A ‘ortodoxia’ evangélica, os líderes de missões e os muçulmanos seguidores de Cristo

por Marcos Amado

Abstrato

Este artigo tem como objetivo analisar se a polarização existente hoje na teologia evangélica brasileira entre os que se veem como defensores de uma verdadeira ortodoxia evangélica, e os adeptos da Teologia da Missão Integral está afetando, e consequentemente enrijecendo, o posicionamento dos líderes brasileiros de missões em relação a abordagens missiológicas altamente contextualizadas que podem ser consideradas ‘pouco ortodoxas’, como por exemplo o movimento dos ‘muçulmanos seguidores de Cristo’.

Os Muçulmanos Seguidores de Cristo

Durante séculos o mundo muçulmano tem sido considerado um dos grandes desafios para a proclamação do Evangelho. No entanto, nas últimas décadas é possível notar mudanças significativas nesse cenário.

Apesar do aumento do radicalismo islâmico e das perseguições sofridas por cristãos que vivem em países majoritariamente muçulmanos, em um recente livro publicado em português David Garrison nos traz as boas novas de que “Um vento está soprando através da Casa do Islã… Movimentos muçulmanos em direção a Jesus Cristo estão acontecendo em um número jamais visto anteriormente” (Garrison 2016, 21). Entre esses movimentos estão os chamados “muçulmanos seguidores de Cristo”, comumente identificados na literatura missiológica como “Insider Movements” ou Movimentos Internos (MIs).

O termo é usado no plural, pois há vários movimentos independentes em diferentes partes do mundo muçulmano que podem apresentar características distintas. Porém, a descrição mais sucinta provém de John Travis o criador da escala de contextualização conhecida como “Espectro C1-C6” (1), sendo que os Movimentos Internos são categorizados como ‘C5’ pelos missiólogos e é definido por Travis (2009a, 691) da seguinte maneira:

Os crentes C5 permanecem legal e socialmente dentro da comunidade islâmica. Um tanto semelhante ao movimento de judeus messiânicos, os aspectos da teologia islâmica incompatíveis com a Bíblia são rejeitados –ou reinterpretados, se possível. A participação no culto comunitário islâmico varia de pessoa para pessoa e de grupo para grupo. Os crentes C5 encontram-se regularmente com outros crentes C5 e compartilham sua fé com muçulmanos não salvos. Os muçulmanos não salvos podem ver os crentes C5 como teologicamente desviados e vir a expulsa-los da comunidade islâmica. Onde vilarejos inteiros aceitam a Cristo, o C5 pode resultar em “mesquitas messiânicas”. Os crentes C5 são vistos como muçulmanos pela comunidade muçulmana e se identificam como muçulmanos que seguem a Isa [Jesus], o Messias

No entanto, ao redor do mundo não há unanimidade entre os evangélicos quanto a aceitação ou não desse movimento, o que gera posicionamentos antagônicos. Alguns entendem que o movimento é sincrético, já que admite elementos que são entendidos por muitos como anticristãos. Outros o veem como um movimento do Espírito, semelhante ao que aconteceu quando o Evangelho chegou aos povos gentios no primeiro século da era cristã.

No Brasil não é diferente. Apesar de as discussões sobre o assunto em nosso país ainda estarem restritas principalmente ao contexto acadêmico evangélico e entre alguns missionários conhecedores do assunto, a divisão de opiniões é bastante acentuada.

Em termos gerais, não seria fácil para um evangélico brasileiro aceitar, por exemplo, um árabe sírio, que se autodenomina um “muçulmano seguidor de Cristo”, declarar com toda franqueza:

Eu não posso dizer que sou doutrinariamente infalível. Um dia, quando eu estiver no paraíso, meu Senhor me mostrará longas listas de erros. Porém, eles serão resultados dos limites da minha mente e das fraquezas do meu caráter, e não por eu não estar disposto a negar minha herança [cultural e religiosa]” (Mallouhi 2015, pos. 18436). (2)

Essa afirmação resume bem alguns dilemas que encontramos no Brasil entre aqueles que não são favoráveis aos Movimentos Internos, como veremos mais adiante. Nesse exemplo temos um árabe, nascido em uma família muçulmana, que teve um encontro pessoal com o Senhor e levou muitos muçulmanos aos pés de Cristo (3), dizendo, em pouquíssimas palavras, o que muitos evangélicos brasileiros se recusariam a aceitar (4) : a possibilidade de que um verdadeiro seguidor de Jesus, oriundo de um contexto muçulmano, não esteja disposto a rejeitar sua herança sociocultural e religiosa.

Mas se, em vez de olharmos para os evangélicos brasileiros em geral nós olhássemos especificamente para os ‘Lideres do Movimento Missionário Evangélico Brasileiro’ (doravante chamados ‘líderes brasileiros de missões’, ‘líderes do movimento missionário’ ou simplesmente ‘líderes de missões’), será que os membros desse grupo teriam a mesma reação de estranhamento em relação a esse assunto? Afinal de contas, são eles que influenciarão a igreja e os missionários brasileiros nesse aspecto.

Para encontrar a resposta a essa pergunta, uma pesquisa foi feita entre líderes das principais organizações missionárias brasileiras e os resultados podem representar uma grande surpresa para muitos, principalmente quando consideramos o atual contexto evangélico brasileiro, conforme descrito a seguir.

Os Evangélicos e o Movimento Missionário Brasileiro: Percepções ou Realidades?

Ao longo das duas décadas em que vivi no campo missionário (envolvido com organizações cristãs que ministravam entre os muçulmanos em países majoritariamente islâmicos) aconteceram importantes mudanças tecnológicas, sociológicas e econômicas que afetaram profundamente a maior parte do mundo. No entanto, quando voltei ao Brasil em 2006, duas percepções me chamaram a atenção.

Primeiramente, parecia que certos setores do evangelicalismo brasileiro estavam fazendo grandes investimento na publicação de livros, comunicação via mídias sociais, conferências, cursos a distância e outros eventos especiais para (a) reafirmar o que muitos creem ser uma teologia evangélica verdadeiramente ortodoxa e (b) mostrar que existem perigos reais de o evangelicalismo brasileiro ser desvirtuado pelo hipotético liberalismo daqueles que apoiam o chamado ‘Evangelho Integral’. De acordo com os que sustentam a reafirmação de uma única e verdadeira ortodoxia evangélica, esse ‘Evangelho Integral’, pelo menos na sua presente manifestação, pode levar-nos a um evangelho antropocêntrico, influenciado pela Teologia da Libertação e pelo marxismo. Na prática, isso gerou uma (desnecessária) divisão entre ‘ortodoxos’ e ‘liberais’, e isso pode ser visto a olhos nus nas publicações e debates online. Um exemplo claro foi a grande discussão ocorrida em 2014, entre os defensores de uma ‘verdadeira’ ortodoxia evangélica e alguns representantes da Teologia da Missão Integral (TMI) (4). Um dos ‘pivôs’ dessa discussão afirmou:

Se a MI (Missão Integral) nasce marxista, eu não estou totalmente à vontade para afirmar. Se a MI é toda marxista, também não. Mas que há traços de marxismo em seu desenvolvimento e que o que temos recebido mais recentemente no Brasil e tem se tornado mais popular está marcado por tal influência, creio ser facilmente perceptível (6).

Outro teólogo que teve um papel central nessa polêmica respondeu a um dos partidários da TMI:

Os pontos de controvérsia são relacionados ao referencial teórico da TMI e sua relação com a Teologia da Libertação – por sinal, você não tocou na “Carta Aberta” na questão do uso do marxismo, sim ou não, pela TMI, que é uma das críticas mais feitas ao movimento (7).

A segunda percepção foi a de que, apesar das mudanças pelas quais o mundo tinha passado, parecia que o treinamento missionário oferecido por várias instituições teológicas e missiológicas brasileiras tinha permanecido estático (8) no seu conteúdo e sem levar em conta algumas tendências emergentes nos diferentes campos missionários. Um número significativo dessas instituições continuou oferecendo os mesmos tópicos, os mesmos textos, e a mesma ênfase em uma definição reducionista da missão da igreja. Essa definição era normalmente descrita como composta apenas por evangelismo, discipulado e estabelecimento de igrejas. A bem da verdade, a definição podia ser ainda mais reducionista. Em um recente manifesto público apresentado em uma importante conferência de pastores em São Paulo, com aproximadamente mil e quinhentos líderes evangélicos brasileiros, a missão da igreja foi definida como consistindo “na pregação das Escrituras, na administração correta do Batismo e da Ceia.” (9)   (Editora Vida Nova 2016).

Tais percepções eram aguçadas pelo fato de em reuniões, conferências e conversas com líderes de missões não ser incomum ouvir líderes de missões (a) afirmando que os verdadeiros missionários são aqueles que se atêm à já mencionada definição reducionista da missão, (b) defendendo zelosamente o Movimento Missionário contra estratégias que enfatizam um evangelho supostamente antropocêntrico e pouco ortodoxo e (c) sentindo-se extremamente desconfortáveis com abordagens de contextualização mais ousadas, o que normalmente significa estratégias de contextualização acima do nível C3.

Um exemplo ocorreu quando, tempos atrás, depois de compartilhar alguns testemunhos que eu havia escutado de primeira mão sobre os muçulmanos seguidores de Cristo (10), um líder muito influente de uma excelente instituição brasileira de treinamento missiológico expressou que testemunhos assim sequer deveriam ser mencionados para os evangélicos brasileiros, tamanho o perigo que eles representam. Outra pessoa, também de uma respeitada instituição missiológica, tinha dúvidas sobre conversar comigo sobre alguns temas missiológicos pois acreditava que eu tinha uma posição C4-C5 dentro do espectro de contextualização desenvolvido por Travis, apesar de nunca termos conversado sobre o referido tópico.

Como se tudo isso não fosse suficiente, recentemente recebi uma comunicação eletrônica de um respeitado mobilizador de missões, perguntando-me se era verdade que havia um movimento entre os evangélicos que estava tentando unir o islã e o cristianismo (ou seja, os muçulmanos seguidores de Cristo), criando uma nova religião chamada ‘crislam’. Ele mencionou um livro ainda não publicado no Brasil (Lingel 2011b), como a razão de sua pergunta e da origem do nome da suposta nova religião.

Essas percepções (ou deveríamos chama-las de realidades?) poderiam facilmente levar-nos à conclusão de que os líderes brasileiros de missões, influenciados pelo rigor teológico dos defensores de uma almejada ortodoxia verdadeiramente evangélica, e temerosos de perder a essência do Evangelho, não estariam preparados a considerar abordagens missiológicas altamente contextualizadas, como é o caso dos Movimentos Internos. Caso essa premissa fosse verdadeira, isso os indisporia a refletir sobre quais seriam os meios mais apropriados para responder aos desafios missiológicos contemporâneos, com a inevitável consequência de tornar o movimento missionário brasileiro menos propenso a considerar novas abordagens missiológicas.

Mas, será que essa seria a conclusão correta?  Esse assunto é especialmente importante quando pensamos no Oriente Médio (11), região onde encontramos alguns dos países mais fechados para o Evangelho e uma grande necessidade de compreender adequadamente as diferentes culturas ali existentes. Somente dessa forma seria possível apresentar a Jesus (e não uma religião) de maneira fidedigna e contextualizada, que faça sentido para as pessoas imersas nesses contextos sociais e religiosos.

Hipótese e Pressuposições

Considerando o pano de fundo apresentado no ponto anterior, comecei este projeto com a hipótese de que a maioria dos líderes brasileiros de missões não aceitaria os Movimentos Internos entre os muçulmanos como uma abordagem aceitável de contextualização. Eu pressupunha que esses movimentos seriam percebidos mais como sincretismo do que como contextualização. A pergunta inicial que serviu como base para esta pesquisa foi “Como os líderes brasileiros de missões reagem aos Movimentos Internos que ocorrem entre os muçulmanos?”

Os dados que surgiram a partir dessa pesquisa podem nos ajudar a entender o dinamismo presente e futuro do Movimento Missionário Brasileiro e nos dão alguma indicação sobre o futuro da reflexão missiológica no Brasil em relação às abordagens consideradas como C5. Isso tem uma importância ainda maior principalmente se a polarização entre ‘liberais’ e ‘ortodoxos’, que está afetando o nosso movimento evangélico como um todo, estiver afetando, pelo menos em parte, os líderes de missões.

Tentando descrever os Movimentos Internos

Com o objetivo de preparar uma pesquisa que seria útil para descobrir como um grupo de líderes de missões brasileiros reagem aos Movimentos Internos, era importante apresentar uma descrição que mostrasse os principais aspectos dos diferentes MIs.

Os Movimentos Internos ou movimentos que se assemelham a eles, existem há alguns séculos. Porém, foi o já mencionado John Travis que desempenhou um papel importante para a descrição das características centrais desses movimentos em contextos muçulmanos. Ao desenvolver o ‘Espectro C1-C6’ ele foi fundamental (não sem ter recebido muita crítica) na ajuda àqueles que ministravam entre os muçulmanos, para que pudessem entender os diferentes níveis de contextualização que já ocorriam entre os muçulmanos. De acordo com Travis nenhum modelo é melhor que o outro (2015a, pos. 11277). Porém, o nível ‘C5’ é aquele que melhor descreve os Movimentos Internos, como vimos acima.

No entanto, como resultado da existência de uma variedade de movimentos entre os muçulmanos que são caracterizados como C5, muitos missionários e missiólogos não consideram que a descrição feita por Travis seja satisfatória. Eles acreditam que existem elementos importantes que estão faltando. Justamente por não serem homogêneos, eles são descritos de formas variadas e conflitantes por acadêmicos e missionários que estão envolvidos na reflexão missiológica. Sendo assim, não é nenhuma surpresa que diferentes autores deixem claro o quão elusivo os MIs podem ser (Burns 2011, Houssney 2010, McCurry 2013a, Ullah 2011, Zegers, etc.).

As preocupações desses estudiosos são importantes. Elas chamam nossa atenção (a) para a possibilidade real de que alguns desses grupos caiam no sincretismo e (b) para o que Hiebert chama de contextualização acrítica, alertando-nos para o fato de que “contextualização acrítica tem uma visão débil do pecado e tende a afirmar que as culturas e as organizações sociais são essencialmente boas”, esquecendo-se de que o pecado é individual, mas também tem uma dimensão social (Hiebert 1987, 109).  Além disso, diz Hiebert, “um chamado à contextualização sem que haja igualmente um chamado para não transigir com o Evangelho abre as portas para o sincretismo” (Hiebert 1987, 109).

Porém, muito dos que estão diretamente envolvidos em pesquisar, ou estão trabalhando com grupos que podem ser caracterizados como C5, não aceitam as críticas desses autores, pois, segundo eles, essas características não estão necessariamente presentes em todos os Movimentos Internos.

E isso nos coloca em um dilema. Ao se tentar fazer uma pesquisa com líderes de missões brasileiros, qual deveria ser a descrição apresentada? A mais sucinta, descrita por Travis, ou as que expressam as (válidas) preocupações de diferentes acadêmicos e missionários, mas que são consideradas por muitos como aspectos não-centrais, ou mesmo existentes, nos Movimentos Internos?

O ponto aqui não é definir qual explicação é a correta, pois não é possível encontrar uma que seja aceita por todos. Diante desse ponto de inflexão, e considerando as duas posições, decidi levar em conta as explicações dadas pelos principais proponentes dos MIs (que me pareceram bem plausíveis), e escrevi uma descrição que inclui somente os aspectos comuns dos Movimentos Internos conforme apresentados pelos que apoiam essa abordagem. Os que não são considerados normativos, que podem ser encontrados em alguns dos movimentos C5, mas não são representativos dos movimentos como um todo, não foram incluídos. Essa descrição foi baseada em vários artigos e livros (Barnett 2013, Woodberry 2015b, Mallouhi 2015, Travis 2015b, McManus 2015, Talman 2015b, Woodberry 2015a), assim como em conversas que eu tive com pessoas que estão envolvidos com os movimentos C5.

Esta, portanto, é a descrição que foi enviada por e-mail aos líderes de missões que participaram da pesquisa:

Os ‘Movimentos Internos’ existentes no Mundo Muçulmano (conhecidos em inglês como ‘Insider Movements’), são grupos de pessoas que se auto identificam como ‘Muçulmanos seguidores de Jesus’ e participam de reuniões dirigidas por líderes nacionais. Nessas reuniões a Bíblia é obedecida como a Palavra de Deus e existe transformação espiritual. Alguns deles, além de se reunirem regularmente com outros ‘Muçulmanos seguidores de Cristo’ em reuniões caseiras, continuam indo à mesquita para orar em nome de Jesus. Eles continuam fazendo parte de suas famílias e comunidades muçulmanas, e testemunham que o Jesus ressurreto é Senhor e Salvador de suas vidas. Isso causa um efeito multiplicador, aumentando o número de pessoas que se identificam como ‘Muçulmanos seguidores de Cristo’. Aqueles que fazem parte dos ‘Movimentos Internos’ afirmam que, ao mesmo tempo que eles são fiéis à Bíblia, qualquer prática ou crença existente na sua comunidade sociorreligiosa (muçulmana) que não contradiz a Bíblia será mantida, enquanto que outras práticas e crenças serão rejeitadas ou reinterpretadas. Mesmo reunindo-se regularmente para comunhão, oração e estudo da Bíblia, eles não se identificam como cristãos, não se unem a uma denominação, nem se associam a uma das tradições cristãs. Isso se deve à conotação negativa que as palavras ‘cristão’ e ‘cristianismo’ adquiriram em seu contexto cultural. Um número significativo desses ‘Muçulmanos seguidores de Cristo’ começa sua nova jornada de fé por meio de visões e sonhos em que Jesus lhes aparece. Em alguns casos o conhecimento prévio que essas pessoas tinham de Jesus teve sua origem no Alcorão.”

Essa descrição não tem o objetivo de defender e nem mesmo criticar os Movimentos Internos, mas foi uma tentativa de possibilitar que os participantes da pesquisa dessem suas respostas a partir de um mesmo conjunto de características centrais aos MIs de acordo com aqueles que estão diretamente envolvidos com o assunto. Mesmo assim, veremos nos resultados descritos abaixo que os líderes de missões fizeram ressalvas sobre a descrição apresentada.

Essa descrição (exceto as duas últimas frases) foi enviada a três especialistas cristãos sobre o mundo muçulmano (um árabe, um ex-muçulmano africano e um europeu) perguntando se ela oferecia uma explicação adequada dos Movimentos Internos. Todos responderam positivamente(12).

As perguntas para essa pesquisa foram enviadas para 117 líderes. Trinta e sete responderam, resultando em uma taxa de resposta de quase 32%, que é considerada como suficientemente representativa pelos especialistas, considerando-se que o público alvo escolhido foram os líderes das principais instituições missionárias brasileiras e os que responderam realmente possuem forte influência dentro do nosso movimento missionário.

Resultado: um Movimento Missionário Consciente e Aberto ao Diálogo (13)

A hipótese inicial desta pesquisa, quando se leva em conta a polarização ‘ortodoxos-liberais’ que está ocorrendo entre os líderes evangélicos brasileiros em geral, era que a reação dos líderes de missões em particular (que pareciam inclinar-se na direção dos defensores de uma ‘ortodoxia pura’) seria de forte oposição a esses movimentos. Consequentemente, isso poderia estar nos indicando que haveria certa rigidez entre os líderes de missões no que tange a estratégias missionárias de contextualização C-5 entre os muçulmanos, o que, por sua, vez, poderia deixar espaço para indagarmos se o nosso movimento não estaria enviando missionários pouco inclinados a pelo menos considerar diferentes soluções diante de novos desafios.

Entretanto, após uma análise cuidadosa dos resultados da pesquisa, ficou evidente que esse não é necessariamente o caso. Sob o tema ‘quão bíblicos são os movimentos internos’ a maioria se manifestou de forma muito clara declarando que os Movimentos Internos são expressões da extensão do Reino de Deus, e acreditam que há verdadeiros seguidores de Cristo entre eles, apesar das preocupações demonstradas com algumas características desses movimentos.

Por outro lado, poucos afirmaram categoricamente que os MIs são abordagens biblicamente contextualizadas ou sincretismo. Essa incerteza talvez se deva à falta de informação em português, oriundo de fontes seguras que tratam, pontualmente, sobre os Movimentos Internos. Diferentes líderes responderam que é necessário ter informação confiável para que seja possível fazer uma melhor avaliação dos movimentos C5.

Outro ponto que não deixou dúvida sobre o posicionamento dos líderes de missões foi a contundência da resposta em relação a não querer impor como os discípulos de origem muçulmana devem seguir a Cristo. A maioria acredita que, guiados pelo Espírito Santo, é prerrogativa desses discípulos determinar (levando em consideração o seu contexto social e religioso), com ser um verdadeiro seguidor de Jesus. Porém, alguns mencionaram várias preocupações, ressaltando que é importante manter as principais doutrinas e princípios da fé cristã. Os principais pontos mencionados foram:

  • É importante aferir suas convicções teológicas.
  • Eles não deveriam abrir mão dos aspectos essenciais do Evangelho, tais como
    • A Trindade;
    • Jesus como o único caminho para a salvação;
    • A pessoa de Cristo: sua divindade, crucificação, ressurreição e sua obra redentora;
    • A Bíblia como única Palavra inspirada de Deus.
  • A Bíblia se sobrepõe à cultura e não o contrário.
  • A importância de ter comunhão com outros seguidores de Cristo.

Concomitantemente, a maioria dos líderes de missões não quer impedir que os missionários que estão sob sua esfera de influência se envolvam com os Movimentos Internos. Entretanto, é importante mencionar que alguns foram mais cautos e expressaram certas condições para que isso acontecesse. Segundo eles, alguns dos aspectos que precisam ser levados em consideração são:

  • A necessidade de atuar com prudência e sabedoria.
  • A importância de que os missionários participem desses movimentos apenas se forem convidados pelos líderes nacionais.
  • Os objetivos desse envolvimento deveriam estar relacionados com o preparo de líderes e o discipulado de novos convertidos.
  • Os missionários deveriam ser adequadamente treinados para esse tipo de envolvimento, e precisariam ter muita sensibilidade para manter um equilíbrio saudável, evitando, dessa forma, radicalizações.
  • Entender a importância de escutar dos próprios cristãos nacionais e dos missionários com experiência sobre a integridade de determinadas ‘versões’ dos Movimentos Internos.

A maior parte mostrou estar de acordo que este assunto seja ensinado àqueles que estão sob sua liderança. Porém, dois aspectos precisam ser destacados: (a) existe a preocupação de que vários pontos teológicos considerados não-negociáveis sejam levados em conta para que seus missionários possam envolver-se com os MIs e (b) a disposição dos líderes em ensinar sobre esses movimentos não significa necessariamente que eles estão preparados para recomendar essa abordagem. Um bom resumo provavelmente seria: é importante avançar, mas com precaução.

Esse posicionamento me parece essencialmente saudável, e reafirma as preocupações de vários acadêmicos, principalmente considerando (como vimos no início) que existem diferentes movimentos entre os muçulmanos usando a abordagem C5, e não há como ter certeza de que todos eles estão realmente sendo ousados nas suas estratégias de contextualização sem cair no sincretismo. Conforme diz Hiebert

Existe uma ofensa no estrangeirismo da cultura que nós trazemos juntamente com o Evangelho que precisa ser eliminado. Porém, existe a ofensa do próprio Evangelho, que nós não nos atrevemos a enfraquecer. O Evangelho precisa ser contextualizado, mas também precisa permanecer profético – julgando a maldade em todas as culturas, assim como nas pessoas.  (Hiebert 1987, 109)

A vasta maioria afirmou que, apesar das diferenças de opinião que porventura tenham com outros líderes de missões em relação aos MIs, isso não deve ser motivo para divisões.

Quando o cenário acima descrito é levado em conta o quadro que emerge é que os líderes do Movimento Brasileiro de Missões, como “seres sociais cujas ações não podem ser analisadas aparte de suas complexas condições e consequências” (Collinson 2006, 181), mostram-se cautos em vários aspectos. Porém, eles estão realmente dispostos a considerar (e não necessariamente a aceitar sem uma avaliação cuidadosa) abordagens missiológicas como os movimentos C5 entre os muçulmanos. Eles também não deram indícios de que a polarização ‘ortodoxos-liberais’ esteja afetando a maneira como eles reagem ao que poderia vir a ser movimentos do Espírito em diferentes partes do mundo. Tampouco estão submetendo-se à opinião dos que exercem a função de guardiães de uma verdadeira ortodoxia, simplesmente para que sejam vistos como parte desse grupo que é cada vez mais forte e influente.

Também não há evidências de que os líderes de missões querem exercer sua autoridade sobre seus seguidores (Søndergaard 2002, 188) com a intenção de evitar o envolvimento de seus missionários com os movimentos C5. Tampouco demonstram a tendência para a subjetivação (Dawney 2013), no sentido de querer controlar como os discípulos de Cristo oriundos de contextos muçulmanos devem seguir a Cristo. Provavelmente ainda mais revelador considerando o presente contexto evangélico brasileiro, foi descobrir que, apesar de que “identidades e categorias são construídas através do processo de exclusão” (Søndergaard 2002, 188), os líderes de missões mostraram-se predominantemente dispostos a conceder espaço para o diálogo e opiniões divergentes.

Por conseguinte, se os resultados desta pesquisa pudessem minimamente servir como um prenúncio, ou apenas um vislumbre sobre o futuro do Movimento Brasileiro de Missões, não haveria base para afirmarmos que ele está tornando-se (no sentido negativo da palavra) mais fundamentalista e menos disposto a considerar novas abordagens missiológicas. Apenas uma minoria dos líderes pesquisados mostrou-se contrária a considerar estratégias que são diferentes do que tradicionalmente se entende por contextualização, evangelismo e plantação de igreja. Mas, ainda resta saber quanta força e influência essa minoria terá no futuro próximo.

Marcos Amado atualmente é missionário da Sepal, professor de missões do Seminário Teológico Servo de Cristo e Fundador/Diretor do Centro de Reflexão Missiológica Martureo. Fez seu mestrado em Missiologia, com especialização em Estudos Islâmicos no All Nations Christian College, na Inglaterra. Está terminando seu segundo mestrado, “Religiões e Culturas do Oriente Médio”, oferecido pelo Centro de Estudos do Oriente Médio, no Líbano. Serviu por mais de 20 anos em contextos transculturais junto a ministérios dedicados ao mundo muçulmano.

Notas

(1 ) A letra ‘C’ representa a expressão “comunidades cristocêntricas” (Travis 2009a, 690).

(2) A abreviação “pos.” será usada toda vez que uma citação for feita a partir de livros eletrônicos que, em vez de usar número de páginas, utilizam a ‘posição’ em que a citação se encontra.

(3) Essa informação é baseada no meu contato pessoal com essa pessoa.

(4) Isso se deve principalmente ao fato de a islamofobia ser um fenômeno em crescimento entre os evangélicos brasileiros. Em uma série de dez vídeos curtos que eu gravei e postei na internet, apresentando uma introdução ao islã e outros temas contemporâneos relacionados aos muçulmanos, eu recebi centenas de críticas por não estar sendo suficientemente duro com Maomé e seus seguidores.

(5) Veja um resumo nestes dois links: http://www.materiasdeteologia.com/2014/07/polemica-augustus-nicodemus-e-ariovaldo-ramos.html e https://www.youtube.com/watch?v=Fd8Tv0YWmC0 . Ambos acessados em 10 de janeiro de 2017.

(6) https://www.facebook.com/photo.php?fbid=643639385716849&set=a.125197700894356.31795.100002 123811539. Acessado em 10 de janeiro de 2017.

(7) http://www.pulpitocristao.com/2014/05/resposta-ao-pr-ariovaldo-ramos-por.html. Acessado em 10 de janeiro de 2017.

(8) Em uma pesquisa realizada em 2012 por várias instituições missionárias brasileiras, esse aspecto foi apontado como uma das razões pelas quais as igrejas evangélicas brasileiras e as agências missionárias não estão enviando mais missionários transculturais. Veja um resumo em https://www.martureo.com.br/wp-content/uploads/2015/02/o-que-impede-a-igreja-brasileira-de-enviar- mais-missionarios.pdf sob o tópico “Razões Estratégicas, Treinamento e Ensino”. Acessado em 15 de setembro de 2016.

(9) https://www.dropbox.com/s/oheky0eczrqmh4f/DECLARACAO_ATUALSOCIOPOLITICA_ VIDANOVA2016.pdf?dl=0. Na sequencia o documento afirma que todas as ações sociais realizadas pelos cristãos resultam da definição de missão apresentada, mas essas ações não são incluídas como parte da missão da igreja.

(10) Esses movimentos também acontecem entre os hindus e budistas, mas aqui trataremos especificamente dos Movimentos Internos entre os muçulmanos.

(11) Neste trabalho o termo “Oriente Médio” abrange os países que são mais comumente aceitos como pertencentes a essa região: Turquía, Chipre, Síria, Líbano, Iraque, Irã, Israel, Palestina, Jordania, Egito, Sudão, além de todos os países da Península Arábica.

(12) Como eu lhes prometi que não usaria seus nomes para validar minha descrição, suas identidades serão mantidas no anonimato. Porém, cópias dos e-mails (sem seus nomes) podem ser enviadas caso forem solicitadas.

(13) Uma cópia completa deste estudo (cerca de 40 páginas, incluindo gráficos e análises das respostas) pode ser adquirido escrevendo para info@martureo.com.br

 

Bibliografia

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