O Projeto Hadith Turco – Reexame Das Tradições E Das Disputas Dentro Do Mundo Islâmico

por Peter Riddell

A estereotipagem do mundo do islã é uma tarefa infrutífera, tamanha a sua diversidade interna. Hoje em dia, conflitos sectários estão despedaçando populações muçulmanas no Oriente Médio, África e Ásia. Enquanto um grupo de muçulmanos persegue a visão de uma fé com olhos racionalistas, voltados para a frente, outro grupo olha para trás, para o que consideram uma era pristina, quando Maomé estabeleceu a primeira comunidade islâmica em Medina.[1]

Para o segundo grupo, os hadiths (que são as tradições proféticas) são cruciais para realizar sua visão, permitindo aos muçulmanos que desejam moldar a própria vida inspirados no profeta, que assim o façam. Essas tradições registram dezenas de milhares de relatos curtos acerca de ações, atitudes, preocupações, preferências e preconceitos de Maomé.

Lidos literalmente, os hadiths podem levar os muçulmanos para muitas direções: à compaixão por viúvas e órfãos, a atitudes patriarcais para com mulheres, ao desprezo por minorias religiosas e ao jihad militar pela causa do islã.

Alguns grupos muçulmanos estão voltando a se dedicar aos hadiths, reconhecendo que muito de seu conteúdo aponta mais para circunstâncias sociais de séculos passados do que para exigências presentes e futuras de sociedades diversas. Eles estão tentando selecionar essas tradições proféticas de tal modo que complementem, e não contradigam, os valores do século 21.

O Projeto Hadith turco

Em meados de 2013, o Ministério de Assuntos Religiosos da Turquia, o Diyanet, publicou uma nova seleção de relatos de hadith. Intitulado O Islã com os Hadiths do Profeta, seu surgimento representou a culminação de um período gestacional controvertido de quase uma década.

Em 2004, o então Ministro de Assuntos Religiosos da Turquia, Mehmet Aydin, apresentou a proposta de produzir essa nova coletânea de hadiths. Esse projeto recebeu o apoio direto e patrocínio do governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) liderado pelo Primeiro Ministro Recep Tayyip Erdogan, que estava investindo recursos significativos para reavivar a identidade islâmica da República Turca secular.

Os termos de referência desse projeto foram fixados claramente por Mehmet Gormez, líder do projeto na época, acadêmico nos estudos dos hadiths, que explicou: “O projeto é inspirado nas interpretações do veio modernista do islã . . . Queremos trazer à tona o lado positivo do islã que promove honra pessoal, direitos humanos, justiça, moralidade, direitos das mulheres, respeito ao outro”.[2]

Uma equipe de mais de 80 estudiosos reuniu-se para esse fim, e a responsabilidade foi transmitida para a Faculdade de Divindade da Universidade de Ankara. O trabalho foi iniciado de fato em 2006, mas dentro de 18 meses, notícias sobre o projeto haviam se espalhado até fora da Turquia, gerando considerável controvérsia.

Em 2008, Robert Pigott, correspondente de assuntos religiosos da BBC, escreveu: “A Turquia está preparando a publicação de um documento que representa uma reinterpretação revolucionária do islã — e uma modernização controvertida e radical da religião”. [3] Outras novas agências ocidentais seguiram os passos, apresentando o projeto de maneiras que refletiam um anseio, latente no Ocidente, de testemunhar uma reforma islâmica.

Gormez, que estava pessoalmente encarregado de escrever uma parte do primeiro volume, tentou inserir uma dose de realidade na discussão, comentando numa entrevista:

“[A mídia ocidental] fez muito alarde e tirou o projeto de seu verdadeiro contexto. Nem estamos formulando um novo islã nem nos atrevemos a alterar as máximas fixadas do islamismo. A mídia ocidental leu o que estamos fazendo de uma perspectiva cristã e o compreendeu de acordo com sua cultura cristã e ocidental . . . Nenhum muçulmano em perfeito juízo ousaria apagar algum hadith ou alterar a herança do Profeta”.[4]

Assentada a poeira dessa agitação causada pela mídia, a equipe do projeto da Universidade de Ankara deu andamento às suas tarefas. Os desafios eram múltiplos. Primeiro, algumas vozes muçulmanas conservadoras tinham sido alertadas para esse projeto por causa da discussão na mídia e estavam vigiando de perto os desenvolvimentos. Diz-se que um estudioso árabe irado teria confrontado um acadêmico turco: “Depois você vai escrever um novo Alcorão?”[5]

Além disso, a tarefa de selecionar algumas centenas de relatos de hadith dentre as dezenas de milhares disponíveis representava um desafio significativo. O problema não era simplesmente uma questão de navegar em meio a detalhes. Simplificando, muitos hadiths citam Maomé expressando opiniões antagônicas às atitudes pluralistas do século 21:

• O falecido acadêmico modernista muçulmano da Índia, professor Asghar Ali Engineer (1939-2013), identificou uma dimensão do desafio ao escrever: “encontramos hadiths ainda mais inquietantes a respeito das mulheres atribuídos ao Profeta”,[6] e citando a famosa coleção de Al-Bukhari: ‘O mau presságio está em três coisas: o cavalo, a mulher e a casa” (Hadith 4:52:110).

• Outro exemplo de relatos de hadiths igualmente problemáticos encontra-se na coleção autorizada de Muslim ibn Hajjaj, que registra Maomé dizendo a seus seguidores: “Não cumprimentem os judeus e os cristãos antes de serem cumprimentados por eles; e quando encontrarem algum deles no caminho, forcem-nos a passar pelo lado mais estreito” (Livro 26, Hadith 5389).

O projeto é realizado

A coletânea Islã com o Hadith do Profeta atraiu interesse considerável quando foi lançada pelo Diyanet no Ramadã de 2013. Ela foi publicada como uma enciclopédia em sete volumes, tendo por base quase 20 coleções autorizadas de hadiths e apresentando suas centenas de relatos de hadiths agrupados de acordo com cerca de 350 temas. Diferente das coleções clássicas de Al-Bukhari e outros grandes tradicionalistas que simplesmente alistam os hadiths sem comentários, essa nova coletânea turca apresenta os temas dos hadiths no contexto de ensaios complementares curtos, fornecendo o panorama histórico e dando ênfase especial à sua relevância para o século 21.

Dentro dessa coleção dá-se atenção especial à orientação das atitudes do leitor em questões de grande prevalência hoje, como o direito das mulheres, o meio ambiente e outros tópicos contemporâneos. Alguns hadiths são reunidos em torno do tema da educação, sendo que o primeiro afirma: “buscar conhecimento é obrigação de todo muçulmano”. Depois de apresentar vários outros hadiths relacionados, apresenta-se um comentário salientando que “todo muçulmano” também inclui mulheres. Desse modo, a coleção mina sutilmente grupos literalistas que dão grande importância aos hadiths, como os talibãs paquistaneses e afegãos que destroem escolas para mulheres e restringem as mulheres à casa, citando certos hadiths como base para suas posições obtusas.

O Diyanet está decidido a maximizar a influência da nova coletânea. Ela tem sido enviada para toda a Turquia, para imãs designados pelo governo. Além disso, a coletânea foi traduzida para várias línguas, inclusive albanês, azerbaijano e bósnio, e estão em andamento as traduções para o chinês e para várias línguas europeias.

Entretanto, sua influência no nível das massas turcas é incerta. Nas palavras de um acadêmico turco, “É realmente difícil dizer. O povo turco não lê muito, especialmente livros volumosos. Também não tenho encontrado resenhas ou avaliações críticas sérias dela em círculos acadêmicos”.[7] De modo semelhante, só o tempo permitirá uma avaliação séria do impacto de suas versões em outras línguas.

Outros muçulmanos questionam o Hadith

É possível ver em outras partes do mundo islâmico o ceticismo com relação às coleções clássicas do Hadith e à relevância delas para o século 21:

• O falecido professor paquistanês Fazlur Rahman (1911-88), seguramente o maior intelectual modernista muçulmano do século 20, adotou uma posição um tanto cética em relação ao hadith, considerando que as coleções tradicionais incorporavam verdades básicas, mas precisavam de reformulação para atender novas circunstâncias.

• Um crítico mais veemente do hadith era o professor Engineer que deixou uma declaração famosa num artigo: “As mulheres perderam no hadith o que haviam ganhado por meio do Alcorão. Hoje, se o mundo pensa que o islã trata as mulheres de um modo muito injusto, é porque seguimos os hadiths em vez do Alcorão no que diz respeito às mulheres”.[8]

Alguns grupos islâmicos vão além, declarando-se muçulmanos “só do Alcorão”, alegando que o Hadith não deve, de maneira alguma, ser considerado uma literatura sagrada islâmica. Tais grupos anti-hadith encontram-se na Malásia e no Paquistão — conservando-se bem discretos em momentos delicados — bem como no Ocidente. Esses grupos mantêm uma presença visível online, mas seus escritos atraem pronta refutação de grupos muçulmanos mais ortodoxos que afirmam a importância central do hadith como parte do corpus literário sagrado.[9]

Reflexões para os cristãos

Como os não muçulmanos, especialmente os cristãos, devem reagir a tais revisões muçulmanas do hadith? O primeiro passo essencial é ver que o projeto turco faz parte da luta contínua em busca da identidade dentro do mundo islâmico, luta travada entre os que gostariam de impor uma linha escrituralmente literalista de sua fé sobre as massas e seus oponentes que desejam redefinir o islã como uma fé moderna, racionalista, não extremista. Este segundo grupo deseja claramente manter os elementos essenciais do islã, mas expressando-os dentro dos moldes do século 21.

Entretanto, há outro ângulo que os cristãos precisam considerar. Muitos estudiosos cristãos do islamismo afirmam que as múltiplas manifestações de radicalismo islâmico estão profundamente alicerçadas nos textos do islã, não sendo meras reações a aflições dos dias modernos. Eu mesmo tenho defendido isso. Para os que sustentam essa opinião, essa iniciativa turca deve ser vista como uma manifestação de algo que aguardamos há muito: um exame promovido pelos muçulmanos em seus textos sagrados, para eliminar elementos inadequados ao mundo moderno — violência, discriminação social, hostilidade para com os não muçulmanos e assim por diante.

Esse Projeto Hadith Turco não vai causar uma reviravolta no mundo islâmico de um dia para outro. Entretanto, pode vir a ser um passo pequeno, mas valioso, numa longa jornada rumo a um exame genuinamente crítico de assuntos tabu que clamam por um escrutínio detalhado: a historicidade dos textos sagrados e a vida de Maomé.

Peter Riddell é vice-diretor acadêmico da Escola de Teologia de Melbourne e Professor Associado de Pesquisa de História na SOAS (Escola de Estudos Orientais e Asiáticos), na Universidade de Londres. Suas pesquisas concentram-se na história islâmica no sudeste asiático e em textos teológicos, com atenção especial à interpretação do Alcorão.

Publicado originalmente no Lausanne Global Analysis de Julho de 2016 (https://www.lausanne.org/content/lga/2016-07/turkish-hadith-project).

Notas
[1] Nota do editor: Veja o artigo intitulado ‘The Challenge of Radical Islam’ de John Azumah na Análise Global de Lausanne, edição de março de 2015, e o artigo intitulado ‘The UK Campaign to End Religious Illiteracy’ de Jenny Taylor na Análise Global de Lausanne de janeiro de 2015.
[2] http://www.danielpipes.org/5554/is-turkeys-government-starting-a-muslim-reformation
[3] http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7264903.stm
[4] https://books.google.com.au/books?id=gm6TyAANfM8C&printsec=frontcover&cd=1&source=gbs_ViewAPI&output=embed&allissues=1&redir_esc=y
[5] http://www.huffingtonpost.com/2013/05/22/turkey-hadith-project-diyanet-presents-prophets-sayings-for-the-21st-century_n_3319657.html
[6] http://www.futureislam.com/inner.php?id=Mjcw
[7] Correspondência pessoal.
[8] http://www.futureislam.com/inner.php?id=Mjcw
[9] Veja um exemplo de crítica anti-hadith em http://www.masjidtucson.org/publications/books/sp/1986/aug/page1.html. Veja uma refutação online dos escritos anti-hadith em http://fighting-anti-sunnah.blogspot.com.au/2012/11/introduction-to-anti-hadith-or-anti.html.

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