 29.7; Mt 25.31-46; Lc 14.12-14; Gl 2.10; 2Co 8-9; Rm 15.25-27; 1Tm 6.17-19; Tg 1.27; 2.14-17; 1Jo 3.16-18.

[16] Pacto de Lausanne Parágrafo 5.

[17] Compromisso da Cidade do Cabo I.7.c.

[18] Cl 1.15-20; Hb 1.2-3.

[19] Compromisso da Cidade do Cabo, I.7.a.

[20] Veja The Mission of God, cap. 12; Old Testament Ethics for the People of God (IVP: 2004), cap. 4; e The Mission of God’s People (Zondervan: 2010), cap. 3.

[21] Um amigo meu da Dinamarca, Birger Nygaard, certa vez comentou que achava que a expressão “igreja missional” era uma redundância. É parecido, disse ele, com “mulher fêmea”. Se não é fêmea, não é uma mulher. Do mesmo modo, se não for missional, não é igreja. Pode ser um grupo de pessoas fazendo coisas religiosas juntas, mas se não estiverem comprometidas com a missão de Deus no mundo, elas perderam (de maneira bastante literal) o plano.

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