Durante uma pandemia, os missionários devem partir ou permanecer?

Um modelo mental da missiologia do risco

Kirst Rievan

Durante a quarentena na Ásia, longe de nossa família, mas em um país que amamos, minha esposa e eu estamos ponderando sobre permanecer ou partir devido à crise mundial de Covid-19. Não estamos sós nesse questionamento. Essa pergunta nunca passou pela cabeça de tantos trabalhadores transculturais ao mesmo tempo quanto agora.

Percebemos que a retórica foca bastante o risco. A Covid-19 e a possibilidade do surgimento de outros coronavírus é uma oportunidade de repensarmos nossa missiologia sobre o risco? Neste artigo, usamos os conceitos de “gerenciamento da polaridade” e “modelos mentais” para explorar se nossa missiologia atual do risco permanece verdadeira.

Não é novo

Eu e minha esposa estamos lendo um livro de Isobel Kuhn, Green Leaf in Dought[1] (em tradução livre, Folha Verde na Seca), no qual ela descreve a situação em que se encontravam os missionários da China Inland Missions no meio do século passado. Os estrangeiros eram tão odiados pelo regime que qualquer um que tentasse contratá-los estava automaticamente associando-se a eles. Os líderes missionários decidiram, então, retirar seus mais de 600 missionários do país para proteger a emergente e frágil Igreja chinesa. Vale notar que, nos dois últimos anos, situação semelhante (mas em um contexto levemente diferente), que demanda a partida dos estrangeiros, tem se repetido.

Muitos tivemos de tomar a decisão de “permanecer ou partir” por conta de doenças, necessidades dos nossos filhos, guerra, instabilidade ou outras razões. A crise da Covid-19, por sua vez, traz um escopo sem precedentes.

Dever de cuidado

Nas décadas recentes, tem se dado mais atenção aos cuidados com trabalhadores transculturais. O conceito de “cuidado com os membros” ganhou atenção no mundo missionário nos anos 1990.[2] O conceito foi desencadeado por pesquisas que mostraram que um número significativo de trabalhadores transculturais e seus filhos desenvolveram problemas de saúde mental. Livros como Honourably Wounded[3] (Ferido com Honra, em tradução livre), publicado em 1987, tiveram um grande impacto. Desde então, todas as organizações missionárias maiores, especialmente as ocidentais, criaram departamentos para cuidar da equipe no campo. Esses cuidados e a ideia de evitar o mal desnecessário estão sendo valorizados na missão.

Missão encarnacional

Não há dúvidas que o trabalho missionário inclui riscos. Ir ao exterior geralmente aumenta os riscos de envolvimento em um acidente de carro, pegar uma doença infecciosa, passar por estresse cultural significativo etc. Jesus Cristo fez exatamente isso: ele saiu da segurança do céu para o desconforto do mundo humano para ser ridicularizado, perseguido e, por fim, morto. A maioria dos apóstolos foram mártires, e as Escrituras estão cheias de exortações sobre como vivermos em meio às dificuldades. Ao longo dos séculos, muitos missionários morreram no campo missionário e, mesmo com a medicina atual e outras medidas que tomamos hoje em dia para mitigar os riscos, ainda é verdade que missões transculturais podem acarretar danos físicos, emocionais ou mentais.

Missão de Deus

O pensamento sobre missões tem mudado drasticamente durante as últimas décadas, e o movimento evangélico está aos poucos se atualizando. A mentalidade “do ocidente para o resto do mundo”[4] causou um tipo de patriotismo que carrega consigo a caricatura de um herói de longe que vai salvar os pagãos locais.[5] A missão se tornou algo muito mais parecido com “de todos os lugares para todas as pessoas”[6], o que nos leva a repensar o papel do expatriado. O expatriado, hoje em dia, é geralmente parte de uma equipe ou rede nacional, e muitas vezes está sob a liderança de um líder local. Para os colegas locais, os riscos de infecção, por exemplo, também são muito reais, mas para eles, frequentemente, não existe a escolha de partir. As decisões de partir tornam-se uma questão para a equipe toda. Estamos todos juntos na missão de Deus, não na missão do Ocidente.

Princípios bíblicos

Como mencionado anteriormente, o maior exemplo na Bíblia de alguém que deixa um lugar de segurança para viver em um lugar de risco é o próprio Jesus. Há também diversos versículos na Bíblia que nos lembram que não devemos nos preocupar excessivamente com nossa própria segurança ou pensar tanto sobre nós mesmos, mas que devemos de fato ter o foco no Senhor. Por exemplo, em Atos 20.24: “Todavia, não me importo, nem considero a minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão-somente puder terminar a corrida e completar o ministério que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do evangelho da graça de Deus” (NVI). O sacrifício próprio é um valor central para cada cristão, especialmente para os que são enviados para alcançar os não-alcançados.

No entanto, temos também referências bíblicas que pedem a cautela. Houve momentos em que Jesus evitou o perigo. Por exemplo, Jesus atravessou uma multidão e dela escapou (Lucas 4.30), e os discípulos foram instruídos a se mudar para outra cidade caso não fossem bem recebidos (Mateus 10.14). Muitas passagens enfatizam que somos todos parte de um corpo (1 Coríntios 12), e isso inclui nossos maridos e nossas esposas, filhos e filhas e membros da nossa equipe. Paulo, em 1 Timóteo 5.8, compara negligenciar as necessidades de nossas famílias com a descrença. Em um sentido mais amplo, o próprio Jesus disse: “Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (João 13.34-35). Esse trecho destaca que esse cuidado com o outro é parte de nosso testemunho para os que não creem.

Polaridade

Ao explorarmos a questão de permanecer ou partir, precisamos manter uma tensão saudável entre esses valores bíblicos que podem parecer opostos. Para fazer isso, podemos usar o modelo de gerenciamento de polaridade desenvolvido por Johnson.[7] O modelo nos ajuda a gerenciar a tensão dos valores de forma que resultados possivelmente negativos são reduzidos e resultados possivelmente positivos são buscados, dando a devida atenção aos dois valores.[8]

A questão de vulnerabilidade ou risco parece estar no centro da maioria das conversas. Por um lado, nós missionários e as pessoas que nos enviam queremos ser responsáveis e proteger a nós mesmos e nossos colegas de ficarem doentes ou se machucarem em uma situação com cuidados e centros médicos limitados. De outro lado, nossa paixão pelas pessoas a nossa volta e nossa fidelidade aos parceiros locais nos pressionam a estarmos presentes em situações de vulnerabilidade, especialmente quando a vida está difícil. Mesmo se não tiver muito o que possamos fazer para ajudar, pelo menos podemos sofrer junto com os outros. Ficamos tentando encontrar o ponto de equilíbrio entre evitar o risco e nos arriscarmos.

Explorando as respostas

Ao explorarmos essas questões relacionadas ao risco, pensamos o que acontecerá com o ministério confiado a nós se partirmos ou se ficarmos. Temos basicamente quatro opções que podemos considerar:

  1. Partir com a expectativa que os relacionamentos possam ser mantidos e o engajamento com o trabalho ministerial possa ser feito remotamente do nosso país de origem;
  2. Partir aceitando que nossos relacionamentos e envolvimento com o ministério irão parar ou serão significantemente reduzidos;
  3. Permanecer na esperança que os relacionamentos e envolvimento com o ministério possam continuar;
  4. Permanecer aceitando que as restrições poderão dificultar os relacionamentos e envolvimento com o ministério.

Colocando essas opções no gerenciador de polaridade, o modelo fica como o seguinte:

 

Modelo mental ou missiologia

Para podermos explorar essas opções, seria útil apresentar o conceito dos modelos mentais: “Os modelos mentais são pressupostos profundos, generalizações ou até imagens e figuras que influenciam como entendemos o mundo e como agimos”.[9] Em outras palavras, o que diz a missiologia na qual baseamos nossas decisões sobre o risco?

Descobrir nossos modelos mentais não é tão fácil quanto parece. Normalmente não estamos conscientes dos nossos valores mais profundos até que eles sejam violados. Para o escritório central de uma missão, frequentemente há um senso de responsabilidade e cuidado amoroso para com os membros da equipe, e evitar o risco se torna uma parte natural da retórica de orações e políticas de missionários. Outros valores importantes como a educação dos filhos, cuidados com pais idosos e compromissos de longa data com o ministério podem mover nossa missiologia para o lado de evitar o risco. Pode existir o pressuposto não-escrito que morrer no campo deve ser evitado a qualquer custo. Mas isso é bíblico e foi discutido com a igreja que envia, com a organização e equipe?

Também há considerações culturais. Para algumas culturas, tomar risco é bem aceito, mas seria impensável não estar presente no funeral de um pai, mãe ou outro parente próximo. Esse valor pode ser alto o suficiente para fazer o trabalhador ficar no seu país de origem por um tempo quando a possibilidade de viajar não é certa.

Falta de equilíbrio

Já foi questionado se a valorização do cuidado criou modelos mentais que, sem sabermos, impulsionam nossas discussões a focarem em algum dos quadrantes do modelo de gerenciamento de polaridade em detrimento de outros. O missiologista Christopher Ducker sugere que o conceito de vulnerabilidade deveria voltar à missiologia: “Eu proponho que a vulnerabilidade deveria ser uma característica que define nossa missão no século 21. Quando digo vulnerabilidade, quero dizer estar exposto (geralmente de forma deliberada) ao risco e à incerteza, inclusive à possibilidade de dificuldades, lesões e ataques”.[10] Isso se encaixa bem com a afirmação do grande missionário transcultural, o apóstolo Paulo: “Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte” (2 Coríntios 12.10).

No diagrama a seguir, as conversas estão representadas pela linha azul. O diagrama parte do pressuposto que tais conversas estão acontecendo à medida que a crise da Covid-19 continua a se desenrolar, portanto essa linha é um laço fechado. O laço está pendendo para o quadrante esquerdo inferior, revelando uma tendência de se evitar o risco e desconsiderar a continuidade do ministério e dos relacionamentos. Se isso acontecer, sabemos que a missiologia por trás das nossas conversas está desequilibrada.

De forma semelhante, se a conversa for predominantemente sobre sacrifício e sofrimento, ela também estará desequilibrada. Nesse caso, o laço penderia para o quadrante inferior direito, especialmente se ignorarmos a possibilidade de nos tornamos um peso para uma comunidade vulnerável.

Conversas saudáveis

Considerando que nossa missiologia possui um equilíbrio saudável entre cuidado próprio, zêlo e paixão pelo ministério e pelas pessoas para quem ministramos, imagino que as conversas focariam no impacto que a decisão teria no ministério a longo prazo. Com isso em mente, partir talvez seja a melhor opção, mas o motivo principal não deveria ser evitar o risco individual, mas sim porque seria melhor para a sustentabilidade de longo prazo do ministério e dos relacionamentos. A linha azul no diagrama abaixo retrata a mentalidade que achamos adequada para essa conversa.

Andando na linha

Como o desenrolar da crise da Covid-19 é bem imprevisível, o foco das conversas pode facilmente voltar-se para o lado de medo e riscos. Portanto, é importante identificar os “sinais precoces” – indicadores que informam que estamos nos afundando em um dos quadrantes do modelo de gerenciamento de polaridade. Por exemplo, quando percebemos que falamos somente sobre nosso bem-estar, ou quando começamos a usar uma linguagem de heroísmo ao falarmos sobre permanecer.

Conversas equilibradas falam de “passos de ação” – intervenções por meio das quais há ganhos ou manutenção de resultados positivos mesmo quando lidamos com a polaridade. Estamos mantendo o foco correto quando, por exemplo, usamos nossa energia para explorar novas formas de trabalhar, expandimos ou ajustamos o foco do ministério e consultamos as partes interessadas. Com isso, o diagrama fica como o a seguir:

Repensando o risco[11]

À medida que eu e minha esposa orávamos sobre a questão de permanecer ou partir, descobrimos que existem temas conectados ainda mais profundos. Agora, estamos nos perguntando coisas como:

  1. Qual é a minha missiologia de risco? Quais são os meus valores e crenças mais profundos sobre arriscar-me?
  2. Eu realmente amo as pessoas entre as quais eu vivo, mesmo que isso signifique expor-me a muitos riscos?
  3. Eu estou caindo na armadilha de querer ser um herói, mesmo se, ao ficar, torno-me somente um peso para a comunidade local?
  4. De quem é a decisão de ir ou ficar? Qual peso devo dar às vozes dos parceiros ministeriais, da igreja que me envia, dos líderes da organização e seus trabalhadores?
  5. Está na hora de considerar novas formas de trabalho em que o ministério depende menos da presença de expatriados?

A crise da Covid-19 poderá recriar os modelos mentais que usamos atualmente para missões estrangeiras em relação ao risco. A crise poderá nos levar para mais longe da tendência de se evitar o risco e, ao mesmo tempo, o abraçarmos de forma responsável. Ela poderá também acelerar nossa revisão (algo que já tem acontecido nas últimas décadas) sobre o papel de estrangeiros e sobre tendência de estabelecer o trabalho, desde seu início, a partir das mãos de irmãos e irmãs do próprio país. O falecido grande missiologista David Bosch falou sobre a vulnerabilidade da missão, dizendo – “…o cristianismo é ‘único’ por causa da cruz de Jesus Cristo. Então, a cruz precisa ser vista pelo o que ela é: não um sinal de força, mas prova de fraqueza e vulnerabilidade. A cruz confronta-nos não com o poder de Deus, mas com a vulnerabilidade de Deus”.[12]

Sobre o autor
Kirst Rievan (pseudônimo) e sua esposa são da Europa e vivem na Ásia há mais de 20 anos. Kirst é líder de uma organização global baseada na fé na Ásia. Ele possui um doutorado em missiologia da BIOLA University.

 

Esse artigo foi originalmente publicado em Análise Global de Lausanne (Volume 9/ Edição 4 – Julho de 2020) e foi republicado pelo Martureo com a devida autorização. Para receber essa publicação bimensal do Movimento de Lausanne, cadastre-se aqui.

 

Notas

  1. Isobel Kuhn, Green Leaf in Drought(Singapore: Harold Shaw Publications, 1994). 
  2. Kelly O’Donnell, ‘The Missional Heart of Member Care’, International Bulletin of Mission Research(April 2015),https://doi.org/10.1177/239693931503900210
  3. Marjory F. Foyle, Honourably Wounded: Stress Among Christian Workers, Kindle Edition (London: Monarch Books, 2009). 
  4. Niall Ferguson, Civilization: The West and the Rest(Great Britain: Penguin Books, 2012). 
  5. Jean Johnson, We Are Not the Hero. (Sisters, OR: Deep River Books LLC, 2012). 
  6. Samuel Escobar, The New Global Mission: The Gospel from Everywhere to Everyone(Downers Grove, Ill: IVP Academic, 2003). 
  7. Barry Johnson, Polarity Management: Identifying and Managing Unsolvable Problems(Amherst, MA: H R D Press, 2014). 
  8. O modelo de gerenciamento de polaridade não é a melhor ferramenta para o que Johnson chama de questão de ‘ou-ou’ (consulte o capítulo 6), mas, no contexto deste artigo, ainda o achei um modelo útil. 
  9. Peter M. Senge, The Fifth Discipline: The Art & Practice of the Learning Organization(New York: Currency, 2006). 
  10. Christopher Ducker, ‘Missio Dei (the Mission of God),’ Com.2008, https://www.yumpu.com/en/document/read/54406328/missio-dei-the-mission-of-god-theduckersorg
  11. Nota da Editora: Veja os artigos da Sue Arnold, “O risco de alcançar os não alcançados“, na edição de setembro de 2019 da Análise Global de Lausanne,https://www.lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2019-09-pt-br/o-risco-de-alcancar-os-nao-alcancados
  12. David J. Bosch, ‘The Vulnerability of Mission,’ Baptist Quarterly34, no 8 (1992): 351–63, https://doi.org/10.1080/0005576X.1992.11751898
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