Estabelecimento de comunidades de fé em contextos não cristianizados – Parte 2/3

Um modelo sustentável (modelos de custeio da obra transcultural), transformacional e exemplar

Carlos Madrigal Mir

Na primeira parte do texto (disponível aqui), o autor fala sobre como um modelo de comunidade com direção e com “honra” (ser bem vista) foi essencial no contexto turco. Nesta segunda parte, também a partir das décadas que atuou na Turquia, Madrigal toca em assuntos críticos como a questão do sustento da obra transcultural e a necessidade de o “povo do Livro” ser a prova viva da veracidade da Escritura. Confira!

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Um modelo sustentável

Hoje em dia a sustentabilidade (ou “continuabilidade” como se traduziria literalmente seu equivalente em turco “sürdürülebi-lirlik”) é um tema prioritário para todas as áreas do trabalho humano. Falo sobre as características do desenvolvimento que asseguram as necessidades do presente sem comprometer as necessidades de futuras gerações. Em outras palavras, algo que continue funcionando e se desenvolvendo com os recursos disponíveis sem excedê-los nem esgotá-los. O que é sustentável tem a ver com “não dar o passo maior que a perna” (ou, em turco, “não estirar o pé além da colcha”). Ou ainda com ser bons administradores, com contentamento, com pôr os recursos à disposição do Senhor para que ele os multiplique.

O Novo Testamento fala de diferentes formas de se prover sustento para a obra, todas elas sustentáveis. Começando pelo próprio Jesus, lemos: “Joana, esposa de Cuza, administrador de Herodes; Suzana, e muitas outras que contribuíam com seus próprios recursos para o sustento de Jesus e seus discípulos” (Lc 8.3 NVT). Jesus mesmo ensinava aos seus dizendo:

Quando entrarem numa casa, digam primeiro: ‘Que a paz de Deus esteja nesta casa’. (…) Permaneçam naquela casa e comam e bebam o que lhes derem, pois quem trabalha recebe seu salário. Não fiquem andando de casa em casa. Quando entrarem numa cidade e ela os receber bem, comam o que lhes oferecerem. (Lc 10.5-8).

Esse era um sistema plenamente sustentável e condizente com a cultura da hospitalidade oriental. Também Paulo e João incentivam os crentes a hospedar os irmãos que assim iam pregando a Palavra de povoado em povoado e suprir as necessidades deles (Tt 3.13; 3Jo 6, 8). Portanto, o tema não é estranho ao NT ou à igreja, e não diz respeito apenas ao sustento econômico, mas também ao assentamento e continuidade de todos os níveis da obra.

Quando se pode dizer que uma comunidade cristocêntrica está estabelecida? São muitos e diversos os critérios que se poderiam elencar. Estes são, a meu ver, alguns deles:

  1. Quando está em condições de governar a si mesma em dependência direta do Senhor e da Palavra (At 20.32).
  2. Quando pode se alimentar espiritualmente uma vez que os que iniciaram a igreja já partiram (1Jo 2.27; Hb 5.12).
  3. Quando pode cobrir seus gastos e apoiar financeiramente seus obreiros e outros inclusive (1Tm 5.17; 2Co 8.1-5).
  4. Quando os membros se envolvem voluntariamente para servir em diversas áreas do ministério (Ef 4.12).
  5. Quando é capaz de se reproduzir em outras comunidades e/ou se expandir em outras regiões ou geografias (1Ts 1.8).
  6. Quando desfruta “a simpatia de todo o povo” (At 2.47) e produz um efeito reparador na sociedade (Mt 5.13-14; 1Tm 3.15).
  7. Quando é capaz de transferir sua visão, dedicação e legado às gerações seguintes (1Tm 2.2).

Eu diria que os primeiros quatro ou cinco pontos são os diferenciais de uma igreja que se sustenta por si mesma e está, portanto, assentada. Os três últimos, por sua vez, descrevem uma igreja eficaz e madura que, uma vez assentada, desenvolve os ingredientes para o que costumamos chamar de avivamento, isto é, sua repercussão em toda uma sociedade. O ponto cinco tem os pés nas duas canoas, pois desde o início a igreja deve ter os olhos voltados para se reproduzir e se expandir, mas nem sempre isso ocorre de forma imediata, ainda mais se pensamos em alcançar os extremos da terra.

Assim, a comunidade cristocêntrica, pode-se dizer, estará assentada quando alcançar a capacidade de governar-se, edificar-se, financiar-se e se reproduzir por si mesma (não sendo esse último um tema de menor importância). Lamentavelmente, nos lugares chamados não alcançados, os modelos que as novas comunidades têm costumam vir de contextos nos quais os recursos são amplos em contraste com recursos praticamente inexistentes no campo. Isso faz com que os olhares se dirijam aos países mais abastados financeiramente, gerando uma dependência insustentável e não saudável. Não que a igreja deva cortar seus laços de comunhão e colaboração com outras igrejas em seu entorno e no mundo. Pelo contrário! Toda a igreja é membro do corpo universal de Cristo e deve guardar, fomentar e edificar a unidade com todas as demais. O que devem ser cortadas são as amarras de dependência para que saiam do dique seco para o alto mar e naveguem por si mesmas, ainda que naveguem em formação dentro de uma frota.

Abordar esse tema é trabalhoso, mas ele afeta diretamente tanto a sustentabilidade como a espiritualidade da obra. Hoje em dia, procura-se desesperadamente encontrar fórmulas contextualizadas para criar modelos autóctones de igreja. No entanto, a dependência econômica e/ou a aplicação de modelos de sustento exportados do Ocidente sejam talvez o colonialismo religioso mais prejudicial para a continuidade saudável da obra. Não apenas isso como também o paternalismo – a direção à distância das igrejas-satélite, o controle dos recursos docentes e do ensino teológico, assim como a imposição de métodos inadequados à cultura para a evangelização ou o ministério – continuam sendo às vezes tão inflexíveis ou impositivos como em épocas anteriores.

Dito isso, deveríamos distinguir o que é criar dependência viciada do que é apoio externo às regiões do mundo que não têm recursos, algo perfeitamente bíblico e pauta extensa no NT. Portanto, não sugiro que devam cessar os apoios de fora, mas que eles se voltem para fomentar a geração de recursos internos ou autóctones, ou no mínimo sejam direcionados por meio de mecanismos de controle presentes no contexto apoiado. O que significa isso?

É um tema espinhoso, mas não podemos evitá-lo porque seus efeitos sobre a benção espiritual são enormes. Vamos por partes… Até onde pude observar, no mundo existem 3 modelos básicos de financiamento das obras cristãs que nomeei da seguinte maneira:

Modelo 1 – Institucionalizado com subvenções estatais;

Modelo 2 – Profissionalizado segundo o método “levantar fundos”;

Modelo 3 – De voluntariado com financiamento pelas bases.

Grosso modo, o Modelo 1 funciona nos chamados países católicos ou onde a igreja protestante é também estatal. O Modelo 2 funciona em países anglo-saxões onde “levantar fundos” não é somente uma prática entre os crentes – universidades, museus, pesquisa científica e até campanhas eleitorais e partidos obtêm financiamento dessa forma. Tal modelo faz parte do tecido social e cultural desses países. O Modelo 3, por sua vez, funciona onde a igreja é uma minoria e sua presença representa no mínimo um incômodo ao Estado e à sociedade, então nem um nem outro está disposto a financiá-la. Diria que esse último é o mais próximo do contexto que encontramos no NT. Na prática, o que em geral acontece é uma aplicação mista em que um dos modelos se sobressai. A seguir falaremos sobre os dois últimos.

Por que “profissionalizado” ou “de voluntariado”? O Modelo 2 se dá onde o ministro, pastor ou obreiro (ou como queiram chamar) faz carreira: cursa estudos acadêmicos formais e logo ocupa um posto e passa a receber um salário. Ou então, com suas credenciais, “levanta fundos”, ou seja, faz promoção de seu ministério entre possíveis doadores individuais ou coletivos (igrejas, fundações ou outros). Isso não exclui o fato de que nas igrejas exista um número expressivo de crentes que colaboram voluntariamente em diversas áreas do serviço, mas o ministério, além de sua dimensão vocacional e espiritual, é também uma profissão, um emprego.

O Modelo 3, de voluntariado, em muitos casos se dá em combinação com o anterior, mas, diferentemente do Modelo 2, também incorpora aqueles que alternam sua vida profissional “secular” com o ministério. Ao que parece, esse era o caso de alguns dos presbíteros (anciãos) mencionados por Paulo em 1ª Timóteo 5.17. Alguns recebiam “honra redobrada”, ou seja, além do respeito merecido por sua função, recebiam uma gratificação econômica, “especialmente os que se dedicavam arduamente à pregação e ao ensino”. Isso parece indicar que outros cumpriam sua função de forma voluntária, não remunerada.

Por que me envolver nestes temas? Ambos os modelos funcionam paralelamente em países anglo-saxões ou onde suas denominações se estenderam por outras latitudes. Em contextos dos chamados não alcançados, contudo, devemos encorajar o modelo financiado voluntariamente pela comunidade crente sem recorrer ao “levantar fundos”. Do contrário, o que move os candidatos é o salário, e tentam “vender” seu projeto ao melhor “investidor” recorrendo a todo tipo de exagero nos relatórios (para dizer suavemente). Isso danifica a obra!

Algumas vezes me perguntam sobre minha visão e expectativa para o futuro da obra. Geralmente respondo que é chegar a ver crentes dispostos a dar tudo sem receber nada em troca além da aprovação do Senhor. Esse é o espírito que devemos fomentar e mostrar também em nós. Significa evitar um modelo de serviço o tempo todo? De nenhuma maneira! Quer dizer que devemos criar modelos de apoio que fomentem esse espírito de entrega desinteressada.

No texto “Sustentando a corda”, falei de alguns dos possíveis princípios relativos ao sustento de obreiros. A conclusão foi que não é tanto o obreiro quem deveria obter seu sustento, a igreja é quem deveria promovê-lo e provê-lo. Também digo que, no caso de apoio vindo de outros países a obreiros nativos no campo, no mínimo esse apoio deveria ser direcionado por meio de mecanismos de controle no país de destino: um comitê formado por várias igrejas, uma agência presente no país ou qualquer outra fórmula que se possa sugerir. O importante é não dar diretamente o apoio ao beneficiado: o ideal é haver um órgão para o qual prestar contas e que administre os fundos. E que esse órgão, por sua vez, se encarregue de filtrar e verificar as informações que são enviadas aos doadores. Não se trata de desconfiança, mas de boa mordomia. Além disso, esse formato libera os obreiros nativos no campo de se ocupar com toda a carga administrativa e lhes dá o descanso de que alguém está velando por eles para que o apoio chegue pontualmente. Não quero entrar aqui em uma análise técnica, mas, para garantir um sistema transparente e sustentável, o princípio é que quem recebe e administra os fundos no país de destino não sejam os beneficiários diretos dos recursos.

Essa é uma das questões. Outra importante é fomentar a geração de recursos locais: o sustento deve, na medida do possível, vir das comunidades e dos crentes locais, pelo menos uma porcentagem, mesmo que no final das contas (humanas) seja um valor simbólico. Quem melhor do que os irmãos da própria cultura para determinar se tal ou qual irmão possui condições para ser apoiado? Faz sentido apoiar a milhares de quilômetros de distância, sem conhecer o contexto e o idioma, quem os próprios compatriotas não veem sentido apoiar, nem sequer com uma quantidade mínima?

Esse é um princípio que aplicamos a todos nossos pastores/obreiros servindo sob o guarda-chuva da nossa fundação. E o mesmo princípio aplicamos a projetos maiores. Não aceitamos ajuda de fora até que tenhamos angariado pelo menos 10% do orçamento total. E, no final, os irmãos nacionais sempre proveem mais que 10%.

Os benefícios de atuar assim são muitos:

  • Ensina os irmãos a confiarem na provisão de Deus;
  • Estimula a ofertar com regularidade e responsabilidade;
  • Fomenta a importância da geração de recursos locais – os irmãos entendem que o ideal é assumirem plenamente a manutenção regular dos projetos iniciados com ajuda externa;
  • Facilita uma prestação de contas saldável;
  • Garante relatórios e circulares de oração ajustados à realidade;
  • É um testemunho aos olhos da própria sociedade.

E mais! Em contextos em que pastores nativos são acusados de estar nas costas de nações intrusivas, eles podem dizer: “Meu sustento provém dessa igreja da esquina”. Além disso, evita-se promover projetos bizarros, ministérios que não estão adequados aos recursos que o Senhor proveu em determinada nação. Estimula-se também o voluntariado, ou seja, quem quiser servir de verdade, que o faça sem esperar nada material em troca – nos casos daqueles que estão dispostos a deixar sua ocupação laboral para servir em tempo integral, que se fomentem verdadeiras vocações. Em suma, aquele que decide se dedicar ao ministério o faz não porque isso representa uma maior comodidade, maiores vantagens e melhores ingressos que em um emprego “secular”, mas realmente porque está disposto a sacrificar tudo pelo evangelho. Para entender como alguns setores nessas sociedades percebem o ministério, deixe-me compartilhar um exemplo: chegamos a receber mensagens de não crentes dizendo – “Se vocês me garantirem um salário de tantos mil dólares como pastor, estou disposto a me tornar cristão”.

Os países não devem ser inundados por recursos, deve-se ensinar primeiro a fazer a obra com o que cada um “tem em suas mãos”. O verdadeiro recurso são as vidas consagradas ao Senhor. Por isso, mais benção há com um voluntário que dá tudo sem receber remuneração em troca do que com cem assalariados cuja única preocupação é que não abaixem sua alocação mensal e que dedicam a maior parte de seus esforços a “levantar fundos” por carta. Sem falar dos que inventam maravilhas inexistentes ou, em casos piores, desviam fundos (de tudo já vimos nesta terra). É dura essa palavra? Sim, tão dura quanto o campo é duro, bem como é duro o inimigo que não dá trégua. E, se não andarmos com atenção, seremos nós aqueles que possibilitam que nosso irmão “seja desacreditado e caia na armadilha do diabo” (1Tm 3.7), participando assim dos pecados alheios (1Tm 5.22).

Por isso, a culpa daquele que cai é tanta como a dos que não puseram limites ou freios para que isso não acontecesse. É o que nos diz Deuteronômio 22.8: “Quando você construir uma casa nova, coloque um parapeito em torno do terraço. Desse modo, se alguém cair do terraço, você e sua família não serão culpados pela morte da vítima”. Em muitos lugares do Oriente Médio, as pessoas no verão costumavam dormir nos telhados, onde é mais fresco. Ainda hoje, os telhados costumam ser lisos, sem grade ou muro. O risco de se mexer estando dormindo e cair é grande. Qual a solução? Colocar grades ou muros, ou seja, limites. Se não se ouve essa advertência do Senhor, ele pedirá contas não ao que cai e morre espiritualmente, mas aos responsáveis da casa que não colocaram grades.

Se queremos ver obras sustentáveis, devemos instalar grades (i.e., estabelecer diretrizes e limites) para que a obra e os obreiros sejam sustentados fielmente, se possível com recursos locais; assim ninguém cai do telhado. Se o que queremos é refletir a Jesus, devemos prevenir tudo aquilo que possa turvar nosso testemunho!

Um modelo transformacional

Ao pensar na tarefa global, geralmente grandes cifras e macro resultados vêm à mente, mas talvez nos esqueçamos do principal: o Senhor quer ver vidas transformadas uma a uma. Deus não nos chamou para conquistar cidades nem reinos, mas corações: “É melhor ser paciente que poderoso; é melhor ter autocontrole que conquistar uma cidade” (Pv 16.32). “Quem não tem domínio próprio é como uma cidade sem muros” (Pv 25.28). Podemos ter as igrejas cheias, organizar grandes eventos e comover cidades inteiras, contudo, se o espírito do crente não foi dominado pelo Senhor, esse homem ou mulher está em derrota. Se a soma das vidas professantes tem as muralhas de seus espíritos derrubadas, a cidade (a comunidade crente) está à beira do desastre. Tristemente alguns países com a maior porcentagem de “crentes” tem também os índices de criminalidade mais altos.

O objetivo da Grande Comissão não é fazer convertidos, mas discípulos, buscando ver aquela imagem que se deteriorou no Éden restaurada e estampada em mais e mais vidas!

Vamos nos centrar no entorno que conheço e no qual servimos como família por anos [a Turquia]. Gostaria de analisar brevemente alguns dos empecilhos mais básicos para a transformação – necessidades elementares do discipulado. Evidentemente cada contexto cultural apresenta características peculiares que deverão ser tratadas de forma distinta. Bem, como dizem na minha terra, “para amostra, um botão”, ou seja, é mais fácil analisar casos concretos e então buscar princípios que possam se aplicar de uma forma extensa a diferentes situações. Analisaremos três lotes de barreiras com três impedimentos cada que dificultam a formação de discípulos: barreiras religioso-espirituais, barreiras religioso-sociais e barreiras religioso-conceituais.

Barreiras religioso-espirituais

  1. “A Bíblia foi alterada”
  2. O Filho, a Trindade e a cruz
  3. O medo: “O apóstata merece a morte”

Em um mundo pluralista e globalizado, o disparo mais generalizado à linha de flutuação da fé é questionar a credibilidade da Bíblia. Se a Bíblia não é a Palavra de Deus – pela razão que seja –, já não há possibilidade de relação objetiva com Deus. No Ocidente, a alta crítica buscou e rebuscou toda possível errata textual, histórica e conceitual. Para o Extremo Oriente, simplesmente não existe uma verdade única. No Oriente Médio e proximidades, argumenta-se que se introduziram falsidades nas Escrituras para concordar com o politeísmo greco-romano e apagar o anúncio do profeta por vir (i.e., Maomé).

Nesse último caso, em uma cultura que abraça sua “verdade” mais por apegos culturais do que por argumentos irrefutáveis, a maneira de contrabalançar essa acusação é precisamente mostrando um respeito e apego total pelas Escrituras. Nossas vidas exemplares e centradas na Palavra são a evidência de sua credibilidade. Nossa dependência em todo os conselhos e diretrizes das Escrituras é um testemunho vivo da sua validade. E nossa vida devocional, nosso diálogo com Deus através do texto sagrado, é a prova de sua atualidade.

Inclusive, me atreveria a dizer que isso é igualmente válido para nosso mundo pós-moderno. Assemelha-se ao que os antigos chamam de “vozes vivas” (grego: xontos fone; latim: viva vox): o testemunho daqueles que, na igreja primitiva, haviam ouvido/aprendido diretamente de Jesus ou dos apóstolos era mais valorizado do que os próprios escritos. Assim, podemos e devemos ser testemunhas vivas da credibilidade das Escrituras – esse é o argumento mais poderoso no Oriente Médio. Evidentemente isso não exclui a necessidade de apresentar provas sólidas e estudos consistentes, mas a principal evidência da veracidade da Bíblia consiste no “povo do Livro” (como o Alcorão se refere aos cristãos e também aos judeus) ser como Bíblias viventes.

O segundo ponto – o Filho, a Trindade e a cruz – são barreiras quase que insuperáveis para o muçulmano. Não desenvolverei esses pontos, digo apenas que em nossos contextos “cristãos” muitas vezes não temos um claro entendimento das implicações e significados desses termos. Por isso, questioná-los a partir da crítica que o islã faz não apenas é bom, também é enriquecedor e esclarecedor. Para isso, exorto o leitor a buscar os recursos necessários. (Aqui você encontra o curso “De Maomé ao Estado Islâmico” – EAD.)

Por último, é importante lembrar que de acordo com as fontes muçulmanas o que abandona o islã merece a morte (wajib alqatl, واجب القتل). Mesmo que isso não se pratique oficialmente em muitos países dominados por essa religião, existe sim o risco de agressões e de se perder a vida. No mínimo, exerce-se uma pressão psicológica, um medo fica incrustado na alma de todo o que quer abraçar qualquer outra alternativa. Isso nos leva às próximas três barreiras.

Barreiras religioso-sociais

  1. Traição da família e da nação
  2. As aparências são tudo
  3. Busca de vantagens na religião

A conversão é vista como alta traição à família e à nação. Em uma cultura de identidade coletiva, é o pior crime que alguém pode cometer. A alternativa para contrabalançar essa pressão só pode ser coletiva, e a comunidade crente é o único grupo que pode oferecer esse amparo espiritual e psicológico necessário a quem está disposto a dar um passo tão drástico como se entregar a Cristo. Não são poucos os que ao final tomam coragem para fazê-lo, só que essa não é, na minha visão, a maior barreira sociorreligiosa.

Em um mundo onde, em termos gerais, as aparências são tudo, e onde o que se dá à religião espera benefícios em troca, chegar a ver uma transformação persistente e desinteressada é um verdadeiro desafio. Por isso, deve-se conhecer bem a cultura, dominar o idioma e as formas de se relacionar para discernir “as intenções do coração” e não se deixar enganar pelas aparências. É mais difícil ao nortenho que ao latino identificar alguém que adere à religião indo contra o que diz sua consciência para obter um mero benefício terrenal, aparentando uma espiritualidade que é falsa. Para chegar ao fundo da questão do porquê dessas travas, devemos abordar os últimos três impedimentos.

Barreiras religioso-conceituais

  1. Um Alah todo-transcendente e impessoal
  2. Ausência de “ofensa” a Deus no pecado
  3. O conceito de benção-abundância (baraqa)

A última bateria de barreiras é a mais importantes e é a causa de todas as anteriores. Geralmente definimos a fé evangélica como “ter uma relação pessoal” com Deus, o que é correto. No entanto, o Deus do islã é tudo menos pessoal, é o oposto a todo o cognoscível. Daí a célebre sentença de Abu Bakr: “Compreender a divindade é descobrir que nunca poderemos compreendê-la”. Isso não só gera dificuldades para desenvolver uma vida devocional pessoal (não é assim na adoração coletiva), essa concepção de um Deus que não dá explicações e que atua de forma arbitrária gera desconfiança e insegurança. Por isso, no discipulado, a primeira ênfase deve estar no caráter fiel de Deus, de suas promessas e de sua soberania para fomentar uma relação de confiança. A esposa de um dos presidentes da Turquia em certa ocasião disse algo muito significativo de seu marido, que retrata o sentir geral dessa cultura: “…acredita muito em Alá, mas não confia nele”.

Paralelamente a isso, é interessante notar que na cultura da “ofensa” não existe o conceito de ofensa a Deus no pecado: Deus é tão transcendente que nada o afeta. Em um sentido, isso é verdade. Nada lhe causa danos, altera ou prejudica, mas o ofende, entristece e irrita (quando falamos de Deus, sempre que usamos adjetivos relativos a emoções andamos sobre solo escorregadio). Existe o conceito de “temor de Deus”, mas é um temor às represálias dos correligionários ou ao castigo eterno, não carrega o sentido de não querer ofender a Deus [por amor]. O que não vem à luz é como se não existisse. Assim, é habitual levar uma vida dupla e nem sequer ter consciência disso. Portanto, o segundo objetivo do discipulado deveria ser fomentar uma relação de veneração, uma consciência de que o pecado entristece o Deus que amamos – essa é a primeira e mais terrível consequência de sucumbir, não o fato de que outros descubram. Afinal, todos estamos descobertos aos olhos daquele a quem dizemos adorar.

Seguindo a mesma linha, temos de atentar para a crença sobre benção (baraqa) – entendida como prosperidade ou recompensa – e adversidade, entendida como maldição ou castigo (isso não difere da teologia de alguns setores cristãos). Espera-se que, ao se voltar para Deus, tudo melhore. Como isso seria possível em um contexto em que o preço da conversão é no mínimo o repúdio, quando não a perseguição ou às vezes o martírio? É necessário explanar que o desejo de honrar a Deus, sendo fiel em toda circunstância, é o que o glorifica. Esta é a forma como Paulo se dirigia às primeiras comunidades: “…fortaleceram a alma dos discípulos. Eles os encorajaram a permanecer na fé, lembrando-os de que é necessário passar por muitos sofrimentos até entrar no reino de Deus” (At 14.22).

À luz do exposto acima, segundo o expresso por Jesus em Mateus 16, 18 e 28, qual deveria ser o diferencial da igreja que espera por Jesus?

A família crente foi chamada e destinada a ser um modelo a ser levado em conta no meio da sociedade; a ser exemplar e estabelecer precedentes (mesmo que a realidade das igrejas às vezes nos desanime). Talvez devêssemos ter abordado esse tema no início, pois é central: a comunidade crente como modelo. Mas sempre é bom deixar o melhor bocado para o final e ficar com um bom sabor na boca… Como o vinho final das bodas de Caná.

Um modelo exemplar

A essência da igreja que aguarda por Jesus – e dou meu humilde parecer – se expressa na comunhão dos seus com ele, em uma comunhão edificante entre eles e em seu testemunho exemplar para o mundo: “…para que tenham comunhão conosco. E nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo” (1Jo 1.3). “Seu amor uns pelos outros provará ao mundo que são meus discípulos” (Jo 13.35).

Mateus 16

Primeiro de tudo, a comunidade deve ser cristocêntrica. Não importa onde se reúne, como se reúne nem quando se reúne (ou não importa tanto), o que faz diferença é com quem se reúne. Todas as suas atividades, esforços e metas estão ou devem estar voltados ao encontro com Jesus para exaltá-lo. Por isso a comunidade deve se empenhar em formar crentes que conheçam a Cristo e dependam dele, não do pastor, do conselheiro ou do missionário. Eles são necessários para alimentar, guiar e resguardar, mas não devem criar dependência, mas nem sempre é assim. Evidentemente um processo de maturação é imprescindível e há situações de extrema complexidade. Só que quando se torna um padrão, indica que a saúde espiritual da comunidade está afetada.

A fórmula – se é que existe – que Jesus nos dá é: “Ensinem esses novos discípulos a obedecerem a todas as ordens que eu lhes dei” (Mt 28.20). Não um cumprimento meramente formal, ainda mais em culturas acostumadas ao mimetismo, à imitação. A imitação, repetição e memorização têm seu lugar; de fato, o discípulo é um mimetes, um “imitador [não no sentido de suplantar, falsificar ou plagiar] de Cristo” (1Co 11.1; Ef 5.1; Fl 2.5; 1Ts 1.6). O foco não está nas formas da vida cristã, está no caráter de Cristo. O crente não foi conquistado por Cristo, não se fez discípulo, até que tenha desenvolvido uma vida devocional. Só então podemos dizer que está edificando uma vida cristocêntrica. Quando os que são cristocêntricos se encontram e buscam a Cristo juntos, temos a igreja que Jesus deseja. Se a meta da igreja é conhecer, refletir e dar a conhecer a Jesus, não há como dar a conhecer a quem não se conhece, e não se conhece a Jesus nos termos que ele quer se não o refletimos, em alguma medida, em nossa vida e caráter. Essa confissão e conhecimento de Cristo são a rocha sobre a qual sua igreja se fundamenta (Mt 16.15-18).

Assim, o que ministra deve se preguntar: O que fazem os crentes sob minha responsabilidade, fazem para agradar aos demais, a mim ou para agradar ao Senhor? A resposta, se pudermos encontrar, nos dará o diagnóstico espiritual do ministério.

Mateus 18

A igreja, além disso, é uma comunidade. Obvio, não? Pois não tanto. Se por comunidade entendemos um tipo de associação, toda associação pode se desfazer. Se entendemos como família – a família em que nascemos e crescemos –, podemos ter desilusões, brigar e até nos afastar, mas não podemos mudar nossos laços “sanguíneos”. Por isso, o novo crente não deve ser apenas introduzido, deve ser enxertado nessa nova família. No entanto, quantas vezes o obreiro mantém seu “troféu” separado de seus paisanos crentes para não perder seu controle sobre ele ou ela! Agindo assim, de quem os fazemos discípulos? Ou buscamos prosélitos? Lamento ter de fazer esta mudança de tom, mas é que não vejo, na comunidade internacional que atua em contextos interculturais, um entendimento claro do que é a família da fé. Mais do que irmãos, parece que se buscam clientes. Aulas bíblicas particulares, convites para levá-los a seus países, à suas escolas bíblicas, a entrar em sua organização… Tudo menos integrá-los com os crentes de sua própria cultura e sob o cuidado dos líderes de sua própria cultura. Muitas vezes, é o próprio “interessado” quem busca esse tratamento privilegiado – devemos ser o suficiente sábios e generosos para dizer não.

Em nossos primeiros anos de ministério no campo, me desfazia em cuidados visitando, dando aulas pelas casas, ajudando de corpo e alma em todos os percalços sem distinção entre noite e dia… O resultado era que acabavam se afastando do Senhor em muitos casos. Há uma ânsia tal por ver fruto no campo (em especial em campos difíceis) que o obreiro “novato” acaba caindo na armadilha de fazer os discípulos seus. Quando começamos a animá-los a se encontrar com outros crentes de sua cultura, a insistir para nos vermos na igreja, a incentivá-los a orar e esperar do Senhor a direção para lidar com seus problemas, a reclamar certa disciplina em suas vidas, a corrigi-los quando devido (dispostos a “perdê-los” se não se agarrassem ao Senhor), então começamos a ver que aprendiam a depender do Senhor!

Claro que manter relações estáveis e duradouras sem que haja tensões é impossível. Quando isso ocorre na cultura da “ofensa”, todos se ofendem, todas as partes são as ofendidas. Curar as feridas é o nó górdio a ser desfeito se queremos prosseguir testemunhando, sobretudo porque a igreja é uma comunidade de perdão – do perdão de Deus e, na mesma medida, do perdão uns ao outros. É relativamente fácil aceitar o perdão de Deus, mas muito difícil é perdoarmos uns aos outros (não um perdão de boca, mas reconciliatório). Em nossa cultura latina, influenciada pelo domínio peninsular de quase oito séculos do Califado Omíada, isso não soa tão estranho. Agora, se “a culpa” deve buscar o arrependimento e o perdão, a “ofensa” deve buscar o perdão e a reconciliação. É interessante que em turco não existe um equivalente para “reconciliação” (existe “fazer as pazes”), também não existe um equivalente para “intimidade” (existe só a intimidade da alcova). Isso porque na cultura não existe o conceito de vida privada, por isso não se busca a intimidade, apenas a coletividade. No caso de relações rasgadas, existe como máxima fazer as pazes ou alcançar uma trégua, mas não se reconciliar, isto é, restabelecer a confiança e a relação perdidas.

É neste ponto que devemos nos diferenciar e em que está a beleza do projeto de Jesus – quando Paulo fala da igreja que Jesus deseja para si, ele a descreve como “gloriosa, sem mancha, ruga ou qualquer outro defeito” (Ef 5.27), ou seja, digna, sem culpa e sem asperezas. Na primeira parte deste texto sobre o estabelecimento de comunidades de fé em contextos não cristianizados, falamos de a igreja buscar honorabilidade diante dos olhos da sociedade, mas devemos buscar honorabilidade sobretudo aos olhos do Senhor. A glória da igreja reside em sua relação com o Senhor, relação essa que busca a santidade (sem mancha, ruga ou qualquer outro defeito) a ser refletida também nas relações entre os crentes. Isso só é possível quando colocamos nossos olhos em Cristo, valorizando sua honra e dignidade acima da nossa própria. Na cultura da “honra” ou da “ofensa”, temos de ensinar a juntos honrarmos a Cristo (Mt 15.8), afastando-nos de tudo que seja uma “vergonha pública” para o Filho de Deus (Hb 6.6). Entendo que a vergonha pública mencionada em Hebreus não trata desse ou daquele pecado, mas de dar as costas a Cristo, à santidade e à família da fé.

Não em vão Paulo, falando da reconciliação, exorta os crentes dizendo: “Reconciliem-se com Deus” (2Co 5.20). Nosso clamor para que o mundo se reconcilie com Deus não tem poder quando não sabemos viver essa reconciliação entre nós!

Mateus 28

Na comunhão com Cristo e na comunhão com a família de Deus está nosso poder para abençoar todas as famílias e nações da terra. Esta é a grande prerrogativa de nosso chamado: mais que buscar a benção própria – posto que “nos abençoou em Cristo com todas as bênçãos espirituais nos domínios celestiais” (Ef 1.3) –, devemos buscar ser canais de benção. Fomos dotados com autoridade para abençoar! E de fato é na medida que vivemos para abençoar aos demais que Deus se encarrega de tratar de nossas questões.

O poder que nos conferiu segundo Mateus 28 é:

  • O poder do nome (Pai, Filho e Espírito Santo);
  • O poder da proclamação-instrução;
  • O poder da comunhão contínua com Cristo.

O poder no nome é o poder de invocá-lo na oração (Jo 14.13), na comunhão de dois ou três (Mt 18.20), no batismo (Mt 28.19) ou mesmo na disciplina (1Co 5.4-5). É interessante que todas essas situações são mencionadas no plural: “vocês podem pedir”, “onde dois ou três se reúnem”, “batizando-os” e “estarei [Paulo] com vocês”. É a autoridade exercida pela comunidade a que derruba todo obstáculo, afugenta todo medo e supera toda barreira.

Por isso, a família de Deus deve edificar sua identidade sobre a rocha da confissão de Jesus, deve refletir nela a reconciliação com Deus através da reconciliação de uns com outros, e deve proclamar o nome de Jesus invocando-o com todos e instruindo assim o mundo inteiro. Não são os indivíduos que fazem isso, é a comunidade. Esse é o modelo que Jesus quer que levemos até os confins da terra!

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O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

 

Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

 

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