Visão Latino-Americana Do Sofrimento E Suas Implicações Para A Missão

Délnia Bastos

É possível falar em “visão latino-americana sobre o sofrimento”? Seria a nossa visão diferente de outros lugares do mundo? Em que seria diferente?

Este capítulo tenta considerar essas questões. Numa primeira parte, aborda que tipos de sofrimento são mais comuns na América Latina (com ênfase na experiência brasileira) e como o latino reage ao sofrimento. Na segunda parte, vamos ouvir o que têm a dizer os que estão na linha de frente: pessoas (entre enviadores e enviados) respondem quatro perguntas sobre risco e sofrimento na missão.

Tipos de sofrimento

1. Sofrimento Sócio-econômico

A vida não é fácil para o latino-americano médio. É certo que há ricos entre nós, mas a grande maioria é pobre e luta com dificuldade para sobreviver. Segundo René Padilla, no Brasil, 40% da população estão imersos na miséria, 40% vivem na pobreza, 15% pertencem à classe média e 5% são ricos. [1] Continuamos a sofrer com a má distribuição de renda.

O povo latino é um povo lutador, que normalmente trabalha muitas horas por semana para ter o mínimo para sua sobrevivência. A falta de renda, obviamente, gera analfabetismo ou baixa escolaridade, saúde, higiene e saneamento básico precários. Tudo isso implica num ciclo produzido pela pobreza e que produz de novo a pobreza.

Nosso povo, em sua grande maioria, é acostumado a sofrer economicamente; é “adaptado” a viver com pouco e “dar um jeitinho” quando falta algo:

Na luta pela sobrevivência, o brasileiro trabalha duro para tentar suprir suas necessidades e, ainda assim, enfrenta uma série de dificuldades a cada dia. Certamente, esse sofrimento faria com que o povo ficasse insatisfeito com as condições em que vive, e a revolta contra os detentores do poder, provavelmente, seria inevitável. Mas, ao contrário disso, o brasileiro é um povo bem-humorado, alegre e está quase sempre de bem com a vida. [2]

2. Sofrimento Político

A América Latina conhece a perseguição política. Temos, por exemplo, os desaparecidos na Argentina, fruto de um governo ditatorial. Temos os ditadores modernos, os exilados e presos políticos. Oponentes de Fidel Castro são presos e maltratados na cadeia cubana.

O padre católico Vito Del Prete, secretário-geral da Pontifícia União Missionária, em seu artigo “Os cristãos continuam a ser pregados na cruz”, afirma:

Quantos mártires houve na América Latina desde os anos 60 até hoje! Bispos, sacerdotes, religiosos, catequistas, leigos e leigas empenhados que, através da sua obra pastoral e evangelizadora, inevitavelmente entram em conflito com os interesses dos poderosos, ou dos poderes que se fundamentam na violência e no terror. Mas ainda mais sub-reptícia é a vontade política de marginalização do cristianismo e dos fieis em Jesus Cristo, mediante uma ação sistemática de deslegitimação, que visa impeli-lo para as periferias da vida pública […]. [3]

3. Sofrimento Pela Violência

A violência tem aumentado em toda a parte, e também na América Latina. Há a violência urbana, relacionada ao primeiro ponto (pobreza). Há a violência política, como é o caso da Colômbia e outros países da América Latina. Há o crime organizado que domina enormes favelas no Brasil. Há a violência impetrada pela própria polícia, que deveria defender o povo. A polícia muitas vezes é corrompida e tem seus próprios acordos com os bandidos. O povo sofre na mão dos bandidos e na mão dos policiais. A polícia também abusa da sua autoridade e poder.

4. Sofrimento Pela Doença E Morte

Como em várias partes do mundo, nosso povo sofre com vários tipos de doença e morte. O triste é saber que doenças evitáveis causam a morte de muitos.

5. Sofrimento Com A Mudança Climática E, Ou Acidentes Naturais

Temos visto as tragédias atingirem nossos países. O terremoto no Haiti – o país que já era o mais pobre da nossa região agora perdeu toda a infraestrutura. O terremoto e o tsunami no Chile afetaram milhares de vidas. Frequentes incêndios na floresta amazônica e no cerrado afetam toda a vida biológica da região. Chuvas torrenciais no sul do Brasil, e depois no Nordeste, empobrecem ainda mais muitas famílias.

6. Sofrimento Com A Perseguição Religiosa

Algumas cidades latino-americanas ainda sofrem este tipo de perseguição ou discriminação por sua fé – com certeza, não nos moldes da perseguição que acontece no mundo árabe e na Ásia, mas a hostilidade está lá e afeta suas vidas.

Em especial em Cuba, igrejas e pastores que não são da igreja oficial, permitida pelo governo comunista, sofrem perseguição, prisões, ameaças e nem mesmo têm a liberdade de falar sobre isso para o resto do mundo.

Recentemente, principalmente em meios acadêmicos, como as universidades, tem havido perseguição acirrada aos cristãos por parte de ateus e agnósticos – há até mesmo grupos formalmente constituídos com esta “missão”. Trata-se de um tipo de perseguição intelectual-religiosa, digamos. Nesse meio, nos aproximamos mais da realidade europeia e norte-americana.

7. Sofrimento Com A Separação Familiar

É especialmente difícil para os latinos a separação familiar – seja por causa do divórcio ou por circunstâncias da vida, como, por exemplo, alguém da família ter de trabalhar em outra localidade, ou, pior, em outro país. Mesmo se considerarmos a família extensa (avós, tios, primos, sobrinhos), a separação é algo que traz profundo sofrimento para a maioria de nossas famílias.

Isso pode estar sendo um “entrave” para missões a partir da América Latina. Na nossa experiência no Brasil, temos visto que a separação familiar é uma das questões mais difíceis de lidar com as famílias para que missões transculturais se tornem possíveis.

Reações Ao Sofrimento

Como todo ser humano, o latino não deseja sofrer, não procura o sofrimento. A nossa primeira reação é fugir e evitar qualquer tipo de sofrimento.

O brasileiro é conhecida e assumidamente um povo alegre, feliz, “que não deixa a peteca cair”. Temos inúmeros provérbios e canções que falam da nossa felicidade:

“Moro num país tropical, abençoado por Deus. E bonito por natureza, mas que beleza […]” O trecho da música traduz bem a alegria e orgulho que o povo brasileiro tem por seu país. O futebol, o samba, o carnaval, o happy hour e os almoços de domingo fazem parte do cotidiano daqueles que habitam o imenso território chamado Brasil. Porém, você já parou para pensar de onde vem tanta alegria? Será que tudo é mesmo tão maravilhoso por aqui? […] A explicação para tamanha alegria da sociedade brasileira, por incrível que pareça, está na época da escravidão. De acordo com o já falecido antropólogo Darcy Ribeiro, os escravos faziam festas na senzala, com batuques de tambores e muita capoeira para mostrar aos seus donos que eles eram felizes, apesar da exploração que sofriam. Observa-se assim, que a alegria do povo nasce como uma forma de resistência por parte dos grupos explorados contra a dominação imposta pelos senhores de escravos. […] Seria possível suportar o peso do viver sem o auxílio da felicidade? Até quando a alegria vai servir como muleta dos problemas sociais presentes no Brasil? [4]

Nossa cultura também tem se adequado cada vez mais aos “tempos modernos”, tornando-se egocêntrica e individualista, principalmente nos grandes centros urbanos:

A ética brasileira desenvolveu traços em que as pessoas não querem fazer sacrifício algum, nem ser disciplinadas. […] Vantagens, vitória, sucesso, prestígio e poder são o alvo de vida, custe o que custar. As pessoas não se sentem compromissadas com ninguém. Cada qual pode escolher o que bem quiser. O ser humano é o centro do universo. […] Ninguém deseja abrir mão de seus direitos individuais para unir-se a um grupo em que sua liberdade pessoal pode ser restrita. [5]

Alguns autores defendem que o missionário brasileiro ou latino custa menos para missões, porque é acostumado com pouco e se adapta a qualquer situação. Mas a realidade do campo muitas vezes mostra outra verdade:

Marcelo Acosta, um líder missionário brasileiro do projeto Magreb no Norte da África, descreve as sérias dificuldades que latino-americanos têm para aceitar a pobreza e as privações de algumas das comunidades muçulmanas em que trabalham. […] Tendências culturais modernas que podem ter uma influência negativa na capacidade de missionários perseverarem no campo de missão incluem o espírito de independência e a auto-suficiência, a expectativa de resultados instantâneos, a obsessão de eficácia no uso do tempo, o desejo de realização pessoal e a orientação para o sucesso. […] Se missionários emergem desse contexto e cresceram com essas atitudes, para eles é difícil enfrentar uma situação em que sua liberdade pessoal é restrita, em que precisam fazer sacrifícios e estar mais preocupados com outros que consigo mesmos, e em que têm de continuar atuando mesmo quando parece haver poucos resultados. [6]

De um modo geral, o povo latino não reage de forma extremamente negativa ao sofrimento. Muitas vezes a nossa primeira reação é resistir a ele e fazer de conta que não existe. Existe uma atitude fatalista, de aceitar o sofrimento. O povo comum acha que Deus é quem mandou o sofrimento, e o aceita como pode.

O latino é também simpático ao sofrimento alheio. Ele busca rapidamente ajudar o próximo. Ele chega a dividir o pouco que tem – comida, casa, presença, amizade – tudo para ajudar o outro.

Nas igrejas, há bastante interesse na intercessão pelos que estão sofrendo: as pessoas oram por outras que atravessam momentos de doenças, desemprego, acidentes, problemas de relacionamento etc.

Mas a realidade de perseguição que nossos irmãos sofrem em regiões como mundo árabe e Ásia ainda é diametralmente distante da nossa realidade. É inimaginável para a maioria de nós.

Anualmente, temos dois dias de oração dedicados à igreja perseguida no mundo. Em maio e novembro. Muitas igrejas, nesses dois domingos, ou em um deles, promovem informação e intercessão pela igreja perseguida. Mas, fora dessas duas datas, poucos são realmente comprometidos com a intercessão pelos que sofrem perseguição por sua fé.

O teólogo e escritor equatoriano René Padilla, no capítulo “Missão e sofrimento” de seu livro, afirma que:

Hoje em dia é difícil aceitar que o sofrimento é um elemento essencial da missão. Pelo menos na América Latina, nós, os cristãos, nos acostumamos a viver em um ambiente de tolerância religiosa onde não nos custa nada, ou nos custa muito pouco, confessar nossa fé. Porém, não podemos esquecer que, até poucos anos atrás, estávamos sujeitos ao desprezo e escárnio pelo simples fato de sermos evangélicos. A situação mudou radicalmente há pelo menos duas ou três décadas. O problema que encaramos hoje é outro: o de uma perigosa acomodação à sociedade que nos rodeia, a fim de evitarmos o sofrimento. […] Cada vez que a igreja evita o sofrimento, se coloca acima de seu Senhor. Perde sua essência e sua missão. […] Uma igreja sem cruz é uma igreja sem Cristo, já que o único Cristo que o Novo Testamento conhece é o Messias crucificado, o poder e a sabedoria de Deus. […] Aceitar a Cristo é adotar a prática profética de Jesus, é tomar para si seu compromisso com o reino de Deus e sua justiça, é dispor-se a seguir seu caminho e vivenciar a ‘comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte’ (Fp 3.10). Em outras palavras, é compartilhar sua missão e seu sofrimento. Visto que ele é o Rei-Servo, a única vitória que nos promete é a que se alcança pelo caminho da cruz, pela graça de Deus. [7]

Quem sabe não tenha sido mera coincidência que a Declaração de Foz do Iguaçu tenha sido escrita em terras tupiniquins:

Sofrimento, perseguição e martírio são realidades presentes na vida de muitos cristãos. Reconhecemos que nossa obediência missionária envolve sofrimento e que a igreja tem experimentado esta realidade. Afirmamos nosso privilégio e responsabilidade de interceder por aqueles que estão debaixo de perseguições. Somos chamados a compartilhar suas dores, proporcionar todo alívio que pudermos aos seus sofrimentos. […] Num mundo cada vez mais injusto e violento […] comprometemo-nos a preparar a nós mesmos e a outros para sofrer no serviço missionário e servir à igreja sofredora. Comprometemo-nos a articular uma teologia bíblica do martírio. [8]

Não podemos nos esquecer também da influência da teologia da prosperidade, que se alastrou por todos os recantos do Brasil, e talvez da América Latina. Segundo esta linha de pensamento, o cristão é sempre vitorioso; quando um cristão ou missionário sofre é considerado um fracasso e não merece apoio.

É comum visitarmos igrejas no Brasil e as pessoas nos procurarem dizendo: “Tenho chamado pra missões e topo ser missionário. Mas vocês trabalham em regiões muito difíceis. Não tenho chamado para ser mártir.” Como se uma coisa pudesse vir sem a outra. Como se a missio Dei fosse possível sem o martireo! Assim, muitos cristãos brasileiros querem ser missionários, desde que seja no “Primeiro Mundo”…

Antonia van der Meer (missióloga brasileira, apesar do nome!) comenta que:

Milhões de pessoas sofrem por causa da pobreza, da perseguição, da violência, das guerras e das doenças. É trágico perceber que nossa cultura ocidentalizada não prepara as pessoas para enfrentar dificuldades e sofrimento, mas sim para defender seus direitos e seu bem-estar, e para servir apenas se os custos não forem muito altos e se as recompensas estiverem de acordo com suas expectativas. Temos a tendência de esquecer que o preço para o alcance dos povos não-alcançados envolve sofrimento, embora as recompensas em longo prazo sejam ainda maiores: a glória de Deus, nosso enriquecimento pessoal e bênçãos para aqueles a quem servimos. [9]

As escolas de missões no Brasil e na América Latina precisam também repensar e melhorar o preparo de nossos missionários, incluindo nos currículos elementos fundamentais da “teologia bíblica do martírio” – diametralmente oposta à popularíssima “teologia não-bíblica da prosperidade”…

A missióloga chinesa/indonésia naturalizada brasileira Margaretha Adiwardana apresenta e propõe um modelo de treinamento integral para candidatos à obra missionária, que visa cultivar a perseverança frente ao sofrimento no campo. Ela ressalta que:

O cultivo da perseverança deve representar um componente essencial do preparo de candidatos que se dirigem a campos de missão, especialmente daqueles que enfrentarão contextos de adversidade. Isso será alcançado em parâmetros de treinamento integral que englobam as dimensões formal, informal e não formal e que levam à transformação de ideias e do comportamento. [10]

No Brasil, a APMB (Associação de Professores de Missões no Brasil) tem feito sua parte para que haja excelência na formação dos nossos obreiros.

Depois do preparo, vem o cuidado – que é igualmente fundamental para nossos missionários que são enviados a países de risco e sofrimento:

A maioria dos missionários brasileiros recebe pouco cuidado pastoral, apesar de muitos líderes de agências e de igrejas atualmente estarem mais conscientes dessa necessidade. As igrejas esperam que seus missionários sejam pessoas especialmente capacitadas por Deus, que apresentem grandes histórias de sucesso. Porém, há missionários deprimidos por causa de experiências dolorosas no campo, por causa de problemas em sua equipe ou por serem confrontados com situações de guerra e morte. Os missionários e suas famílias sofrem com atendimento médico precário, salário insuficiente, educação escolar inadequada para os filhos e falta de recursos na aposentadoria. O sofrimento é uma parte desafiadora da vida missionária, e os missionários enviados para contextos difíceis precisam de cuidado e apoio constantes. [11]

No Brasil, como resposta a esses problemas, foi criado o CIM – Grupo de Cuidado Integral do Missionário,[12] que fomenta e estabelece paradigmas e trocas de experiências entre igrejas e agências missionárias em tudo o que se relaciona ao cuidado do missionário.

Ouvindo Os Que Estão Na Linha De Frente

Para conhecer um pouco mais o que pensam os envolvidos em missão em contexto de sofrimento hoje, foram enviadas quatro perguntas sobre o assunto. Recebemos respostas de seis missionários, três líderes de missões e dois pastores de igrejas enviadoras. As perguntas foram:

  1. Como você entende risco e sofrimento no cumprimento da missão?
  2. Que referências bíblicas formam a sua base para este assunto, e como elas o ajudam a entender e agir frente ao sofrimento na missão?
  3. Há algum pensamento de autor latino-americano que serve de embasamento teológico para o seu modo de entender risco e sofrimento na missão? Se sim, que autor é este e qual a sua obra/artigo?
  4. Como os missionários da sua agência/igreja são orientados a enfrentar o risco e o sofrimento?

Vamos comentar algumas das respostas.

1. Risco E Sofrimento No Cumprimento Da Missão

Todas as onze pessoas que responderam a pergunta (dez brasileiros e um costa-riquenho) não têm qualquer dúvida de que o sofrimento faz parte da missão.

Uma missionária na Índia fez o seguinte comentário: “Em se tratando de mundo árabe e hindu, estas são palavras comuns no vocabulário. Apesar de a Índia não ser considerada uma nação islâmica, a população muçulmana daqui ultrapassa a população brasileira. Moramos colados ao bairro muçulmano e Deus tem aberto portas para relacionamentos de amizades com este grupo. Cremos que há riscos para os dois lados: para nós que estamos aqui para testemunhar da vida com o Pai, e para eles, que podem ser mortos por abandonarem a fé no Islã e seguirem ao Senhor.”

Uma missionária no Oriente Médio disse que: “Muitas vezes não temos e nem devemos ter a noção completa e antecipada do risco e sofrimento que haveremos de passar. Na infinita graça do Pai, Ele sabe que o medo paralisa, e que Ele mesmo enviará o sustento ‘diário’ para o acontecimento ‘diário’ por Ele permitido.”

Um pastor brasileiro que é missionário no Oriente Médio afirmou que: “Quando abordamos esse tema temos duas reações: Medo e Conforto. Medo, por um lado, pois não sabemos que tipo de sofrimento vamos enfrentar e até onde esse sofrimento pode chegar. Por outro lado, nos conforta saber que nosso sofrimento não é em vão.”

Outro missionário no Norte da África, com muitos anos de experiência transcultural, escreveu com o coração: “Riscos sempre existiram. Pela graça de Deus, Ele não me permitiu conhecê-los todos de uma só vez. Deus me conhece e sabe das minhas fraquezas. O fato de estar tantos anos fora do meu país não me faz um ‘corajoso’. Passei por diferentes situações de risco verdadeiro. Se os conhecesse antecipadamente, talvez os teria renunciado. […] Com prudência, vamos aceitando os riscos, mesmo que, em determinados momentos, pedimos perdão ao Pai, por não ter corrido mais riscos. Isto parece ser algo mais pessoal, entre mim e o Pai. Com paciência, Ele me ajuda a vencer minhas limitações.  Quanto ao sofrimento, pela natureza da minha formação, igreja, família, profissão, ministérios já realizados [ajuda humanitária em país de guerra], conheci o sofrimento humano e vivi muito perto dele. Mas, que sofrimento eu tive? Estar longe da família, do país, de amigos e igrejas? É verdade, sentimos falta. Mas, para mim, nada se compara ao sofrimento daqueles que Deus me permitiu servir. Hoje só posso afirmar que Deus, em todos estes anos, transformou o que poderia ser sofrimento em alegria e prazer de estar com a ‘mão no arado’. Para a saúde emocional de todos nós, não devemos alimentar a ideia de ‘sofrimento’, não ignorando aqueles que estão em verdadeira situação de perseguição, pois mesmo entre eles há grande prazer naquilo que estão realizando.”

Pelas respostas recebidas, concluímos que a geração atual (ou parte dela, representada pelos entrevistados) envolvida em missão no contexto de sofrimento está consciente e pronta para sofrer por Cristo. Mas foi interessante perceber que pelo menos dois comentaram que não é necessário saber de todos os riscos antes de passar por eles.

2. Referências Bíblicas

As referências bíblicas citadas sobre risco e sofrimento na missão foram tantas e tão variadas, tanto do Antigo como do Novo Testamentos, que não cabe aqui comentar uma por uma.

Três mulheres citaram a passagem em que Jesus apresenta o custo do discipulado:

Se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo. E aquele que não carrega sua cruz e não me segue não pode ser meu discípulo. [13]

De fato, esta passagem toca muito o coração latino! Isso mostra, mais uma vez, a profundidade e a força do relacionamento familiar. Quebrá-lo é sofrer, em especial para a alma latina.

Três pessoas citaram a Segunda Carta de Paulo a Timóteo e duas pessoas citaram enfaticamente a Primeira Epístola de Pedro.

3. Autores Latinos

Os autores citados e suas respectivas obras foram:

  1. Margaretha Adiwardana, Missionários: preparando-os para perseverar.
  2. René Padilla, O que é missão integral?
  3. Antonia Leonora van der Meer, Artigo “Sofrimento na vida e no ensino de Pedro” (revista Capacitando para Missões Transculturais).
  4. William Taylor (nascido na Costa Rica), Valioso demais para que se perca.
  5. Edison Queiroz, O vaso quebrado.
  6. Artigo “Los peligros de la persecución” (revista Apuntes Pastorales).

Apenas o livro de René Padilla foi citado duas vezes. As demais obras foram citadas uma única vez. Quatro pessoas disseram não conhecer nenhum autor latino que tenha escrito sobre o assunto de sofrimento em missão.

4. Orientação Para Enfrentar Risco E Sofrimento

Duas pessoas disseram não haver nenhum treinamento ou orientação em suas agências (duas diferentes agências) sobre como enfrentar o risco e o sofrimento no contexto da missão.

Duas igrejas enviadoras afirmaram que oferecem um tipo de orientação. O pastor de uma dessas igrejas afirmou: “Temos um curso de vocacionados que visa um primeiro preparo do candidato antes de um passo mais definitivo rumo ao campo missionário e os alunos são trabalhados nesta área com a teoria missiológica e conversas com missionários de passagem por aqui. Tentamos conscientizá-los deste fato antes que tomem a decisão de se tornarem missionários. Também procuramos trabalhar com agências sérias e experientes para o envio de nossos missionários ao campo.” O outro pastor afirmou que a igreja exige de seus futuros missionários que escrevam um texto sobre perseguições e sofrimentos na Bíblia, o que os ajuda nesse preparo.

Três líderes de agência afirmaram que incluem este assunto no currículo preparatório de seus missionários, quer nas disciplinas oferecidas ou nos seminários de curto prazo.

Uma missionária no mundo árabe afirmou que: “É até engraçado pensar nisso por agora! Acho que na sabedoria vinda do Alto, a agência/igreja não orienta muito sobre como enfrentar, mas o que fazer para evitar os riscos e sofrimentos evitáveis. Talvez, porque, uma vez no campo, sabem que o socorro e orientação vêm do Alto em primeiro lugar e, em segundo lugar, se coloca à inteira disposição para caminhar junto, ouvir, solucionar o que for possível ou até mesmo retirar do ambiente ou situação quando for o caso. Antecipam nos treinamentos ações ou posturas que podem aumentar riscos e sofrimentos. Então, o que fazem é alertar, instruir, enviar rotinas e procedimentos em diversos casos. Isto está mais ligado ao o quê poderá se enfrentar. Quanto ao como, não tem como se prever antecipadamente, já que depende da situação particular de cada um naquele dado momento (físico, emocional, espiritual, territorial etc.). Assim, o jeito é caminhar ao lado.”

Os demais missionários afirmaram que sua agência entende que o sofrimento é parte do ministério do missionário. Mas ensina que ele deve obedecer às orientações de evacuar o país em caso de iminente risco.

Foi interessante observar que os missionários há mais tempo no campo às vezes têm menos informações a respeito, o que mostra que as agências estão cada vez mais preocupadas com isso e têm treinado melhor seus missionários.

5. Conclusão

Nas palavras de Prete, queremos “convidar o mundo cristão a superar o complexo de inferioridade e de culpa, que parece afligi-lo, anunciando a Boa Nova com franqueza e coragem” [14] – e isso inclui a América Latina.

 

  1. Precisamos, como latino-americanos, aprender com nossos irmãos do mundo árabe a estarmos prontos a sofrer por Cristo, a pagar o preço pela nossa fé. Quão distante estamos disso, com a nossa teologia da prosperidade e outras preocupações tão supérfluas!
  2. Precisamos cada vez mais interceder pelos nossos irmãos que vivem em contexto de extremo sofrimento por sua fé.
  3. Precisamos nos dispor para ir, servir, chorar junto e sentar-nos lado a lado com nossos irmãos que sofrem perseguição em outros contextos.
  4. Precisamos vencer a força dos vínculos familiares que nos impedem de cumprir a missão e obedecermos ao Senhor Jesus, que nos ensinou a amá-lo mais do que aos nossos queridos.
  5. Podemos e devemos nos colocar na mão do nosso Deus sábio, para que Ele use as habilidades que Ele mesmo nos deu, de aceitação do sofrimento, de empatia com os que sofrem, de valor à família humana e família da fé, de saber viver com poucos recursos, de ter flexibilidade para adaptar-se a novas circunstâncias da vida.
  6. Precisamos investir cada vez mais na preparação de nossos missionários em relação ao importante assunto de risco e sofrimento.
  7. Precisamos ampliar nossos horizontes em relação ao cuidado integral do missionário, principalmente daqueles que vivem em situação de risco e sofrimento.

Até hoje, evangelizar é como lançar a semente do Reino de Deus no terreno da humanidade, que só cresce se for irrigada pelo sangue do Corpo de Cristo, que é a igreja. Este é o paradigma evangélico mais eficaz da atividade evangelizadora e nisto consiste a sua metodologia perene. […] (“Sanguis martyrum semen christianorum”). [15]

Que Ele nos abençoe!

[1] PADILLA, C. René. O que é missão integral? Viçosa: Ultimato, 2009. p. 101.

[2] Disponível em: http://www.olhartransversal.com/2009/11/01/alegria-dos-brasileiros-nasce-do-sofrimento-das-senzalas. Acesso em 10/08/2010.

[3] PRETE, Vito Del. Os cristãos continuam a ser pregados na cruz. Revista Omnis Terra, Roma, n. 143, ano XV, p. 317, set.-out. 2009.

[4] Disponível em: http://www.olhartransversal.com/2009/11/01/alegria-dos-brasileiros-nasce-do-sofrimento-das-senzalas. Acesso em 10/08/2010.

[5] AMORESE, Rubem. Excelentíssimos senhores. Viçosa: Ultimato, 1995. p. 43-53.

[6] ADIWARDANA, Margaretha N. Missionários: preparando-os para perseverar. Londrina/Curitiba: Descoberta, 1999. p. 28-29.

[7] PADILLA, C. René. Op. cit. p. 111, 113-114. (Grifos do autor.)

[8] TAYLOR, William David. Missiologia global para o século 21. Londrina: Descoberta, 2001. p. 18-20.

[9] MEER, Antonia Leonora van der. Missionários feridos; como cuidar dos que servem. Viçosa: Ultimato, 2009. p. 116.

[10] ADIWARDANA, Margaretha N. Op. cit. p. 22.

[11] MEER, Antonia Leonora van der. Op. cit. p. 111-112.

[12] CIM é um departamento da AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras), que reúne forças missionárias e tem por objetivo promover o cuidado integral do missionário através da conscientização, treinamento e a organização de uma rede para o cuidado em si. O grupo administra o blog: http://cuidadointegral.info/

[13] Lucas 14.26-27 (NVI), assim como a passagem paralela de Mateus 10.37-38.

[14] PRETE, Vito Del. Op. cit. p. 317.

[15] PRETE, Vito Del. Op. cit. p. 320.

Photo by Jeison Spaniol

Compartilhe!
0
    0
    Seu carrinho
    Seu carrinho está vazioVoltar para as compras