Observando cuidadosamente. A análise sociocultural e a comunicação do evangelho

André Oliveira de Souza

… “Atenienses! Vejo que em todos os aspectos vocês são muito religiosos, pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto e encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio” (At 17.22-23).

Uma das característica do apóstolo Paulo que sempre me chamaram a atenção foi seu esforço contínuo em comunicar fiel e inteligivelmente o evangelho conforme seu público-alvo. Foi assim por todos os lugares em que passou. Se por um lado anunciava e confiava na graça de Deus, por outro nunca fugia do esforço de observar cuidadosamente a cultura. A partir da análise sociocultural, propunha a narrativa bíblica que usaria, bem como as categorias teológicas fundamentais para o público específico ao qual dirigia suas palavras. Por fim, aplicava as respostas que impactavam os corações daqueles aos quais a graça de Deus alcançava.

Penso que observar cuidadosamente é uma das qualidades que todo líder cristão deveria demonstrar – o esforço para anunciar o evangelho de modo fiel e inteligível, oferecendo respostas de modo satisfatório à cultura e tensões que nos cercam.

Vejo, porém, com certa preocupação, análises generalizantes sobre a comunicação do evangelho no contexto urbano, mais especificamente no contexto das cidades brasileiras. Influenciados ultimamente pelos escritos de Zygmunt Baumann (1925 –2017), em especial sobre o mundo líquido, tendemos a pensar no ocidente como um grande bloco pós-moderno
, pluralista, relativista, progressista, individualista, não cristão ou pós-cristão, entre outras características relevantes à pós-modernidade. É evidente que, à primeira vista, percebemos claramente certas tendências globais: não podemos negar, em primeiro lugar, as características gerais do mundo pós-moderno em que estamos inseridos e, em segundo lugar, os processos de urbanização como um fenômeno mundial em que, até 2050, sete em cada dez pessoas do planeta habitarão em cidades (LIDÓRIO, 2018, p. 143). Entretanto, essas tendências globais não devem nublar o entendimento particular de cada cidade ou mesmo de diferentes grupos e culturas em uma mesma cidade.

Um dos modos de sermos mais cuidadosos, assertivos e intencionais seria não considerarmos a pós-modernidade como uma cultura generalizante a todas as cidades. Temos observado, por meio de pesquisas e aplicação de métodos, que cidades são diferentes umas das outras mesmo que sejam vizinhas. Dentro de uma cidade, há grupos sociais distintos em seu modo de pensar, sentir e agir. Isso acontece em cidades de pequeno, médio e grande portes e em ambientes rurais ou urbanos. A todas elas estamos chamando, neste texto, cidades.

Em outro artigo que escrevi publicado pelo Martureo – “A Antropologia e a missão urbana: estranhar o que é familiar é imprescindível” –, apresentei que um dos primeiros passos para o conhecimento da própria cultura é estranhar aquilo que nos é familiar e alertei, conforme Velho (2013, p. 72), que “O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido”.

Feita essa lembrança, digo que somente o estranhamento não é suficiente para o conhecimento da cultura. É necessária uma clara metodologia que coopere com uma observação cuidadosa e que gere ações mais assertivas para a comunicação do evangelho, isto é, que coloque a contextualização da mensagem em ação.

O método fundamental e clássico da Antropologia para a análise cultural é a etnografia que, conforme o antropólogo Geertz, (1978, p. 15), caracteriza-se por uma descrição densa do fenômeno cultural escolhido pelo pesquisador:

[…] segundo a opinião dos livros-texto, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante. Mas não são estas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é um tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrição densa.

Embora a etnografia seja de fundamental importância para o trabalho de conhecimento da cultura, acho pouco provável para a proposta que temos aqui –

comunicar contextualmente, intencionalmente e assertivamente – que ela possa ser usada isoladamente para nos dar as respostas que precisamos. Sem falar que requereria do leitor um conhecimento mais profundo do que vem a ser etnografia.

Assim, para fins práticos, propomos o método URBANUS (LIDÓRIO, 2018, p. 141-170), que poderá ser facilmente aplicado, mesmo que o leitor não esteja amplamente familiarizado com as teorias e métodos antropológicos.

O método URBANUS utiliza, conforme Lidório (2018, p. 147-148):

elementos quantitativos e qualitativos pinçados dos modelos etnográficos e etnológicos, associados aos modelos de estudo do comportamento humano, organização social, símbolos urbanos e mapeamento geopolítico. Esses elementos serão arranjados e analisados a partir de uma perspectiva missiológica direcionadora para ações de comunicação, interação, evangelização e plantio de igrejas em ambientes urbanos. O método Urbanus utiliza pressupostos socioconstrutivistas e culturalistas, mesclados a elementos fenomenológicos, sociopolíticos e categorizadores, tendo como alvo avaliar sociedades urbanas, seja em um contexto mono ou multicultural, com previsão de múltiplos segmentos socioeconômicos e variações de valores, comportamento e crenças, entre outras.

O método nos ajuda e nos guia no aprofundamento de uma observação cuidadosa, gerando as informações necessárias para as ações missionárias, especialmente plantação de novas igrejas. O URBANUS propõe a investigação em quatro áreas fundamentais para o conhecimento da cidade ou o recorte ao qual o pesquisador se propõe. São elas: a história, a geografia, a população e a cultura. Cada uma dessas áreas empreende um trabalho contínuo que se conecta à pesquisa e a organiza, dando significado e categorizando cada ambiente pesquisado.

Uma localidade cujo marco de fundação está ligado ao ensino (uma universidade), por exemplo, tenderá para uma orientação sociofilosófica diferente de outra cujo marco de fundação é religioso (uma igreja).

Hipoteticamente, uma cidade fundada por uma universidade tenderá a privilegiar uma cultura mais urbana, progressista, individualista, materialista, pluralista, relativista e assim por diante, ou seja, apresentará elementos característicos de uma cultura pós-moderna, onde valores não absolutos conflitarão com assuntos religiosos. Reconheço, no entanto, um paradoxo no Brasil sobre o que acabo de escrever:

nunca estivemos tão avessos a assuntos ligados a religião e, ao mesmo tempo, tão interessados em assuntos referentes à espiritualidade.

Uma cidade com marco de fundação religioso, por sua vez, como uma igreja católica, tenderá a ter uma orientação sociofilosófica em sua cultura mais tradicional, coletivista, mística, cristã e moderna. Nesse caso, valores como casamento religioso, por exemplo, ainda são preservados.

Agora, voltemos à cidade com marco de fundação universitário. Nesse contexto, provavelmente o convite para ir ao culto de sua igreja terá grande probabilidade de não ser compreendido, ou, se for, quase com certeza será respondido negativamente. Porém, no segundo exemplo, o de uma cidade fundada sob forte influência religiosa católica, não haverá quase nenhuma dificuldade para se compreender o convite, ou mesmo de ele ser aceito.

Há, ainda, outra questão: cidades podem ser tão diversas internamente que é possível (e muito comum!) que se encontrem em plena transição de perfil – de tradicionais para progressistas, de modernas para pós-modernas, de cristãs para pós-cristãs, de místicas para materialistas. É praxe, hoje, que populações mais jovens tenham um perfil mais pós-moderno, enquanto seus pais e avós ainda sejam modernos. Para tudo isso, a aplicação do método URBANUS nos guiará em uma melhor compreensão da cultura e do contexto em que estamos inseridos e no qual fomos chamados para ser luz (Mt 5.14).

O método tem a habilidade não só de esclarecer a cultura estudada. A partir da apreensão dessas categorias e da compreensão específica da cidade que investigamos, podemos definir de modo mais assertivo quais abordagens teológicas são mais adequadas para a apresentação inicial do evangelho. Entramos aqui em um campo mais missiológico, que seria a aplicação do método para fins de evangelização, discipulado e plantação de igrejas. Com base nas informações coletadas e com o devido perfil cultural da cidade, podemos pensar no tipo de linguagem e na melhor abordagem para que o evangelho seja comunicado de modo fiel às Escrituras e relevante à cultura e suas questões.

Tomemos, mais uma vez, os exemplos acima. Suponhamos que uma cidade ou bairro universitário seja pós-moderno, ou seja, progressista, individualista, materialista, pluralista, relativista e outras categorias pertinentes ao pós-modernismo. Uma abordagem do evangelho a partir da criação com certeza não atrairá a atenção, visto que a teologia da criação, nesses ambientes, chega a ser ridicularizada como um mito. Já uma abordagem inicial a partir do sofrimento humano e da resposta de Deus para ele pode encontrar uma porta aberta. Um convite para o culto, do mesmo modo, será descontextualizado da realidade, porém um convite para um bate-papo em uma cafeteria da cidade será mais facilmente aceito.

A pergunta que pode surgir neste momento é: não vamos falar sobre o evangelho todo? Não vamos falar sobre a criação? Sim, pois todo o evangelho deve ser proclamado e ensinado a todo o povo. Iniciaremos, porém, com aquilo que está mais próximo de nosso ouvinte, que desperta interesse, que comunica. Isso é o que Paulo adotou em Atenas: uma comunicação fiel ao evangelho em todas as suas dimensões, transmitida a partir de linguagem e abordagem familiares e atraentes. Não foi isso que Paulo fez em Atenas, Listra, Galácia, Macedônia e em muitos outros lugares? Timóteo Carriker (2018, p. 17) comenta: “A sequência cronológica mais apropriada da avaliação missional é: primeiro, a análise social; segundo, a reflexão bíblica; terceiro, a teologia. Só que boa parte da conversa missional atual inverte essa ordem, apelando predominantemente à teologia, com pouca ou nenhuma reflexão sociológica. A ordem é essencial. A última análise, a teológica, deverá ter a palavra final, mas seu papel principal é responder às questões antes levantadas pela análise social e filtradas por sua interação com as escrituras”. Carriker continua (2018, p. 23) analisando o procedimento do apóstolo Paulo na carta aos Romanos do seguinte modo:

  1. Análise sociológica;
  2. Consideração das narrativas bíblicas, revisão das categorias teológicas;
  3. Aplicação na vida e missão da igreja local e na missão global da igreja.

De certo modo, o serviço que tento prestar aqui aos meu colegas pastores, missionários e cristãos é alertar sobre a importância da aplicação de princípios e métodos antropológicos (que nos ajudem na observação cuidadosa) para o desenvolvimento de estratégias missiológicas e aplicação assertiva e intencional à realidade de nossa própria cultura. Esse trabalho, anteriormente, era quase que exclusivo do trabalho transcultural.

Em um próximo artigo, trarei um estudo de caso feito na cidade de Joinville (SC) e mostrarei o resultado da aplicação, análise e as implicações para a evangelização usando o método URBANUS. Embora Lidório (2018, p. 163-170) já tenha feito um estudo sobre um recorte da cidade de Manaus, creio que seja relevante, mesmo que para fim de comparação.

Por fim, encerro com a citação que melhor traduz o que penso sobre tudo que escrevi até aqui:

O impacto do reino de Deus não é mera questão de métodos e estratégias.[…] mas, acima de tudo, é questão de conteúdo. A nossa mensagem é a graça de Deus revelada na crucificação e ressurreição de Jesus e vivida diariamente pelo Espírito Santo. Somente a graça pode nutrir o amor do povo de Deus pelo seu próximo, o que, por sua vez, abre caminho para o anúncio efetivo do evangelho e transformação que ele promove na vida daqueles que creem. (CARRIKER, 2018, p. 36)

 

Bibliografia
CARRIKER, T. O que é igreja missional: modelo e vocação da igreja no novo testamento. Viçosa: Editora Ultimato, 2018.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
LIDÓRIO, R. Plantando igrejas. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2018.
VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

 

André Oliveira de Souza
Pastor e professor, atuou na Missão Evangélica da Amazônia (Meva) por cerca de 20 anos. É formado em Antropologia e Mestre em Sociedade e Fronteiras pela Universidade Federal de Roraima.

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