Como deve ser a nossa relação com os imigrantes e os refugiados? – Uma perspectiva do Antigo Testamento

Chris Wright

INTRODUÇÃO

Deixe-me começar com algumas questões hermenêuticas preliminares uma vez que estamos buscando no Antigo Testamento alguma luz ética em um importante assunto contemporâneo.

Primeiro, é legítimo considerar que as leis e instituições dadas ao antigo Israel, assim como as narrativas e profecias encontradas em suas escrituras, possuem algum tipo de relevância ou autoridade ética em relação às sociedades e estados modernos? Em outro estudo, argumentei de forma detalhada que a resposta é “sim” caso nossa compreensão sobre a identidade e o papel do Israel veterotestamentário coincida com a intenção original de Deus de que Israel fosse ‘luz para as nações’, e se adotarmos uma abordagem ‘paradigmática’ em relação à hermenêutica do AT.

Em linhas gerais, é preciso ter em mente que o Deus que encontramos no AT como o redentor e Senhor da aliança com Israel, o doador e dono de sua terra e juiz moral sobre o que acontece lá, é também o Deus soberano sobre todas as nações, criador de toda a terra e juiz moral de toda a história humana. É legítimo, então, traçar paralelos entre o padrão ético do AT e o que está por trás dele e as implicações do cristianismo nas realidades social, econômica e política atuais.

Em segundo lugar, o que dizer sobre a conquista de Canaã? O tratamento dado aos cananeus não vai de encontro a tudo o AT diz a respeito dos estrangeiros? Esse tópico também é algo que tanto eu como outros temos abordado em vários meios.

A seguir, listo resumidamente alguns pontos para embasar essa perspectiva antes de prosseguir.

  • A conquista de Canaã foi um evento único e atrelado àquele momento da história, não um padrão a ser seguido como forma de lidar com os estrangeiros.
  • Foi explicitamente justificada com base ética: o julgamento divino para uma sociedade que se tornou moralmente degradada e má e cuja maldade cresceria para além do tempo de Abraão (Gn 15; Lv 18 e Dt 9).
  • Deus advertiu Israel ao declarar que, se seguissem os mesmos passos dos cananeus, ele lhes traria julgamento e também os expulsaria. Eles agiram e Deus idem.
  • A conquista é parte integrante de toda a narrativa bíblica e mostra o envolvimento de Deus com as realidades caídas do mundo, culminando com a providência da salvação por meio da cruz e da ressurreição de Cristo.

 

A. ‘ UMA CONDIÇÃO HUMANA COMPARTILHADA’ – INCLUINDO O POVO DE DEUS

A migração está presente no enredo de toda a narrativa bíblica. Pessoas deslocando-se (pelos mais diversos motivos) é algo tão corriqueiro na história que dificilmente nos atentamos para esse fato em si. Na verdade, quando o texto bíblico cita que Yahweh, Deus de Israel, esteve envolvido na migração de outros povos além dos israelitas, alguns tradutores bíblicos colocam tal afirmação entre parênteses, como que para separá-la da história principal, muito embora seja parte integrante do contexto teológico da história. Yahweh é o Deus de todas as nações e de todos os movimentos históricos de migrações e assentamentos (Dt 2.10-12, 20-23; NVI).

O povo de Deus iniciou e continua sua jornada ao longo da história como ‘estrangeiros e peregrinos’, como migrantes, imigrantes e, às vezes, como refugiados. Isso é parte de nosso DNA teológico e histórico desde Abraão, como exemplificam os seguintes textos:  Gn 23.4; Ex 2.22; Dt 23.7; ‘Hebreus’ no Egito; Lv 25.23; Dt 26.5; Rt; o exílio na Babilônia; José, Maria e Jesus; At 8.1; 1Pe 1.1.

Recentemente, fui convidado para falar a uma grande igreja chinesa em Toronto (há uma porção delas ali, aliás) sobre como ser uma igreja étnica (de imigrantes) missional. Comecei dizendo que, se olharmos para o texto bíblico, ser uma igreja étnica missional não é algo novo ou incomum. Isso é parte da história. A miscigenação e a migração dos povos estão presentes na meta narrativa bíblica. Todos esses movimentos encaixam-se no fio condutor soberano de Deus da história e da geografia da humanidade.

Agora, apesar de eu ter mudado de país, sei que as circunstâncias em que isso ocorreu não se comparam à da maioria dos chineses que vieram para o Canadá, tampouco à luta dos milhões de refugiados que chegaram à Grécia e à Itália nos últimos dois anos (sem citar tantas outras crises que envolvem refugiados ao redor do mundo hoje). O ponto, contudo, é: ainda que os deslocamentos tenham ocorrido pelas mais diferentes razões e cada um tenha suas peculiaridades, Deus não está alheio aos movimentos migratórios que acontecem há milênios. Com isso em mente, a questão é se estamos dispostos a e preparados para encarar nossa história contemporânea (seja a nossa própria, a das igrejas chinesas imigrantes com quem falei, ou daqueles que somente vemos na tela da TV), à luz da história de Deus. Em outras palavra, conseguimos, pelo menos, reconhecer o reino de Deus operando – como o fermento, como semente de mostarda, como uma rede, ou como qualquer uma das outras metáforas que Jesus forneceu para a nossa compreensão – no meio destes assuntos humanos de proporções trágicas?

Retornando ao Israel do AT, o fato de terem sido refugiados e estrangeiros no Egito gerou fortes e repetitivas ênfases em suas próprias leis e sociedade sobre o tratamento a ser dado aos de fora que viviam entre eles, especialmente aos mais vulneráveis e aos que eram alvos fáceis de exploração. Eles receberam a ordem de amar o estrangeiro na mesma medida que deveriam amar o próximo, ou seja, como a si mesmos (Lv 19.18 , 34; Dt 10.19-20). A história de Israel moldou a ética de Israel.

Assim, é irônica (para não dizer escandalosamente vergonhosa) a forma com que algumas sociedades ocidentais (incluindo a minha, o Reino Unido), formadas a partir de migrações históricas, tornaram-se hoje tão hostis aos refugiados e imigrantes. Estou desconfortável e envergonhado com a hipocrisia descarada dessa retórica. Quase todas as nações ocidentais têm experimentado séculos de imigração. Algumas, como os Estados Unidos da América (EUA) e a Austrália, são hoje quase que absolutamente resultado de imigrações, algumas repletas de sangue e opressão. Áreas inteiras da economia nacional do Reino Unido não poderiam funcionar não fosse pelos trabalhadores estrangeiros em todos os níveis. Ainda assim, de certa forma, algumas vozes políticas nesses países, usando de sagacidade, desejam estender a ponte levadiça e deixar muitos do lado de fora. Existe também a hipocrisia na linguagem usada. Por que, por exemplo, os britânicos que migraram para outros países em busca de uma melhor oportunidade econômica são chamados expatriados, enquanto aqueles quem vem para o Reino Unido pelos mesmos motivos são chamados migrantes?

Há também a hipocrisia embutida na falta de perspectiva histórica. Há cerca de 500 anos, os europeus decidiram migrar em massa. Eles “se projetaram” ao redor de todo o mundo, algumas vezes conquistando, outras colonizando, ou ambos. Eles não pediram permissão e não precisaram de vistos. Eles somente foram, tomaram e permaneceram por séculos nesses territórios. O mundo deu voltas e a situação surgiu diante deles… Essas injustiças são consequência do expansionismo Europeu, do colonialismo, do tráfico humano, da criação de novas fronteiras entre os grupos étnicos da África e, em seguida, do Oriente Médio depois da Primeira Guerra Mundial, além de outros males perpetrados no mundo.

Tais reflexões não contribuem muito na busca de soluções para os terríveis problemas que milhões de refugiados que chegando à Europa sofrem, especialmente devido aos conflitos do Islã no Oriente Médio. Todavia, espero pelo menos gerar um pouco de humildade e menos superioridade moral em nossa postura ao tratar o assunto, e orar por ele.

 

B. ALGUMAS DEFINIÇÕES BÍBLICAS

Em todo o período do AT, especialmente no período pré-exílico, Israel foi uma sociedade complexa. Eles reconheciam diferentes variedades de “estrangeiros”, como mostram a terminologia e a legislação. Enquanto Estado (e depois em dois reinos separados), Israel era uma comunidade miscigenada, composta por israelitas (tribos compostas por descendentes diretos de Abraão, Isaque e Jacó) e por outros grupos étnicos. Podemos ver que, próximo ao êxodo, havia uma multidão multiétnica, possivelmente porque diversos grupos de escravos oprimidos uniram-se aos israelitas quando eles partiram do Egito (Ex. 12.73-39). Tanto que os regulamentos para a Páscoa tinham de dizer claramente o que seria permitido a esses grupos (Ex 12.43-49).

A Palestina sempre foi um “território-ponte” entre grandes populações e poderes concorrentes. Na época da narrativa bíblica, era uma espécie de entroncamento de vias provenientes do Egito, da Mesopotâmia e da Anatólia para o norte. Fatores econômicos e militares causavam constantes migrações para a terra que Israel veio a possuir ou através dela. O censo de Salomão apresenta uma interessante estatística, registrando uma comunidade considerável de estrangeiros residentes no seu reino – 153.600 – que desenvolviam diversos trabalhos manuais em Israel.

1. Ezrahé o termo utilizado (embora não muito frequentemente) para um nativo – nascido israelita, residente na terra de Israel pela graça e concessão de Deus.

2. Gēr(plural gērîm) é um termo comum. Ele geralmente é traduzido por “peregrino” ou “estrangeiro”, mas o seu significado social e econômico é bem peculiar. Os gērîm não eram os israelitas étnicos, mas residiam na terra, eventualmente ocupando o mesmo espaço que famílias israelitas. Eles não tinham a posse das terra, mas podiam trabalhar como empregados. Eles eram diferentes dos escravos, por serem livres, e dos estrangeiros visitantes (nokrî’îm; ver abaixo), pois tinham residência permanente. Contudo, em termos de status, eram econômica e socialmente fracos e vulneráveis uma vez que não tinham a segurança da propriedade da terra nem os fortes laços de parentesco israelita do sistema tribal.

“Podemos entender o gēr como uma pessoa de outra tribo, cidade, distrito ou país que deixou sua terra natal e que não está mais diretamente relacionado ao seu cenário original. Ele é alguém que não tem a proteção social habitual de privilégio, e que, por necessidade, colocou-se sob a jurisdição de outra pessoa. Sendo assim, é razoável sugerir que o substantivo gēr deva ser traduzido como “imigrante”. A frase “estrangeiro residente” é estranha e o termo “peregrino”, arcaico. “Imigrante” adiciona o motivo do “conflito social” em três formas principais. Primeiro, destacam-se as circunstâncias originais do conflito social que são inevitavelmente responsáveis pela imigração. As pessoas geralmente tornam-se gērîm como resultado da convulsão social e política. Isso pode ser causado por guerra, fome, opressão, peste e outros infortúnios sociais. Em segundo lugar, leva em conta os conflitos que podem ser desencadeados quando os imigrantes tentam se estabelecer em um novo ambiente. Em terceiro lugar, a palavra imigrante evidencia o fato de ser alguém “de fora” inserido no contexto social.

3. Nokrīyîme zārîm. Esses eram os verdadeiros estrangeiros ou forasteiros, ou seja, provenientes de fora de Israel e sem nenhum vínculo com a terra, como alguns visitantes temporários, comerciantes itinerantes ou soldados mercenários. Eles eram estrangeiros mais independentes, a quem algumas das leis da comunidade israelita não se aplicavam. Por exemplo, deles poderiam ser cobrados juros (Dt 23.20), e o cancelamento da dívida no ano sabático não se aplicava a eles (Dt 15.3). Eram menos vulneráveis que os gērîm, e o texto bíblico, muitas vezes, refere-se a eles com certa suspeita ou atitudes antagônicas – principalmente porque provavelmente adoravam deuses e, assim, representavam uma ameaça religiosa. No entanto, a oração de Salomão na dedicação do templo expressa a surpreendente ideia de que eles poderiam ser atraídos a Israel para adorar Yahweh, o Deus de Israel, no seu templo, e ainda que Yahweh responderia às suas orações com consequências missionais maravilhosas para o conhecimento do Senhor em todo o mundo (1Rs 8.41-43). Da mesma forma, Isaías 56.3-7 mantém a promessa escatológica (e igualmente missional) de que os estrangeiros viriam a ser aceitos na casa de Deus, e as suas ofertas, entregues em seu altar (cf. Is 60.10; 61.5-6.). Tais textos transpiram o ar missionário da promessa do pacto abraâmico em relação a todas as nações.

A partir dessa breve análise, é possível concluir que, nos dias atuais, os gērîm seriam os imigrantes, mais perto da categoria refugiados, ou, de forma ampla, os “migrantes”. Assim sendo, na análise abaixo vamos nos concentrar principalmente nesse grupo de pessoas. Vamos estudar os textos relacionados a questões legais e textos proféticos que demonstram, na perspectiva de Deus, a forma como Israel deveria tratar essas pessoas dentro de sua comunidade.

 

C. A LEI DE ISRAEL PARA OS IMIGRANTES/MIGRANTES/REFUGIADOS

A lei de Israel demonstra uma postura extremamente positiva para com os gērîm. Eles são regularmente incluídos na categoria de pessoas vulneráveis, como os que tinham necessidades especiais de justiça, proteção e inclusão social (viúvas, órfãos, pobres). Israel deveria refletir em sua própria sociedade a preocupação expressa por seu Deus para os sem-terra, sem família e em situação de rua. Longe de ser meramente uma generalização sentimental, ela tomou forma jurídica específica, como os seguintes textos indicam.

 

1. Proteção contra abusos em geral e opressão

“Não maltratem nem oprimam o estrangeiro, pois vocês foram estrangeiros no Egito” (Êx 22.21).

Quando um estrangeiro viver na terra de vocês, não o maltratem (Lv 19.33).

 

2. Proteção contra tratamento injusto em tribunal

“Não oprima o estrangeiro. Vocês sabem o que é ser estrangeiro, pois foram estrangeiros no Egito” (Êx 23.9, no contexto de instruções para os procedimentos judiciais).

“Naquela ocasião ordenei aos juízes de vocês: ‘Atendam as questões de seus irmãos e julguem com justiça, não só as questões entre os seus compatriotas como também entre um israelita e um estrangeiro. Não sejam parciais no julgamento! Atendam tanto o pequeno como o grande. Não se deixem intimidar por ninguém, pois o veredicto pertence a Deus. Tragam-me os casos mais difíceis e eu os ouvirei” (Dt 1.16-17).

 

3. Inclusão no repouso sabático

Esta foi uma das inovações únicas e fundamentais para a economia e cultura social israelita:

“Guardarás o dia de sábado a fim de santificá-lo, conforme o Senhor, o teu Deus, te ordenou. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é um sábado para o Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu nem teu filho ou filha, nem o teu servo ou serva, nem o teu boi, teu jumento ou qualquer dos teus animais, nem o estrangeiro que estiver em tua propriedade; para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Lembra-te de que foste escravo no Egito e que o Senhor, o teu Deus, te tirou de lá com mão poderosa e com braço forte. Por isso o Senhor, o teu Deus, te ordenou que guardes o dia de sábado” (Dt 5.12-15 e Ex 20.9-11).

 

4. Inclusão na adoração e aliança

Uma vez assimilados pela circuncisão, os gērîm deveriam ser incluídos em toda a vida comunitária. Por exemplo:

  • Eles poderiam participar da Páscoa, se circuncidados (Ex 12.45-49);
  • Eles se beneficiaram do dízimo trienal, um fundo social para os desamparados (Dt 14.28f. e 26.12f.);
  • Eles foram incluídos na celebração e no feriado das festas anuais (Dt 16);
  • Eles deveriam observar o Dia da Expiação (Lv 16.29);
  • Eles deveriam estar presentes nas ocasiões de renovação da aliança e da leitura da lei (Dt 29.10-13, 31.12).

 

5. Prática de emprego justa

“Hebreus”, nas leis sobre escravos em Êxodo e Deuteronômio, provavelmente não eram israelitas étnicos, mas uma classe social de pessoas de alguma forma semelhante aos gērîm, que viviam da venda de sua força de trabalho – uma espécie de “subclasse”, possivelmente semelhante aos apîru, pessoas do Antigo Oriente sem raízes conhecidas. Essa categoria de pessoas, que se assemelha a dos trabalhadores migrantes, deveria receber a liberdade depois de seis anos de serviço, isto é, efetivamente um contrato de seis anos após o qual o “hebreu” teria a liberdade para partir ou tornar seu contrato permanente, mas isso por sua escolha, não por vontade de seu patrão (Ex 21.1-11 , Dt 15.12-18) .

O pagamento imediato dos salários foi outra preocupação expressa na lei trabalhista de Israel. Neste caso, os gērîm aparecem na lista como os trabalhadores contratados. Essas pessoas, muitas vezes trabalhando por pagamentos diários, eram (e ainda são) um alvo fácil para exploração e maus tratos. Os negligentes no pagamento do salário justo por um dia de trabalho seriam considerados não apenas descuidados, mas “culpados do pecado”.

“Não se aproveitem do pobre e necessitado, seja ele um irmão israelita ou um estrangeiro que viva numa das suas cidades. Paguem-lhe o seu salário diariamente, antes do pôr-do-sol, pois ele é necessitado e depende disso. Se não, ele poderá clamar ao Senhor contra você, e você será culpado de pecado” (Dt 24.14–15).

 

6. Acesso aos produtos agrícolas: o direito na colheita

Uma vez que os gērîm não tinham parte na divisão da terra, eles eram dependentes das famílias de Israel para as quais trabalhavam e, por isso, podiam desfrutar da fartura da terra. Deus enfatizou que a terra era sua (o dono supremo – Lv 25.23), assim, os que não tinham terra deveriam receber a oportunidade de se alimentar, comer e ficar satisfeitos junto ao resto da população.

“Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até às extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita. Não passem duas vezes pela sua vinha, nem apanhem as uvas que tiverem caído. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.9-10).

“Quando vocês estiverem fazendo a colheita de sua lavoura e deixarem um feixe de trigo para trás, não voltem para apanhá-lo. Deixem-no para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, para que o Senhor, o seu Deus, os abençoe em todo o trabalho das suas mãos. Quando sacudirem as azeitonas das suas oliveiras, não voltem para colher o que ficar nos ramos. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. E quando colherem as uvas da sua vinha, não passem de novo por ela. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito; por isso lhes ordeno que façam tudo isso” (Dt 24.19-22).

 

7. Direito ao refúgio e não retorno

Os escravos que fugiam de seus mestres eram, universalmente, sujeitos a punições severas em todas as culturas que adotavam a escravidão como parte de seu sistema social . Aqueles que abrigavam escravos fugitivos estariam igualmente sujeitos a punições de acordo com a lei. Assim acontecia nas culturas ao redor no Israel antigo, contudo, na lei de Israel, esse tema era tratado de maneira completamente oposta e surpreendente.

“Se um escravo refugiar-se entre vocês, não o entreguem nas mãos do seu senhor. Deixem-no viver no meio de vocês pelo tempo que ele desejar e em qualquer cidade que ele escolher. Não o oprimam” (Dt 23.15-16).

Reconhecemos que se trata de uma lei sobre escravos, não sobre imigrantes ou refugiados. No entanto, supõe-se que a razão pela qual um escravo buscaria refúgio seria a crueldade que estava sofrendo ou alguma outra forma de injustiça e opressão. Dessa forma, o princípio da lei aplica-se, certamente, àqueles em situação comparável nos dias de hoje, ou seja, os que fogem de contextos de crueldade e circunstâncias insuportáveis que ignoram os direitos inerentes ao ser humano.

Admite-se que há uma diferença entre os poucos refugiados que esta lei parece supor e o êxodo em massa de milhões de refugiados que vemos no mundo atual, mas certamente o pressuposto continua: pessoas têm o direito de escapar dos maus tratos e o direito de escolher um lugar alternativo para viver.

 

8. Igualdade perante a lei com os nascidos em Israel

Essa é possivelmente a mais radical e abrangente de todas as leis de Israel em relação aos estrangeiros. Embora houvesse claras distinções religiosas, sociais e econômicas entre os gērîm não-israelitas e os israelitas étnicos quando aos laços de parentesco e a questão da propriedade da terra, ambos precisavam ser tratados com igualdade em qualquer disputa legal e em qualquer processo penal entre eles. Na verdade, o mesmo mandamento sobre o amor que se aplica a “seu próximo” (um israelita compatriota) devia ser obedecido em relação ao estrangeiro – “amá-lo como a si mesmo”.

“O estrangeiro residente que viver com vocês será tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.34; note a harmonia com o v. 18).

Quando os textos são analisados em conjunto, percebemos uma lista notável de leis e exortações relativas ao tratamento de estrangeiros e imigrantes, pessoas que se equiparam aos refugiados de hoje. E a palavra mais forte usada para resumir tudo é o mandamento para amar.

A expressão “amarás” tal como utilizada no texto original em hebraico (segunda pessoa do singular, waw consecutivo, perfeito Qal, do verbo  `ahabh) ocorre apenas quatro vezes no AT. Duas delas são o que Jesus chamou de “o primeiro e segundo maiores mandamentos na lei” (amar a Deus e amar ao próximo; Dt 6.4-5; Lv 19.18). As outras duas são amar o imigrante (Lv 19.34), e esse texto é ainda mais completo.

“Pois o Senhor, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Soberano dos soberanos, o grande Deus, poderoso e temível, que não age com parcialidade nem aceita suborno. Ele defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe alimento e roupa. Amem os estrangeiros, pois vocês mesmos foram estrangeiros no Egito” (Dt 10.17-19).

A motivação para tais leis, ilustradas em vários textos, está sobre três pilares:

  • A própria história de Israel – Aqueles que tinham experimentado o que era ser uma comunidade étnica imigrante e explorada (originalmente refugiados pela escassez de comida) deveriam mostrar compaixão para com outros em circunstâncias semelhantes;
  • O caráter e os atos históricos de Yahweh, o Deus de Israel – Aqueles que o adoram devem andar em seus caminhos e viver de acordo com seus valores e prioridades;
  • O desejo de Deus de continuar a abençoar o seu povo – O que seria mantido caso eles respondessem à sua graça prévia e bênção redentora, demonstrando comparável compaixão e justiça aos pobres em seu próprio meio.

Em outras palavras, a ética de Israel em relação aos refugiados foi construída tendo como base a gratidão a Deus pelo o que Ele fez, sendo que seu caráter foi revelado em tais ações. Junto a todas essas ordens positivas, entretanto, precisamos mencionar uma sanção negativa. Na lista de maldições que viriam como consequência pela desobediência ao pacto, existe esta – uma advertência severa a Israel (e, por inferência ética, a qualquer sociedade que enfrenta o desafio dos imigrantes e refugiados):

‘Maldito quem negar justiça ao estrangeiro, ao órfão ou à viúva’. Todo o povo dirá: ‘Amém!’ (Dt 27.19).

 

D. OS PROFETAS

Quando lemos as narrativas da história de Israel na terra prometida através das lentes dos profetas (tanto dos primeiros profetas – e também nos livros históricos de Josué até 2 Reis – como dos últimos: Isaías, Malaquias e outros), fica bem claro que a injustiça e a opressão aos pobres eram acusações graves que Deus tinha contra seu povo por séculos. Algumas vezes, o foco estava no tratamento aos estrangeiros e imigrantes que moravam entre eles. Ironicamente, apesar de Moabe[1] ser um inimigo inveterado dos dois reinos de Israel, e embora vários profetas incluíssem Moabe em seus oráculos de julgamento divino contra as nações ao redor de Israel, Isaías convocou os líderes políticos de Judá para responder aos apuros dos refugiados de Moabe durante uma crise militar que oprimiu aquela nação e obrigou sua população, incluindo mulheres vulneráveis, a fugir.

Como aves perdidas, lançadas fora do ninho, assim são os habitantes de Moabe nos lugares de passagem do Arnom. “Dá conselhos e propõe uma decisão. Torna a tua sombra como a noite em pleno meio-dia e esconde os fugitivos; não deixes ninguém saber onde estão os refugiados. Que os fugitivos moabitas habitem contigo; sê para eles abrigo contra o destruidor.” O opressor há de ter fim, a destruição se acabará e o agressor desaparecerá da terra, então, em amor será firmado um trono; em fidelidade um homem se assentará nele na tenda de Davi: um Juiz que busca a justiça e se apressa em defender o que é justo (Is 16.2-5).

Jeremias condenou o povo de Judá, em geral, pelo fracasso no cuidado de tais pessoas em seu meio, enquanto continuavam com uma adoração obsessiva no templo. De fato, foram os pecados sociais que levaram Deus a definitivamente expulsá-los da terra e do templo.

“Mas se vocês realmente corrigirem a sua conduta e as suas ações, e se, de fato, tratarem uns aos outros com justiça, se não oprimirem o estrangeiro, o órfão e a viúva e não derramarem sangue inocente neste lugar, e se vocês não seguirem outros deuses para a sua própria ruína, então eu os farei habitar neste lugar, na terra que dei aos seus antepassados desde a antiguidade e para sempre”(Jr 7.5-7).

O mesmo profeta falou ao governo de seu país que, se eles não mudassem sua política com tal grupo de pessoas necessitadas, eles perderiam completamente a legitimidade e a autoridade do seu ofício. Notavelmente, os maus tratamentos para com estrangeiros e imigrantes estão na mesma categoria moral do derramamento de sangue inocente.

Assim diz o Senhor: “Administrem a justiça e o direito: livrem o explorado das mãos do opressor. Não oprimam nem maltratem o estrangeiro, o órfão ou a viúva; nem derramem sangue inocente neste lugar” (Jr 22.3).

Ezequiel tinha a mesma escala de valores éticos, e acusou a liderança política de Judá de cometer as mesmas injustiças, o que se enquadrava junto às outras violações do compromisso de adoração e da aliança de Israel.

“Veja como cada um dos príncipes de Israel que aí estão usa o seu poder para derramar sangue. Em seu meio eles têm tratado pai e mãe com desprezo, e têm oprimido o estrangeiro e maltratado o órfão e a viúva. Você desprezou as minhas dádivas sagradas e profanou os meus sábados. Em seu meio há caluniadores, prontas para derramar sangue; em seu meio há os que comem nos santuários dos montes e praticam atos lascivos” (Ez 22.6-9).

Mas Ezequiel também observou, tal como um tipo de antecipação misteriosa do mesmo fenômeno que vivemos hoje em nosso país, que a atitude dos políticos refletiam, e possivelmente fomentavam, a mesma atitude indiferente e xenofóbica da população em geral.

“O povo da terra pratica extorsão e comete roubos; oprime os pobres e os necessitados e maltrata os estrangeiros, negando-lhes justiça” (Ez. 22.29).

Bem, ao final do AT, esse tema continua sendo uma preocupação urgente para o Senhor, que falava por intermédio de seus profetas. O “dia do SENHOR” está chegando, no qual irá julgar seu povo, e entre as razões básicas está o tratamento dado aos necessitados, incluindo os imigrantes.

“Eu virei a vocês trazendo juízo. Sem demora vou testemunhar contra os feiticeiros, contra os adúlteros, contra os que juram falsamente e contra aqueles que exploram os trabalhadores em seus salários, que oprimem os órfãos e as viúvas e privam os estrangeiros dos seus direitos, e não têm respeito por mim”, diz o Senhor dos Exércitos (Ml 3.5).

Não podemos ficar abatidos, ou melhor, confundidos pela grande quantidade de material bíblico sobre esse tema. A extensão das leis estatutárias, a exortação ética, a motivação histórica e teológica e, por fim, a condenação profética em torno dessa questão certamente balizam uma das principais preocupações da fé bíblica e da vida. Deus realmente se preocupa com o tratamento das pessoas de fora, forasteiros, migrantes, refugiados e imigrantes.

Há algo com o mesmo grau de preocupação ética, e não somente paixão política, por esse tema entre os cristãos que afirmam honrar, crer e obedecer a Bíblia?

Como esse desafio pesa na balança de nossos valores morais ao lado das questões sexuais? O Antigo Testamento tem ensinamentos muito claros na lei, nas narrativas, profetas e na literatura de sabedoria  sobre os padrões de Deus para o comportamento sexual. No entanto, o fato é que, enquanto a condenação de vários desvios de padrões e mandamentos de Deus para a atividade sexual humana da Bíblia é nitidamente clara (e eu não as minimizo de forma alguma), existe um volume ainda maior de textos que tratam da preocupação de Deus pela justiça e compaixão para com os marginalizados da sociedade, incluindo com menção persistente, os estrangeiros e imigrantes.

 

E. ALGUNS PENSAMENTOS CONCLUSIVOS MISSIONAIS E ÉTICOS

1. A natureza da humanidade e os direitos humanos

Imagem de Deus, igualdade e dignidade:

Jó 31.13-15;

Pv 14.31, 17.5, 22.2.

Direitos humanos, na perspectiva bíblica, são o inverso de uma responsabilidade não somente horizontal, mas vertical. Uma dimensão transcendente de Deus, que demanda responsabilidade e proteção dos direitos.

 

2. A natureza da etnicidade, Estados e nosso papel político

As diversidades étnicas e culturais foram criadas por Deus (Dt 32.8, At 17.26), e serão preservadas na nova criação (Ap 7.9). Dessa forma, a proteção e preservação de tais identidades é valiosa.

Quanto ao papel profético da igreja em relação aos estados e governos, lembre-se do papel primário do governo – Pv 31.1-9, Sl 72.4, 12-14, Jr 22.1-4, Rm. 13.1-4;

Lembre-se também do papel primário do povo de Deus – “Amar ao próximo como a si mesmo” (Lv 19.18). E “o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo” (Lv 19.34).

 

3. A natureza do Evangelho e nossa missão

A essência do Evangelho ao quebrar as barreiras do preconceito racial e cultural –

Ef 2.11-3.6.

Missão – A visão no AT das nações sendo unidas a Israel e abençoadas (Abraão), Is 19.19-25, 56.3-8, 60.3, Zc 2.11.

A missão centrífuga e centrípeta: as realidades globais trazem as nações para nós!

Em Jr 29.1-14, especialmente o verso 7: “Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela”.

É preciso colocar esse tema dentro dos parâmetros da soberania de Deus, para vermos oportunidades à luz de sua missão, e vermos o futuro à luz da promessa irrevogável do Senhor.

  

Chris Wright é diretor internacional da Langham Partnership – função antes ocupada por John R. W. Stott durante 30 anos – e presidente do Comitê Teológico da Tearfund, conhecida organização cristã de assistência e desenvolvimento. Também foi presidente do Grupo Teológico de Trabalho do Comitê de Lausanne. Escreveu, entre outros livros, Povo, Terra e Deus, O Deus Que Eu Não Entendo, Knowing Jesus Through the Old Testament e o premiado A Missão de Deus. Chris e sua esposa, Liz, têm quatro filhos e cinco netos.

 

Nota: Texto apresentado durante o fórum “Refugee Crisis: a shared human condition” em junho de 2016 no Oxford Center for Missions Studies (OCMS), Inglaterra. Os direitos de publicação foram gentilmente cedidos pelo OCMS e pelo IFEMIT.

[1]  Nota do editor: Moabe é o nome histórico de uma faixa de terra montanhosa ao longo da margem oriental do Mar Morto, onde atualmente é a Jordânia.

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