“Business as Mission (BAM) não é plano B para orçamento apertado de missionário”, diz Feniman

Presidente da AMTB e diretor da Miaf fala sobre missão autóctone, impactos da pandemia e movimentos de plantação de igreja

Entrevistamos Paulo Feniman, diretor executivo da Miaf/Aim South America – Missão para o Interior da África, organização na qual coordena a mobilização e o envio de missionários sul-americanos para diferentes povos africanos, e atual presidente da AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileira. Ele afirma que a pandemia não atrapalhou a mobilização missionária, no entanto…

Confira, a seguir, a conversa na íntegra.

 

Há uma grande ênfase hoje de que a missão deve ser autóctone. Como você enxerga isso?

A tarefa global é de toda a igreja global, a Bíblia é clara quanto a isso. Nesse sentido, ela é policêntrica, ou seja, de todos os lugares para todos os lugares, sem exceção. Agora, quando um cristão [ou um grupo de cristãos] vai viver em outra cultura em que o evangelho não é conhecido a fim de anunciá-lo e plantar uma igreja sadia, essa nova igreja que surge tem de ser também missionária. O grupo de novos cristãos autóctones, naturalmente, deve dar continuidade à tarefa de proclamar Jesus não apenas ao seu povo, mas também aos povos vizinhos e também nos confins da terra. Se não é assim, algo está muito errado.

 

Há como saber que está na hora de um missionário estrangeiro deixar o campo?

Quando o evangelismo local é sistêmico, a nova jovem igreja conta com líderes treinados e a igreja é reprodutiva, é hora servir em outro campo. Isso não significa abandonar a igreja. Tome-se como exemplo o trabalho de Ronaldo Lidório em Gana, na África. Ele deixou nesse país uma igreja com as características que mencionei e, até hoje, tem contato com essa igreja, encorajando-a, cooperando com os irmãos. Mas é uma igreja que caminha sem a dependência de estrangeiros. Não foi isso que o apóstolo Paulo fez?

 

Sobre a abordagem missiológica baseada em ‘Grupos Culturais Homogêneos’, ela deveria ser revista, atualizada?

Essa é uma abordagem que já utilizamos a muito tempo, e que ao longo dos anos passou por ajustes, reformulações e tentativas de entendimento. Ainda hoje nas abordagens com a igreja local ela ajuda de certa forma ao explicar e mobilizar a igreja a respeito das necessidades e desafios do campo. No entanto quando pensamos em processos de alcance e prática missionária, talvez seja necessário repensarmos um pouco mais sobre os conceitos de GCH. Os percentuais usados coletivamente de 2% e 5% ainda não dizem muito sobre o avanço real do evangelho entre um povo, já que o que devemos esperar na verdade não é somente um número “x” de cristãos, mas uma igreja reprodutiva entre eles que seja capaz de avançar com o trabalho de evangelização. Também, vivemos num mundo em uma ebulição de mudanças, inclusive sociais, migração, êxodo rural, etnias sendo absorvida por culturas majoritárias, etc. Todo isso me leva a crer que no mínimo deveríamos fazer um exercício de avaliação levando em conta as mudanças do século XXI.

 

Quais os impactos da pandemia no movimento missionário brasileiro?

Em junho do ano passado, escrevi o artigo “A pandemia e o trabalho missionário”, que tratou disso, e muito do que escrevi continua atual. De lá para cá, graças a Deus, tenho me surpreendido com a generosidade da igreja brasileira. Nenhum missionário da Miaf, organização da qual sou o diretor, por exemplo, precisou retornar do campo. Claro, existe a pressão financeira, a pressão do câmbio, muitos estão passando dificuldades, mas isso já vem desde antes da pandemia. Em relação à mobilização missionária para contextos transculturais, diria que estamos muito bem, Deus tem levantado vários cristãos brasileiros com o desejo de ir a lugares em que o evangelho ainda não é plenamente conhecido. E digo isso não apenas no universo da Miaf, mas de outras organizações missionárias. De outro lado, uma área que está sentindo demais o impacto da pandemia é a de novos envios. Há famílias prontas para ir há mais de um ano, com o sustento levantado, que não podem partir por conta das restrições atuais em termos de vistos. Vale mencionar também que a pandemia tem contribuído para corrigirmos falhas que sempre tapávamos com a peneira, porque precisamos fazer mais com menos, fora a quebra de paradigmas em relação a trabalhos que são passíveis de serem feitos remotamente. Contudo, o evangelho encarnado, vivido por cristãos que se aculturam em determinados contextos e permanecem por prazos longos, continua e continuará sendo necessário na tarefa global.

 

Deveriam ser pensadas outras formas de sustento dos missionários no campo?

A igreja não pode ser excluída de sua responsabilidade em relação à tarefa global, e isso inclui, como mencionei, o sustento de famílias missionárias dedicadas. Também não significa que outros modelos não sejam possíveis. Há cristãos que estão em contextos transculturais e obtém o sustento por meio de sua própria profissão. Um médico cristão que atua com a Miaf, por exemplo, é funcionário do governo e não precisa de ajuda financeira da igreja. Há também empreendedores que atuam com Business as Mission (BAM) [Negócios como Missão], mas isso não é uma alternativa para a igreja não precisar mais se engajar na tarefa, inclusive financeiramente, é um modelo adequado para determinados obreiros e contextos, assim como o de fazedores de tendas e assim por diante. BAM surge como uma ferramenta importante na proclamação do evangelho em países onde o “missionário tradicional” não podia atuar e não como plano B para orçamento apertado de missionários.

 

O que tem a dizer a respeito dos chamados Church Planting Movements [Movimentos de Plantação de Igrejas] e Disciple Making Movements [Movimentos de Fazedores de Discípulos]?

É um trabalho que tem dado frutos em vários lugares e temos de dar graças a Deus pelos mais de mil movimentos ao redor do mundo que, segundo dados da Rede 24:14, já somam mais de 70 milhões de discípulos. Mas não podemos tomar qualquer modelo que seja como único, como a metodologia exclusiva de ação possível, a grande descoberta, até porque isso, em si, é contraditório, exclui o protagonismo do Espírito. Realidades diferentes requerem abordagens diferentes, e, às vezes múltiplas abordagens. Modelos surgem como referência e não como princípio ou regra de sucesso. O que dá certo aqui não necessariamente pode dar certo em outras partes do mundo. Pensar desta forma é uma irresponsabilidade e descaso com os aspectos culturais, antropológicos, etc. Basta uma visão rápida no que tivemos aqui mesmo no Brasil com a chegada de modelos que prometiam um crescimento rápido e aceleração do evangelismo na igreja local. Esses modelos, que tiveram diferentes nomes diziam que o foco deveria ser dado os pequenos grupos e uma diminuição do foco dos grandes encontros. Passado 20 anos, nunca houve tanta valorização do encontro coletivo, levando igrejas inclusive a investirem recursos imensos em estrutura física para valorizar os cultos e grandes encontros. Ou seja, o que se dizia sobre ser o modelo perfeito a 20 anos já não tem tanta força assim. No caso dos modelos de plantação de igreja é a mesma coisa. Precisamos ter cuidado com o triunfalismo, a valorização e um modelo em detrimento do outro, modelos vão e vem, foi assim e continuará sendo assim.

 

Por que a missiologia no Brasil, grosso modo, não inclui a promoção da justiça como um dos aspectos da missão?

Sei que muitos vão me criticar por eu falar isso, mas parece que falam de evangelho integral, de missão integral, como se isso fosse uma grande descoberta. A ação missionária de Jesus, como vemos na Bíblia, sempre foi uma ação integral. Creio que a transformação começa individualmente, e se perpetua gradativamente para toda uma comunidade. Em tribos africanas animistas em que a poligamia era uma prática comum, o evangelho chegou a algumas pessoas e foi se espalhando.. A presença do evangelho na vida das pessoas e/ou de uma comunidade precisa definitivamente trazer a promoção da justiça. Se indivíduos expostos ao evangelho não refletem transformação real em suas comunidades, famílias precisamos questionar a qualidade do discipulado que estamos promovendo. Na África temos visto pequenas transformações que nos mostram que o evangelho muda os indivíduos e suas sociedades desde as pequenas coisas. Sem que houvesse interferência externa, um ancião de uma tribo, que tinha várias esposas, começou a discutir com os mais jovens se aquele seria o melhor modelo a ser repetido pelas próximas gerações. Vimos homens cristãos que se converteram começarem a ajudar as suas esposas a carregar a água, insignificante? De modo algum numa cultura onde a mulher e menosprezada e vista de maneira inferior . O verdadeiro evangelho transforma e é integral, não pende para uma coisa ou outra.

 

Em sua opinião, o que o Martureo poderia incluir mais em sua pauta?

Nas reuniões de discussão do COMIBAM, um dos tópicos levantados é a necessidade de uma missiologia mais cristocêntrica, menos pragmática, como que um retorno às bases. Precisamos olhar, de novo, para Jesus, que traz os princípios; não apenas para Paulo, que traz modelos. O missiólogo Carlos Madrigal Mir integra esse grupo de discussão, ele tem produzido bons materiais sobre isso, alguns deles vi que foram publicados pelo Martureo, inclusive.

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