Podemos oferecer uma teologia melhor?

Acumulando tesouros no reino

Rosalee Velloso Ewell

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Depois que tiverem comido até ficarem satisfeitos, louvem o Senhor, o seu Deus, pela boa terra que lhes deu. Tenham o cuidado de não se esquecer do Senhor, o seu Deus, deixando de obedecer aos seus mandamentos […] depois de terem comido até ficarem satisfeitos, de terem construído boas casas e nelas morado, de aumentarem os seus rebanhos, a sua prata e o seu ouro, e todos os seus bens, o seu coração fique orgulhoso e vocês se esqueçam do Senhor, o seu Deus, que os tirou do Egito, da terra da escravidão. […] Ele tirou água da rocha para vocês, e os sustentou no deserto com maná, que os seus antepassados não conheciam, para humilhá-los e prová-los, a fim de que tudo fosse bem com vocês. Não digam, pois, em seu coração: ‘A minha capacidade e a força das minhas mãos ajuntaram para mim toda esta riqueza’. Mas, lembrem-se do Senhor, o seu Deus, pois é ele que dá a vocês a capacidade de produzir riqueza, confirmando a aliança que jurou aos seus antepassados, conforme hoje se vê. Mas, se vocês se esquecerem do Senhor, o seu Deus, e seguirem outros deuses, prestando-lhes culto e curvando-se diante deles, asseguro-lhes hoje que vocês serão destruídos. (Dt 8.10-19)

Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros nos céus, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração. […] Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro. Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. […] Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer?’ ou ‘Que vamos beber?’ ou ‘Que vamos vestir?’. Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas […] Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas. (Mt 6.19-33)

Por quase 8 anos ensinei num seminário aqui no Brasil. Certa vez, quando examinávamos algumas das características da igreja primitiva no livro de Atos e, em particular, as implicações econômicas daqueles textos bíblicos, um aluno levantou a mão e disse: “Professora, não podemos pregar essas coisas em nossas igrejas. Há muita pobreza e todas as igrejas à nossa volta pregam prosperidade, riqueza e bênçãos – isso é o que as pessoas querem ouvir. Se não pregarmos riqueza, elas vão para outro lugar porque ouvem esperança em outras igrejas; o ensino da prosperidade dá esperança para elas. Nenhum pobre quer ouvir de sacrifício pessoal, altruísmo e vida simples”.

A teologia da prosperidade lhes dá esperança. Bem, parafraseando John Stott e seu legado no Movimento de Lausanne e também na Aliança Evangélica Mundial, precisamos encontrar meios de oferecer uma esperança melhor, uma teologia melhor. Se falharmos nisso, realmente não importa a qualidade da crítica que fazemos aos ensinos da teologia da prosperidade, a qualidade das nossas análises. O desafio diante de nós é grande – oferecer uma teologia da esperança realmente bíblica, realmente evangélica, que leve a sério o que a Bíblia diz tanto sobre a justiça de Deus como sobre as bênçãos dele.

Oferecer uma teologia melhor significa ler as Escrituras de tal maneira que sejamos forçados a considerar e reconsiderar nossas práticas, nossos estilos de vida, nossos jeitos de sermos igreja e, em especial, como essas coisas são moldadas por concepções deficientes de riqueza e de bênçãos de Deus.

Em poucas palavras, se quisermos ser uma voz profética e uma voz de esperança e justiça, precisamos reconhecer que Deus julga certas formas de vida. Há muitas coisas que Deus julga e condena, práticas e doutrinas ao longo de toda a história cristã que a igreja tem considerado indignas do evangelho. Mas há uma coisa em toda a história, desde as histórias do antigo Israel até os dias de hoje, que é condenada com mais dureza: a idolatria – “Não terás outros deuses além de mim” (Ex 20.3). A idolatria é o pecado de depositar confiança no objeto errado e desejar algo que não é Deus.

Eu pergunto: “Em quem você confia? Em que você confia?”.

Enquanto pensava sobre isso e sobre as palavras das Escrituras que falam do que estamos discutindo, não tinha como escapar do grande sermão de Jesus registrado em Mateus e Lucas. Eu preferia não ter de falar sobre esse texto. Por quê? O que há no Sermão do Monte que gera desconforto? Essas palavras não podem ser espiritualizadas, não são um ideal estabelecido para os perfeitos – muito pelo contrário –, essas palavras de Jesus lidam com temas do dia a dia: raiva, casamento, o jeito de comer, o jeito de falar uns com os outros, dinheiro e riqueza. É difícil ler esses textos porque estão muito perto.

Os montes, lembre-se, surgem de maneira destacada no evangelho de Mateus. São lugares de batalhas, de oração e visões, e de grandes advertências. É no topo de um monte muito alto que o diabo tenta Jesus pela terceira vez, mostrando-lhe todos os reinos deste mundo e o esplendor deles (cap. 4). É do alto de um grande monte que um pequeno grupo de discípulos fica amedrontado e perplexo diante da transfiguração (cap. 17); é no cume das montanhas que Jesus ora (cap. 14). Num monte ele é crucificado e, em Mateus 28, é a um monte que ele leva os discípulos, fazendo-lhes lembrar a missão que receberam e tudo o que lhes ensinou. Assim, quando Mateus diz que algo está acontecendo num monte, é bom prestar atenção especial — são momentos especiais na narrativa.

Qual é o tema central do Sermão do Monte? Eu afirmaria que não é o amor ou o arrependimento, nem a ética cristã como tal, ainda que essas coisas sejam importantes. Mas o tema geral é o reino e como viver nesse reino que já existe na própria pessoa de Jesus. Uma resposta para os ensinos distorcidos da teologia da prosperidade deve ser uma teologia do reino e a esperança que Jesus nos oferece quando nos convida para seu reino. Mas o chamado de Jesus para nos unirmos a ele é mais que um convite. Trata-se de outro modo de levar a vida sem cair na armadilha da idolatria — o jeito de viver no reino de Deus. É um reino de ponta-cabeça. É muito comum usarmos esse jeito às avessas como um recurso fácil para negar seus ensinos, ignorar e desconsiderá-lo como algo que reflete a vida na Palestina do primeiro século. Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus; bem-aventurados os pacificadores; bem-aventurados os perseguidos… alegrem-se e regozijem-se na perseguição. Não queremos ficar com fome, ser perseguidos ou ser pobres. Mas não podemos ignorar esses textos.

Isso é Jesus nos ensinando sobre como é a vida nesse reino alternativo. É um reino para o aqui e agora, onde pessoas ficam com raiva, onde casamentos entram em conflito, onde há gente tentando se exibir na igreja, onde o dinheiro é um senhor que escraviza, e a riqueza é o novo ídolo.

Paul Freston mostrou-nos como a teologia da prosperidade é vista por aqueles que recebem a mensagem; como, para alguns, é um jeito de desafiar o capitalismo de mercado; como ela confere poder às pessoas, dando-lhes uma oportunidade de serem doadoras, em vez de simplesmente receptoras e, com isso, devedoras em relação ao doador. Isso lhes dá um senso de esperança e um lugar de acolhimento. A teologia da prosperidade oferece às pessoas algo em que depositar a confiança.

Há duas questões fundamentais por trás disso:

  1. De quem eu sou?
  2. Em que ou em quem eu confio?

As perguntas estão ligadas. Não terás outros deuses além de mim. Idolatria é confiança no objeto errado.

Confiança implica relacionamentos. Essa é a confiança que esperamos que nossas crianças tenham em nós; essa é a amizade pela qual o mundo se torna um lugar melhor; é saber que estas pessoas (esta família) são sua turma, e esta é a sua casa.

Nos evangelhos, Jesus está ensinando aos discípulos um novo modo de confiar e, portanto, um novo modo de pertencimento. Jesus chama Simão Pedro e seu irmão André (4.18ss.). Tiago e João, pescadores, gente simples; trabalhadores braçais que não estavam no topo da pirâmide econômica. Quem é a pessoa que ele chama em seguida? O próprio Mateus – um cobrador de impostos, o sujeito que trabalhava para o império, que recebia propinas e enganava os outros como os pescadores. Não existe um jeito natural de Pedro e Mateus serem amigos. Jesus põe as coisas de pernas para o ar ao colocar Mateus, o cobrador de impostos, e Pedro, o pescador, na mesma comunidade. Mas é exatamente esse tipo de vida no reino que está acontecendo aqui.

Jesus torna possível um novo modo de pertencimento em torno dele mesmo. Ao seguir Jesus, os discípulos estão juntando a própria vida não só à do mestre, mas também à dos outros – isso faz parte do que significa seguir Jesus. Discipulado significa estar juntos e, juntos, tentar seguir Jesus. Quanto mais perto de Jesus, mais perto uns dos outros.

A confiança em Jesus exige e possibilita a confiança nos outros. No reino há outros à sua volta — trata-se precisamente de um novo modo de existir, uma nova ordem de vida comunitária possibilitada por meio de Jesus. Se o discipulado só dissesse respeito ao indivíduo no reino, não precisaríamos do Sermão do Monte – quem se importaria com a maneira de vivermos juntos ou o uso que fazemos de nosso dinheiro? Mas não se limita ao indivíduo, trata-se de como partilhamos a vida nesse reino de Jesus. Jesus leva-nos para junto de si e, assim, leva-nos para perto dos outros; e essa é uma promessa oferecida a você e a mim.

Então, o que essa coisa de nova comunidade e aprender a confiar tem a ver com dinheiro, riqueza e preocupações? – guardar tesouros no reino.

Quando chegamos a esse texto em Mateus 6, Jesus acaba de instruir os discípulos acerca de como orar e de como Deus pode redimir até as piores motivações. Ele falou de raiva, casamento, piedade, e então ele passa para aquilo que sustenta os reinos deste mundo: a economia.

Agora vivo na Grã-Bretanha. Os britânicos entendem de reinos. Eles têm uma rainha, uma família real. De que são feitos os reinos? O que os sustenta e os mantém em atividade? É o dinheiro – os tesouros da coroa. Fecham-se acordos, arranjam-se casamentos, travam-se guerras para manter o reino funcionando. Esse reino pode ser a Inglaterra, o Império Romano, a Fifa, a Microsoft ou a Unicef. Os reinos são construídos em função do dinheiro e sustentados por ele.

Nesses versículos, Jesus expõe o poder idólatra do dinheiro. O desafio é que o dinheiro não é só uma coisa. É um Deus. Jesus não vai deixar que você desconsidere sua importância, dizendo: “Ah, é só dinheiro”, porque, se você fizer isso, não vai conseguir ver o poder que ele exerce em sua vida e na minha. Dinheiro não é só um artefato, não é só uma coisa neutra lá fora. Onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração. Ninguém pode servir a dois senhores. Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro.

A Bíblia tem muito a dizer sobre dinheiro e riquezas, seja de uma viúva pobre, de um rei rico ou a busca de um tesouro. Como disse um estudioso do NT, nos evangelhos há uma hostilidade generalizada contra as riquezas. É trágico que ou sentimentalizamos as parábolas do reino ou as interpretamos de forma completamente equivocada, esquecendo, assim, as palavras de Jesus neste texto, fingindo para nós mesmos que não somos escravos das riquezas.

Os judeus religiosos entre os ouvintes de Jesus não ficaram surpresos com as palavras dele. Conheciam a lei – o texto de Deuteronômio que já foi mencionado no início:

Não digam, pois, em seu coração: ‘A minha capacidade e a força das minhas mãos ajuntaram para mim toda esta riqueza’. Mas, lembrem-se do Senhor, o seu Deus, pois é ele que dá a vocês a capacidade de produzir riqueza, confirmando a aliança que jurou aos seus antepassados, conforme hoje se vê. Mas, se vocês se esquecerem do Senhor, o seu Deus, e seguirem outros deuses, prestando-lhes culto e curvando-se diante deles, asseguro-lhes hoje que vocês serão destruídos. (Dt 8.17-19)

O que aconteceu a Israel? O que aconteceu a Salomão depois que conquistou toda sua fortuna? Os judeus religiosos dos dias de Jesus conheciam as consequências de esquecer Deus em tempos de prosperidade.

Jesus não se refere especificamente à lei neste texto, como fez anteriormente no sermão, mas creio que a intenção era a mesma…

Vocês ouviram: “Não matarás”… mas eu digo que nem se irem.

Vocês ouviram: “Não adulterarás”… mas eu digo que nem olhem uma mulher desejando tê-la.

Vocês ouviram: “Agradeçam a Deus pela prosperidade”… mas eu digo que nem acumulem tesouros sobre a terra.

Jesus está entrando no coração dos reinos – as riquezas corrompem e, mesmo que tenhamos a melhor das intenções, o dinheiro vai nos derrotar. Se alguém é pobre e vive querendo dinheiro ou se é rico e vive preocupado acerca do que fazer com o dinheiro – ele domina nossos pensamentos. Não é por acaso que a última parte desse capítulo em Mateus fala de ansiedade, de como nos preocupamos com todo tipo de coisas – a maior parte delas relacionada com possuir dinheiro ou ter capacidade de adquirir o que não possuímos ou o que pensamos necessitar.

Pense no anel no Senhor dos Anéis, trilogia de Tolkien – o anel atrai Frodo, exerce poder sobre ele e o enreda. Seu poder não se limita a empurrá-lo para o mal, como também, ao fazê-lo, empurra-o para longe do hobbit que ele devia ser e para longe do grupo de amigos a que pertence. Frodo sabe que pode ter problemas sérios se sucumbir ao poder do anel. Sabe que precisa destruí-lo antes de ser destruído por ele. Em sua mente e coração, ele sabe. Mas não basta saber. Como o anel, as riquezas têm o poder que ameaça até nossos sonhos. Elas moldam nossos desejos e distorcem nossa confiança.

Não basta ter uma perspectiva correta ou ter boas intenções quanto às riquezas. Jesus desmascara isso. O perigo é que o dinheiro é muito rápido em nos cegar. Frodo tinha a melhor das intenções, mas o anel exercia tanto poder sobre ele que, por mais que tentasse, era enredado de tal maneira que não conseguia enxergar nem o verdadeiro amigo que tinha em Samwise.

Ninguém pode servir a dois senhores. […] Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida […].Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas. (Mt 6.24, 25, 33)

Isso tem tudo a ver com a confiança e os tipos de comunidade que o evangelho possibilita. Uma parte do que significa estarmos em Jesus é ter a capacidade de partilhar a vida e de aprender a confiar de tal maneira de forma que se evita ficarmos preocupados. É isso que Jesus cria na comunidade dos discípulos, é isso que vemos em Pedro e Cornélio, é o que vemos no pequeno grupo que se reunia junto ao rio em Filipos: uma escrava, um mercador, um carcereiro. Em outro contexto, eles não seriam amigos. A alternativa à promessa de riquezas, esperança e pertencimento oferecida pelos ensinos da prosperidade é a vida realmente partilhada, o pertencimento e a confiança que só são possíveis porque o próprio Jesus nos uniu.

Falamos da pobreza, da necessidade de dar ouvidos aos pobres, do desafio de falar de simplicidade e de humildade em contextos de pobreza. Dar ouvidos aos pobres? Não é o que penso. Isso não basta. O reino de Jesus é de cabeça para baixo, e não diz respeito ao ouvir, mas ao ser, à vida partilhada. Isso é radical – a alternativa a que Jesus nos chama é ser pobre e viver com os pobres. Literalmente. Estar presente no mundo de modo que se manifeste o caráter reverso do evangelho. Partilhar vida literalmente, e vida em abundância – partilhar comida, recursos, lutas, alegrias, lamentos. Quando somos atraídos para perto de Jesus, somos atraídos para perto uns dos outros – os que não seriam amigos naturalmente “no mundo real” partilham a vida de verdade “no mundo real”.

A economia do reino não pode ser considerada como algo de outro mundo ou como algo para uma época ideal, para um mundo sem bolsas de valores. Você não pode falar a respeito desses textos: “É, mas no mundo real é assim que as coisas funcionam…”. A resposta do Novo Testamento a essa frase é: no mundo real, Pedro e Mateus são inimigos que desprezam um ao outro. A resposta do Novo Testamento (e há muitos ecos dela no AT) é: outro mundo não só é possível, como está presente aqui e agora em Jesus.

Perguntei: em quem você confia?

Confiança envolve risco – não há garantia de que, estando nessa nova comunidade, tudo vai acabar dando certo. A comunidade é frágil. Pode haver traição – para Jesus houve. Pense naqueles discípulos. O amor de Judas pelo dinheiro demonstra o poder daquelas 30 moedas de prata. Seu ato de trair Jesus não só levou à crucificação, como dilacerou aquela comunidade que havia se formado em torno de Jesus. A comunidade é frágil, mas não impossível.

Depois do choque e do trauma daquela traição, Jesus retorna ressuscitado, atraindo novamente para si aqueles personagens disparatados, e, então, envia-os no poder do Espírito Santo. Nada mais prático. É dentro dessa comunidade do reino de ponta-cabeça e por meio dela que partilhamos comida e roupa, é nesse reino que buscamos justiça e misericórdia. Porque estamos juntos, aprendemos a não nos preocupar. Se nossos modelos de igreja são tais que não conseguimos partilhar a vida, será bem difícil contrapormo-nos aos ensinos da teologia da prosperidade.

A confiança nas boas novas de Jesus livra-nos das ansiedades. Nós não temos de salvar o mundo. Jesus já veio e já fez isso. Somos chamados para obedecer, para viver de um jeito que cheguemos mais perto de Jesus e uns dos outros. Se mantivermos os olhos em Jesus, somos não só livrados das preocupações e do poder das riquezas, como também levamos outros para perto de Jesus.

Talvez, nesses textos, Jesus esteja tentando ensinar não a perguntar: “De onde virá minha comida?”, mas “Com quem vou partilhar a vida?”. E: “Como vejo Jesus?”, “Como partilho a vida real?” – essa coisa de plantar jardins, orar pelos enfermos e curá-los, cuidar dos pobres e das viúvas.

Em Atos, temos histórias daqueles cristãos primitivos tentando vivenciar em seus contextos os vários ensinos que Jesus deixou no sermão do monte. São coisas bem práticas, desde educação teológica até o partir do pão. Nas cartas de Paulo, de novo deparamo-nos com aquela gente tentando vivenciar o evangelho de maneiras bem confusas, com todas as suas implicações econômicas e políticas. Ricos e pobres em Corinto, judeus e gentios em Roma – pessoas que não estariam naturalmente juntas “no mundo real” são agrupadas pelo poder do evangelho e, portanto, precisam desenvolver juntas o significado da vida nova “no mundo real”.

C.S. Lewis não é meu teólogo favorito, mas ele capta bem a esperança e a possibilidade que temos de oferecer uma teologia melhor: uma teologia para a vida compartilhada, para aprendermos a confiar em Deus a fim de confiar uns nos outros, por causa dele, e com isso não cairmos nas idolatrias das riquezas. Ele escreve isto acerca dos primeiros discípulos:

“Essas pessoas voltaram a se encontrar com ele depois de tê-lo visto ser assassinado. Por fim, tendo-se constituído numa pequena sociedade ou comunidade, essas pessoas de alguma forma descobriram Deus dentro de si próprias, dizendo-lhes o que fazer e tornando-as capazes de atos que até então eram impossíveis”.

Depois de partilharem a vida, descobriram Deus dentro de si. Guardar tesouros no reino é encontrar meios de fazer coisas que antes não conseguíamos. É reconhecer o poder que a riqueza exerce sobre nós e nos arrepender. A alternativa à teologia da prosperidade não é uma riqueza alternativa, outro ídolo ou a independência, mas é a interdependência possibilitada pela vida partilhada. É viver de tal maneira que o mundo verá que outro mundo é possível.

 

Sobre a autora
Rosalee Velloso Ewell (Brasil) é teóloga e filósofa e, atualmente, Diretora do Redcliffe College (Reino Unido) e líder da área de relacionamento com igrejas na United Bible Societies. Também é editora de Novo Testamento no Comitê Latinoamericano de Literatura Bíblica. (Atualizado em abril de 2020.)

 

Esse texto foi cedido pelo Movimento de Lausanne ao Martureo para publicação.

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