A missão da igreja hoje

3 mudanças na igreja e 7 realidades globais que transformam os estudos de missão

Rafael Zulato Langraff

O texto a seguir traz um resumo da introdução e da parte 1 da obra de Michael W. Goheen A missão da igreja hoje[1], livro que é fruto de um curso de introdução à missiologia ministrado por ele ao longo de 25 anos. O conteúdo teve forte influência da obra Missão Transformadora de David Bosch. De acordo com Goheen, trata-se de uma tentativa de produzir um material mais breve e de mais fácil compreensão, porém contemplando todos os tópicos propostos por Bosch.

Além da introdução, o livro tem três partes:

  1. Reflexão bíblica e teológica sobre missão;
  2. Reflexão história e contemporânea sobre missão;
  3. Temas atuais na missão hoje.

Introdução – Uma mudança de paradigma nos estudos de missão hoje

Coloca-se em discussão se é possível manter a visão de missão na forma tradicional, isto é, como a tarefa da igreja de levar o evangelho a outros lugares e culturas (aos povos não alcançados, por assim dizer).

Em seguida, Goheen aponta três principais mudanças e transformações da igreja no mundo:

(1) o crescimento da igreja no hemisfério sul-leste;

(2) o declínio nas igrejas mais antigas no ocidente-norte;

(3) o crescimento explosivo da igreja pentecostal global.

Em vista dos pontos 1 e 2, caracterizar os locais do ocidente como a base da missão e o leste-sul como campo missionário é incongruente[2]. Os países mais pobres já têm assumido a ponta na tarefa, e levado missionários, inclusive, aos países ocidentais. Quanto ao ponto 3, por volta do ano 2000, os pentecostais já somavam mais de 400 milhões de fiéis, ultrapassando os de tradição anglicana (76 milhões) e batista (110 milhões), e isso também traz uma nova perspectiva para a missão.

As realidades globais em transformação também levam a um novo paradigma de missão. Dentre elas, destacam-se:

  • Colapso do colonialismo no século 20 – Como resultado, países que estavam sob domínio ocidental rumam para uma liberdade de expressão e uma mudança cultural.
  • Globalização – Conduz a propagação da história ocidental moderna do progresso econômico em todas as partes do mundo por meio da nova tecnologia da informação.
  • Urbanização – No século 21, 80% da população está nos centros urbanos; em 1800, apenas 5% da população vivia em cidades.
  • Espantosos problemas sociais e econômicos – Distribuição de renda desigual, pobreza extrema, epidemia de HIV-aids (e recentemente, a pandemia de Covid-19!), crime organizado, corrupção, tráfico de pessoas, prostituição, indústria do sexo, tráfico e consumo de drogas, terrorismo, crise nas áreas de alimentação, educação e saúde, armas nucleares, consumo desenfreado e deterioração dos recursos naturais.
  • Crescimento numérico da população – Quando Willian Carey partiu para a Índia no final do século 18, o mundo ainda não tinha 1 bilhão de pessoas. Em 2021, são quase 8 bilhões.
  • Ressurgimento das religiões – O secularismo está em declínio em termos globais e o islamismo é a religião que mais cresce.
  • Mudanças culturais colossais na cultura ocidental – Indústria do lucro, tecnologia estimulando o consumo e gerando excesso de informação, apatia, tédio crônico, pós-verdade etc.

Após expor essas realidades globais e da igreja, o missiólogo traz quatro definições de missões que, juntas, podem ajudar a se chegar a uma conclusão do que é missão.

A primeira delas seriam os seis continentes testemunhando aos seis continentes, uma ideia diferente de Europa e América do Norte para Ásia, África e América Latina; o testemunho dos seis continentes.

A segunda, de Christopher Wright, é a de nossa participação como o povo de Deus a convite ou ordem de Deus na própria missão de Deus. Assim, temos a ideia de que a missão não é, em primeiro lugar, o que a igreja faz, mas sim a nossa participação na missão de Deus.

A terceira definição propõe a quebra do paradigma de expansão, substituindo-o pelo mote da comunicação. Missão não é uma expansão do reino de Deus, mas a comunicação do evangelho em todos os lugares.

Por fim, a quarta definição consiste na ideia da igreja como um todo levando todo o evangelho ao mundo todo. A missão não diz respeito (apenas) aos missionários, é de toda a igreja. O autor defende um evangelho integral – evangelho espiritual para a alma e social para o corpo – e a ideia de “para o mundo todo” (não somente em locais tidos como campos missionários, onde há os chamados povos não alcançados).

Goheen encerra a sua introdução questionando como todas essas mudanças impactam os estudos missionários hoje, chamando a atenção para os oito pontos a seguir.

  1. A necessidade de uma nova reflexão sobre as Escrituras e a missão: revisitar a Bíblia e verificar as bases teológicas do que se entende por missão dentro do contexto atual.
  2. Reavaliação da maneira como entendemos a história da missão. Ele cita, inclusive, este provérbio africano: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, o caçador sempre será o herói da história”. Precisamos rever a história das missões no contexto agora global.
  3. Uma nova reflexão sobre a natureza da missão – afinal, o que é missão em si? Como relacionamos o conceito de missão com evangelismo intercultural? E com os conceitos de misericórdia e de justiça social?
  4. O crescimento da igreja em todas as culturas e a necessidade de contextualização do evangelho. Para o missiólogo, seria correto examinar a igreja em seus vários contextos culturais à luz dos tipos de problemas que enfrenta na missão hoje.
  5. Diferenciar os conceitos de evangelismo e missões de conceitos da cultura ocidental onde eles estão enraizados e contaminados por idolatria, muitas vezes levando a uma ideia de que missões diz respeito à transmissão de conceitos culturais ocidentais.
  6. Como se dá o encontro dos missionários cristãos com outras religiões do mundo uma vez que, por muitos anos, o cristianismo se fechou do resto do mundo e agora o pluralismo está diante de todas as igrejas, todas as comunidades de fé?
  7. Missão urbana – o crescimento explosivo das cidades demanda uma reflexão acerca de como a igreja deve lidar nas cidades ocidentais e ocidentalizadas sofisticadas, bem como nas periferias, favelas e bairros populares.
  8. A igreja mundial, isto é, a missão como um cristianismo mundial. O livro propõe uma reflexão que inclua os contextos religiosos do Sul global (ou da Europa secularizada, por exemplo) não só em discussões de missiologia, mas em todas as discussões teológicas, considerando todo o caráter do cristianismo em todas as esferas globais.

Parte 1 – Reflexão bíblica e teológica sobre missões

Capítulo 1 – A Escritura como registro narrativo da missão de Deus

Apresenta uma forma de interpretação da Bíblia a partir de uma hermenêutica missional: a Escritura como um todo histórico redentor. Existe um fio condutor cujo tema é a restauração do mundo todo. Tal perspectiva implica que a questão da missão não está apenas em alguns textos específicos (principalmente no Novo Testamento), mas em todas a Bíblia. Missão é muito mais que o “ide”, e “vão” não é o termo principal ou a ordem central do texto da grande comissão. A missão se torna a missão de Deus – restaurar o mundo –, e nós precisamos encontrar nosso papel nela.

Goheen explana vários textos do Antigo e do Novo Testamento em que a missão se apresenta nas Escrituras. Ele começa falando sobre o conceito de eleição e da importância de entendê-lo de forma mais completa – além de um privilégio, é uma responsabilidade, acarreta uma obrigação. Isso aparece desde o Gênesis, quando Abraão é escolhido e abençoado para ser uma benção para todas as nações. No Êxodo, a escolha de Israel complementa esse chamado: o propósito é que Israel seja referência para todas as nações com a missão de refletir Deus a todos até os confins da terra. Robert Martin nos lembra que “missão é uma questão de presença”, tanto a presença do povo de Deus no meio da humanidade quanto a presença de Deus no meio do povo. Assim, a missão de Deus por meio de Israel é universal: abrange todas as nações. É centrípeta: deve refletir (Deus) e ser referência para os outros povos. É escatológica: o povo não cumpriu o seu objetivo durante a história, mas a missão de Israel tem um objetivo que considera o futuro; a história de Israel se define em termos escatológicos.

O autor descreve a missão de Jesus como aquele que foi enviado e nos envia em semelhança (Cristo é o modelo). A era do “já/ainda não” foi estabelecida por Cristo pelo fato de que ele já estabelece o reino, mas ainda não o consolida. Dessa forma, estamos neste intervalo de consolidação, que constitui na missão da igreja dando continuidade à missão de Jesus, que é a missão de Deus. Segue que primeiro Jesus é enviado para reunir Israel, e, depois, para renovar Israel. Então, ele é enviado para reunir o seu povo (porque é por meio de Israel que os gentios encontrariam a pregação do evangelho a partir do exemplo da pregação de Jesus a Israel). Jesus se torna o padrão e, por meio da crucificação, ressurreição e comissionamento, estabelece o que seria a missão da igreja até os confins da terra, que significa levar a missão de Deus em continuidade à missão de Israel e de Jesus.

Segundo o missiólogo, a missão da igreja é a continuação da obra de Cristo relatada em Atos e interrompida, deixando seu desenvolvimento para nós, ou seja, a missão da igreja continua além dos escritos de Atos, e devemos fazer isso também de forma “criativa, imaginativa e improvisando nos novos contextos culturais em que estamos”.

Capítulo 2 – Teologia da missão e teologia missional

A primeira do capítulo traz uma reflexão teológica sobre missão com três subtópicos – (1) a missão de Deus e a natureza missional da igreja, (2) a dimensão e a intenção missional e (3) missão e missões; a segunda parte traz uma reflexão missional sobre a teologia.

A respeito da missão de Deus e da natureza missional da igreja, dá-se ênfase ao fato de a missão ter origem na Trindade. A missão de Deus se estende através do Filho para a igreja, cuja natureza central reside em sua função missional, ou seja, a missão passa a não ser mais uma tarefa da igreja, mas sua própria essência. Isso implica diversas mudanças e adaptações, o que o autor chama de avanços em várias áreas da teologia. Berckhof afirma que a igreja possui um caráter triplo: de instituição, de comunidade e de orientação para o mundo. Goheen alerta para o fato de que não se atentar para esse aspecto missional da natureza da igreja e da missão de Deus pode conduzir a igreja a dois grandes erros: os extremos da sacralização ou da secularização.

Na distinção que é feita acerca da dimensão missional e da intenção missional, destaca-se o fato de que todas as ações da igreja têm uma dimensão missional, mas nem toda a tarefa tem uma intenção missional. Na mesma linha, é feita uma distinção entre missão e missões. Missão é o caráter natural da igreja, missões são os projetos focados em uma atividade específica de pregação do evangelho.

O autor trabalha a ideia de que é necessário que a missão seja o centro da reflexão teológica. Para isso, reconfigura a teologia da salvação, a escatologia, a cristologia, a pneumologia, a eclesiologia, a antropologia, as perspectivas sobre o pecado e (principalmente) sobre as Escrituras. Parte do ponto de que a teologia clássica ou tradicional é um reducionismo do alcance da verdadeira teologia. Alerta para o fato de salvação não poder ser reduzida apenas ao indivíduo e a algo futuro (pós-morte), ela abrange toda a realidade da vida em todos os aspectos. Dessa forma, é necessário que toda a teologia da missão transite para uma teologia missional, que tenha como centralidade a missão na história e o chamado da igreja no mundo.

 

Sobre o autor

Rafael Zulato Langraff é bacharel em Teologia com especializações em Sociologia e Filosofia, além de acumular formação na área musical. Professor em alguns seminários, também é escritor. Esse texto foi extraído e adaptado de um trabalho ele que realizou em cumprimento às exigências da disciplina Teologia de Missão do Master of Divinity (M.Div.) do Seminário Teológico Servo de Cristo.

 

[1] GOHEEN, Michael W. A missão da igreja hoje – A Bíblia, a história e as questões contemporâneas. 1. ed. Viçosa-MG: Ultimato, 2019.

[2] Assista aqui ao vídeo “5 fatos sobre o cristianismo e a missão”.

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