Reconhecendo o budismo ativo

De forma significativa, nas últimas décadas essa religião tem se espalhado como fogo por todo o Ocidente

Alex G. Smith

Dentre as maiores religiões do mundo, o budismo, com sua ênfase na meditação, pureza, paz e ética, parece ser a menos ameaçadora. Contraste essa imagem com a percepção geral do islã com suas frequentes ameaças de terrorismo, bombardeios e sequestros. A imagem que a maioria dos ocidentais tem do budismo é a de Dalai Lama — sorridente, sofisticado, doce e sereno. Surpreendentemente, em alguns seminários cristãos nos Estados Unidos, um grande retrato dele foi colocado proeminente em suas capelas, embora fotografias de líderes islâmicos nunca estejam presentes. Em uma das várias visitas que fez ao Brasil, o Dalai Lama também realizou uma celebração inter-religiosa em parceria com a Arquidiocese de São Paulo na Praça da Sé, em São Paulo.

O surgimento de bilhões

O crescimento do budismo, particularmente no último quarto de século, foi fenomenal, e houve grandes incursões no Ocidente. Historicamente, o cristianismo era mais popular no Ocidente e, no início dos anos 1900, a maioria dos cristãos ainda era ocidental. Mas, desde então, o maior alcance das missões resultou em movimentos importantes das pessoas, trazendo multidões em todos os continentes para a igreja. Consequentemente, hoje o número de cristãos localizados no resto do mundo é provavelmente o dobro do que no Ocidente. [Outras informações sobre o panorama religioso global estão disponíveis aqui.]

O budismo, por outro lado, praticamente estava restrito ao Oriente, particularmente nos populosos norte, leste e sudeste da Ásia. De forma significativa, apenas nas últimas décadas, essa religião tem se espalhado como fogo por todo o Ocidente. Hoje estima-se que haja dez milhões de seguidores nos EUA, onde mais de mil e quinhentos templos budistas são contabilizados e centenas de associações budistas se desenvolveram.

O primeiro vihāra (templo gerido e habitado por monges budistas) na América Latina foi aberto no Rio de Janeiro em 1968 (https://www.sociedadebudistadobrasil.org/sobre/). Embora seja relatado que existam 250 mil budistas no Brasil (fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000, últimos números), essa provavelmente é uma conta subestimada.

A migração japonesa para o Brasil começou em 1908. As sucessivas ondas de migrantes e seus descendentes no Brasil atualmente totalizam 1,6 milhão de pessoas (fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000, últimos números). Muitos ainda são influenciados pelo budismo sincretista e pelos ritos ancestrais. Segundo o sinologista brasileiro Durval de Noronha Goyos, os chineses chegaram no Brasil há mais de 200 anos. Existem 400 mil chineses influenciados pelo budismo só em São Paulo. O budismo é cada vez mais popular além das comunidades asiáticas do Brasil, com dezenas de templos e centros de meditação espalhados por todo o País. O maior templo budista da América Latina está na cidade de São Paulo.

Não é de se admirar que o notável historiador Arnold Toynbee tenha escrito que a segunda metade do século 20 seria marcada pela “interpenetração do budismo e do cristianismo”. Segundo a revista Christianity Today [Cristianismo Hoje] (6 de dezembro, 1999, p. 34), o sociólogo da Universidade de Chicago, Stephen R. Warner, disse ao Religion News Service [Serviço de Notícias Religiosas]: “O mundo da religião americana está a caminho de uma enorme mudança. Será cada vez mais difícil distinguir cristãos e budistas”. Para ilustrar o ponto de Warner, em 12 de fevereiro de 2009, um devoto do zen budismo foi eleito bispo da diocese da Igreja Episcopal do norte de Michigan.

Hoje o budismo influencia fortemente cerca de um bilhão de pessoas, muitas delas seriam classificadas como budistas populares. Um número frequentemente citado como uma estimativa de católicos romanos é de um bilhão. Protestantes também afirmam serem um bilhão. Da mesma forma, temos esse bilhão de budistas populares, que são majoritariamente como os cristãos populares.

Uma mistura sincrética

O impacto da propagação do budismo pode ser ilustrado por um produto que saiu de um liquidificador de cozinha. Misture bananas — representando o animismo ou o xintoísmo —, maçãs — retratando as religiões indígenas como o taoísmo e o confucionismo — e peras — indicativas de estruturas de crenças tribais. A mistura composta no liquidificador ainda permanece com uma cor clara e cremosa. Em seguida, adicione morangos — simbolizando o budismo –, e toda a mistura é modificada de repente, impregnada com uma tonalidade rosa. Esse é precisamente o efeito do budismo. Ele foi ecleticamente absorvido, mas não afastou as religiões indígenas ou o animismo. Sob a doutrina da assimilação, o budismo dominou, mas não destruiu esses elementos. Na verdade, em seus excelentes estudos entre os povos budistas, o dr. S. J. Tambiah, da Universidade de Cambridge, afirma que, embora os ocidentais possam analisar o budismo em diferentes elementos religiosos — budistas, animistas, bramanísticos, taoístas e outros –, o budista popular vê esses elementos como um todo integrado, ou seja, o budismo como a mistura no liquidificador, o budismo permeia o todo e combina tudo sem perder o sabor de cada elemento. Assim, encontramos muitas variedades ecléticas de budistas populares em todo o mundo.

Principais escolas e seitas

A abundância de “denominações” budistas com suas inúmeras seitas é bastante surpreendente. Aqui, o budismo certamente mostra sua tolerância, sem sacrificar os seus fundamentos básicos doutrinários integrativos. O budismo tem muitas faces em todo o mundo. No entanto, existem duas escolas principais:

  • conservadora teravada, conhecida como budismo do sul,
  • liberal mahayana, conhecida como budismo do norte e do leste.

A tradição teravada concentra-se principalmente no Sri Lanka e no sudeste asiático, embora mesmo os elementos do mahayana também estejam comumente misturados. A linha mahayana cobre o globo, com grandes concentrações no leste da Ásia. A seita budista kwan yin, enfatizando um bodisatva feminino de misericórdia, reviveu e se expandiu em todo o mundo, particularmente no final de 1900. Realmente há pouco budismo puro na terra, exceto entre alguns budistas intelectuais dedicados e sacerdotes comprometidos de longo prazo.

O budismo é, no entanto, a religião integradora e identificadora de aproximadamente um bilhão de pessoas. O budismo é maior do que você pensa. A teravada representa cerca de 150 milhões de pessoas. O mahayana representa aproximadamente 850 milhões de budistas populares, incluindo cerca de 16 milhões de seguidores do budismo tibetano tântrico, também conhecido como lamaísmo, vajrayana ou mantrayana. O budismo tibetano reconhece o Dalai Lama como sua cabeça visível. Isso é bastante comum nos EUA por causa da presença política e causa política do Dalai Lama. As principais ramificações da escola mahayana incluem tendai, zen, pure land, nichiren, soka gakkai e muitas outras. O Japão em particular tem uma proliferação de seitas budistas. Provavelmente 70% dos japoneses aderem a alguma forma de budismo. Na China, em 22 de julho de 1999, as autoridades da República Popular da China (RPC) proibiram a seita falun gong, que incorpora o tai chi com meditação e práticas budistas. Popular até mesmo entre funcionários do governo comunista, essa seita budista reivindica mais de 160 milhões de adeptos. Atualmente, a seita falun gong é administrada de Nova York pela internet.

Crenças e comportamentos

As crenças básicas do budismo são bem conhecidas. Meditando no caminho do meio, o fundador do budismo Sidarta Gautama percebeu intuitivamente as quatro nobres verdades que se concentram na condição, causa e cura do sofrimento universal. O Buda ensinou que, seguindo o caminho óctuplo de autoesforço, seria possível escapar do sofrimento da vida e de sua ilusão de mudança. Alcançando a iluminação por meio da eliminação de todos os desejos (a causa do sofrimento), entra-se no nirvana, que é principalmente um estado de libertação (uma ruptura dos ciclos intermináveis de nascimento e renascimento).

Debaixo e por trás das crenças budistas estão fortes conceitos de carma e reencarnação, emprestados ou adaptados do hinduísmo, do qual o budismo foi um movimento de renovação reacionário. Desde o início, o Buda rejeitou todos os deuses e seres espirituais, incluindo o conceito de seres humanos como almas vivas. Ele considerava que tudo estava mudando, era ilusório e impermanente. Somente pela libertação de si mesmo e fazendo o bem pode-se esperar proceder a uma melhor reencarnação e, eventualmente, depois de dezenas de milhares de nascimentos e renascimentos, esperançosamente alcançar o nirvana.

Esses tipos de crenças ideais são comuns em muitas religiões, mas o comportamento real de seus seguidores geralmente é bastante diferente. Muitos seguem preceitos budistas básicos, mas a maioria também pratica muitos dos elementos rejeitados pelo Buda, incluindo a crença em deuses e espíritos, adoração de antepassados e muitas outras formas indígenas de religião. Assim, uma multidão de formas de budismo foi proliferada. Esta população de um bilhão de pessoas é um desafio crucial para a igreja do século 21. Os povos budistas são o gigante negligenciado na missão. Mesmo entre a comunidade cristã, muitos são inconscientemente afetados por sutis ideias budistas. Recentemente, alguém se apresentou a um parente meu como “budista de Jesus”. No ano passado, um amigo recebeu um cartão de Natal de um associado cristão assinado “no zen”. Entre os cristãos e, ocasionalmente, dos púlpitos, ouvem-se as conotações budistas que comumente são faladas hoje, como “nirvana”, “em uma vida anterior”, “é meu carma”, “minha próxima reencarnação”, “deixe sua mente ficar em branco”, “cave profundamente dentro de você” e assim por diante. Esse é um efeito sutil do “liquidificador” do budismo.

Problemas no “paraíso”

Ultimamente, algumas rachaduras e fissuras apareceram no budismo, embora divisões e controvérsias não sejam novas para essa religião. O Bangkok Post de 19 de fevereiro de 1999 informou que, de acordo com Phra Dhammapitaka, um monge tailandês altamente respeitado, divisões anormais haviam surgido em um enorme complexo de templos à beira de Bangkok capaz de acomodar um milhão de adoradores, o Wat Dhammakaya. Alguns “corromperam a doutrina e a disciplina do budismo teravada” e “negam o Buda”. Tais ensinamentos e práticas difundidos eram contrários aos princípios básicos do Dhamma e da Sangha (ordem dos monges). Aqueles que propagaram doutrinas divergentes, como “nirvana é um céu permanente, possuindo, assim, atta  (eu permanente)”, foram prontamente disciplinados e proscritos. Outras acusações incluíram “comercialização do budismo, má conduta de monges e investimentos em negócios obscuros”. Em março de 2017, a BBC informou que o líder do Wat Dhammakaya era procurado por várias acusações criminais relacionadas a uma cooperativa de crédito em colapso. A polícia tailandesa acreditava que ele estava escondido no interior do templo e cercou a área por quase um mês.

Incidentes de sacerdotes sendo excomungados por lapsos morais ou corrupção não são incomuns. Durante o verão de 1999 no Japão, o sumo sacerdote Nichiren Shoshu ordenou a destruição do caro e ornamentado Shohondo, o grande salão de adoração ao pé do sagrado Monte Fuji. A situação foi provocada por conflitos internos de longa data e lutas de poder entre as trinta seitas nichiren, especialmente em relação à associação soka gakkai. Cerca de 150 mil membros deixaram Shoshu. Ainda existem rivalidades amargas entre seitas em grupos tibetanos e outros. A aum shinrikyo [suprema verdade) foi uma seita budista do apocalipse no Japão que deu errado quando seu líder, Shoko Asahara, começou a se chamar de messias. O resultado de sua interpretação errada do budismo terminou tristemente de acordo com a Newsweek de 1º de junho de 1998: com um ataque letal no sistema de metrô de Tóquio em 1995, “liberando o mortal gás sarin que levou a óbito uma dúzia de pessoas e deixou outros 5 mil doentes”.

Relacionamentos com outras religiões também podem ser desafiadores. Desde 2013, um recente renascimento do budismo em Mianmar levou à formação do movimento budista nacionalista 969. As chamas do conflito étnico/religioso no estado de Rakhine, com a morte e expulsão dos muçulmanos rohingya, são alimentadas pelos agressivos monges desse movimento 969.

A BBC informou que multidões lideradas por monges budistas atacaram duas igrejas cristãs no Sri Lanka durante a adoração dominical em fevereiro de 2014. O movimento budista apelidado de “açafrão do terror” pela imprensa local também atacou as mesquitas muçulmanas à medida que as tensões sectárias aumentavam nos principais países budistas.

Apesar desses exemplos aberrantes, o budismo está ativo e crescendo.

Ressurgimento e resistência

A primeira conferência internacional de propagação budista foi realizada em Kyoto, Japão, de 8 a 13 de abril de 1998. Uma das discussões principais foi sobre a crescente preocupação em proteger as populações budistas das mudanças religiosas. Líderes budistas proeminentes de 17 países asiáticos participaram, embora a notável ausência de representantes-chave da seita Shinshu e de seitas zen budistas no Japão tenha sido impressionante.

Declarações fortes contra grupos de outras religiões fazendo proselitismo entre os budistas foram feitas. O venerável dr. K. Sri Dhammananda, um estudioso líder budista e prolífico autor do Sri Lanka, observou que “a pobreza e a ignorância foram exploradas para converter budistas inocentes e para romper suas antigas culturas e práticas. Muitos países que eram budistas correm o risco de perder sua predominância budista devido a esses métodos desprezíveis empregados por esses chamados ‘evangelistas’”.

Na maioria dos países do sudeste asiático, as restrições à divulgação do evangelho já estão legalmente vigentes, embora nem sempre fortemente aplicadas. No Laos, é colocada pressão em todos os cristãos para que participem de seminários antirreligião que propagam a linha do governo e do partido. Encorajados pela maioria budista, oficiais exigem que cada pessoa assine documentos diante das autoridades nos quais afirmam que vão renunciar a todas as religiões estrangeiras – o envolvimento com alguma delas é

é interpretado como uma atividade ilegal. Suas assinaturas autorizam o governo e o partido a puni-los adequadamente por quaisquer infrações relacionadas. Um movimento semelhante está acontecendo no Vietnã, particularmente em busca de cristãos hmong. A edição do Maranatha Christian Journal de 1º de outubro de 1999 relata que budistas radicais em Mianmar (Birmânia) declararam que canais de rádio cristãos eram uma ameaça para o budismo, e apontaram algumas agências cristãs de forma específica como culpadas. Outros líderes budistas extremistas distribuíram documentos que enumeram métodos sistemáticos para eliminar o cristianismo. Mais recentemente, muitas das áreas tradicionalmente cristãs (especialmente no estado de Chin) estão sendo induzidas ao budismo na medida em que o governo investe em mosteiros em vez de em escolas governamentais, forçando crianças locais a irem para os monges em busca de educação. Os mosteiros budistas assumiram algumas abordagens cristãs nas cidades, oferecendo “sessões de cura” e práticas similares.

O alcance agressivo do budismo também está aumentando de forma particular no Ocidente. Um antigo membro do nichiren diz que o maior templo budista dos EUA, localizado em Hacienda Heights, Califórnia, foi construído principalmente como um centro de treinamento missionário budista para alcançar os ocidentais. A Soka University of America, instituição privada construída em Aliso Viejo, na Califórnia, pelo líder da seita budista soka gakkai, que é conhecido por proselitismo agressivo, é hoje classificada como uma das melhores escolas de artes liberais dos Estados Unidos. No início do ano 2000, monges budistas oficialmente dedicaram “thai town”, o bairro tailandês, em Hollywood, na cidade de Los Angeles. Cerca de 70 mil tailandeses budistas vivem nas proximidades. No norte da Tailândia, o alcance aos grupos tribais pelos budistas resultou em aldeias inteiras de Karen e outras tribos se tornando budistas, incluindo algumas antigas aldeias cristãs. Como se vê, o budismo está ativo.

 

Sobre o autor

Alex Smith é missionário da OMF Internacional há 45 anos. Serviu por duas décadas entre budistas na Tailândia, e desde então, ministra ao redor do mundo. Ele dá aulas sobre o Budismo, Cristianismo e Religiões Globais em seminários na Ásia e no ocidente.

Esse artigo é o capítulo 1 do livro O Budismo através do olhar cristão, de Alex Smith, publicado pela OMF Internacional (OMF Books) em parceria com a Sepal. A edição em português é de 2017 e segue versões anteriores em alemão e espanhol. Tradução: Fabiana Fraga. Revisão: Deborah Vieira. A publicação pelo Martureo foi devidamente autorizada pela OMF.

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