Qual o objetivo da missão?

Por uma teologia da missão além de números, atrelada à recuperação da imagem e à manifestação da glória de Deus

Carlos Madrigal Mir

Introdução

Para recompor algo, antes é necessário desconstrui-lo. Mas Deus nos livre de desmontar a missão se é de Deus! Que ele nos permita, então, analisá-la, bem como refletir humildemente a partir de alguns anos de experiências sobre algumas cicatrizes e alegrias acumuladas no campo. [O autor é espanhol e vive na Turquia desde 1985]. E, sim, é necessário (permissão para) desconstruirmos nossa missão a fim de construirmos a de Deus. O que vou tentar compartilhar a seguir, amparado pela benevolência de Deus e do leitor, são preocupações presentes durante a observação de anos como testemunha em primeira mão do que é a tarefa global.

  • Entendemos corretamente a missão que Jesus nos encomendou?
  • Estamos levando a missão a cabo nos termos e com as ênfases que ele deseja?
  • Quanto nossa visão está ou não viciada ou condicionada pela acumulação de pressupostos que se sedimentaram ao longo da história do cristianismo?

Ao longo de quase quatro décadas de peregrinação cristã e mais de três de serviço na tarefa global, acabei descobrindo algo – creio – revolucionariamente simples: a missão não é a obra que fazemos, os resultados que obtemos, nem a teologia que enaltecemos. A missão é Jesus, a obra é e deve ser feita como Jesus, os resultados são obra de e para Jesus, a teologia ou a defesa da fé não têm sentido se não nos levam a Jesus, se não é a Jesus a quem damos a conhecer, e se isso não nos aproxima de todo aquele que ama Jesus. Dito de outra forma: se, quando o mundo nos vê, basicamente vê nossa obra, nossos resultados, nossa teologia etc., e não vê a Jesus, o que se vê não é sua missão, mas a nossa.

Creio que ninguém na terra possa se erguer como o procurador da missão. A missão de Deus transcende as denominações e ramos de toda a cristandade. Tais reflexões são um convite para os evangélicos repensarem alguns temas. E a abordagem deve ser feita a partir da perspectiva da missão: qual é o propósito da missão segundo as ênfases postas nos últimos tempos? Evangelizar o mundo, fazer convertidos, discipulá-los, plantar igrejas, socorrer os desfavorecidos, cristianizar as nações, reparar injustiças nas sociedades, combater as forças de satanás, acabar a tarefa, preparar a segunda vinda de Cristo…? Muitas vezes, parece que o “sucesso” da missão entre os evangélicos está atrelado a números: número de “decisões” por Cristo, de batizados (mesmo que logo não permaneçam na fé), de cobertores ou Novos Testamentos distribuídos, número de seguidores em uma rede social ou de visitantes em um site, número de ouvintes de um evento ou de eventos assistidos, de países visitados ou de sedes em países. Não deveríamos repensar isso?

Seguindo com o esclarecimento de ideias. Devido a certas suscetibilidades em determinados campos de trabalho, em geral falarei mais da “tarefa global” do que da “missão”. Na verdade, a palavra como tal não aparece no texto bíblico. E, no devir histórico – após o período da igreja primitiva –, missão e cruzadas (na Idade Média), ou missão e conquista (com o Renascimento), ou missão e colonialismo-imperialismo (na Idade Moderna), andaram junto (isso quando não trocaram os papéis), deixando um rastro de feridas emocionais e coletivas nos povos, do qual agora é difícil se desconectar. Assim, em muitos lugares, “missão” evoca “ocupação”, “submissão”, “destruição da cultura”, entre outros desastres. Devemos, antão, continuar utilizando tal expressão? E como podemos reparar o dano causado? Bem, isso nos faz repensar muitas coisas.

Dito isso, no Novo Testamento não aparece o termo missão, apenas aparece no grego o verbo apostello, que significa simplesmente “enviar”. O primeiro a ser enviado, comissionado nesses termos, foi o Filho: “Deus mostrou quanto nos amou ao enviar [apostello] seu único Filho (…)” (1Jo 4.9-10)[1]. No sentido estrito do termo, o apóstolo (i.e., emissário, comissionado) era/é um mero “enviado”, enviado a “proclamar”: “E como ouvirão a seu respeito se ninguém lhes falar [no grego: kerusso]? E como alguém falará se não for enviado [apostello]?” (Rm 10.14-15). Para fazer uma distinção entre meros enviados e aqueles que hoje conhecemos nas epístolas como os apóstolos, ao termo “enviados” apenas se acrescenta que são enviados “de Cristo”, “de Jesus” ou “do Senhor” (1Ts 2.6; Tt 1.11; 1Pe 1.1; 2Pe 3.2; Jd 1.17). Esses apóstolos foram enviados diretamente pelo Senhor. Hoje, os enviados também são enviados por Deus – ou deveriam ser –, mas não de forma direta, há mediação de uma igreja ou organização cristã. O assunto é que nossa terminologia hoje talvez não seja a mais adequada,[2] e, no mínimo, temos de nos perguntar se nossos modelos de envio ou estratégias de trabalho são ou não os mais acertados.

Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo [livro do qual foi extraído este conteúdo] não é um estudo com a pretensão de abarcar um tema tão vasto de forma exaustiva. Busco pensar apenas algumas preocupações e propor algumas possíveis alternativas, sempre partindo da humildade, do respeito ao já feito até aqui e com um olhar de esperança no futuro, mas a partir de uma perspectiva um pouco diferente. Sobretudo, levando em conta que nos três séculos de missões protestantes, e especialmente com o impulso  adquirido no último século, toda a reflexão missionária no campo evangélico veio sendo liderada pela cultura anglo-saxã – a quem devemos muito, mas a quem não devemos nos limitar. Na hora de adquirir uma compreensão mais ampla do tema, devemos poder aportar também nossa ótica latina, hispânica e/ou ibero-americana (como queira chamar). E mais importante ainda, frente às últimas três longas décadas de experiência latina em missões, devemos dar ouvidos ao que foi aprendido da imersão na cultura dos campos atendidos. Algumas coisas saíram muito bem, outras não tão bem, e muitas serão melhoradas.

O objetivo da missão

A primeira tarefa encomendada ao homem na Bíblia é: “Sejam férteis e multipliquem-se. Encham e governem [i.e.: administrem, guardem] a terra” (Gn 1.28 e 2.15). Deixando de lado se o relato de Gênesis é uma descrição literal, teológica ou poética, ou tudo de uma vez, está claro que a missão dada ao homem incluía toda a humanidade. Toda humanidade que encheria a terra, bem como toda possível forma de uso deste bem comum que nos foi confiado em depósito, ou seja, nosso planeta e seus recursos.

Não creio que, para ter clareza sobre a essência do que Deus queria e quer para o homem, seja necessário esperar milhares de anos até a Grande Comissão (Mt 28.18-20). Deus deixou o primeiro homem e todas as gerações dos patriarcas perdidos e sem rumo? Não! Desde o princípio, Deus disse e expressou com toda clareza qual é seu projeto para o homem, e tudo que veio depois não são mais que matizações.

Paralelamente, e inclusive previamente à primeira tarefa encomendada, lemos isto: “Façamos o ser humano à nossa imagem; ele será semelhante a nós” (Gn 1.26-27). O propósito mais elevado que Deus guarda para o ser humano, para todo ser humano, é o de transmitir sua imagem e semelhança! Esse é seu ponto de partida e, ao mesmo tempo, sua meta. Ponto de partida porque o homem foi criado com essa imagem, e meta porque o homem não soube desenvolver adequadamente todo seu potencial. Não soube devido à queda, ao pecado [original]. Mas, provavelmente ainda antes da queda, necessitaria de algum tipo de assessoramento e instrução. Mais ainda depois do primeiro fracasso!

Não sabemos o quão consciente era o primeiro homem do objetivo que Deus guardava para ele: “a imagem”. Não temos certeza de que Deus expôs o tema diretamente a Adão. Pelo fato de se desprender da ordem dos acontecimentos no primeiro capítulo de Gênesis, o solilóquio sobre “a imagem” foi uma reflexão trinitária que aconteceu antes de criar o homem. E, até o capítulo 9 de Gênesis, não vemos Deus falando do tema com um ser humano (Gn 9.6). Mas, de alguma maneira, o homem se inteirou, já que o assunto foi incluído no primeiro capítulo da Bíblia. E o relato não perde a oportunidade de ressaltar que Adão, consciente ou inconscientemente, transmitiu algo dessa imagem aos seus [descendentes] (Gn 5.3). Tratava-se apenas de uma semelhança externa ou também de um legado espiritual?

Fazendo um salto gigantesco no tempo, podemos dizer, sim, que hoje tal propósito foi contemplado na Grande Comissão (Mt 28.18-20) da seguinte maneira: “Façam discípulos (…)”. O discipulado comporta essa instrução que o primeiro homem não pôde completar devido à queda. Hoje, temos A Grande Comissão, mas a primeira humanidade possuía “A Grande Ilusão” de ver uma humanidade forjada à imagem de Deus – se me permitem dizer dessa forma. E não me refiro à ilusão no sentido de algo ilusório, de uma alucinação ou de um sonho delirante, mas, sim, no sentido de um grande estímulo, motivação ou entusiasmo – em contraste com The God Delusion  [A desilusão de Deus], título do livro [do biólogo] Richard Dawkins. Acredito que a Grande Ilusão define tão bem o desejo do coração de Deus como A Grande Comissão. E que A Grande Ilusão engloba A Grande Comissão, e, portanto, a sublima. E mais, me atreveria a dizer que a humanidade inteira aguarda ansiosa a conquista dessa Grande Ilusão. Todos os esforços das lendas e mitologias por encontrar um referente “parecido” conosco não são nada menos que a esperança de descobrir uma ancoragem e dignidade superior, conferida diretamente do céu?  A “imagem [que] caiu do céu para nós” (At 19.35)? Ainda hoje, entre aqueles que renegam a religião – desde a concepção do super-homem até a desumanização da sociedade moderna –, isso continua sendo assim.

Contudo, se apenas vislumbrarmos A Grande Comissão como a conversão do mundo inteiro, os resultados deixam bastante a desejar. Estamos andando lentamente, para dizer de forma benévola. Deveríamos ver as nações professando a fé em Cristo, mas, cada vez mais, vemos um número maior de nações a renegando. [Confira dados e imagens sobre o panorama religioso global aqui.] Enquanto isso, se olharmos sob a perspectiva da Grande Ilusão, talvez descubramos algumas coisas interessantes e, por definição, entusiasmantes, ao mesmo tempo que desafiadoras. Muito desafiadoras!

A tarefa em seus termos mais genuínos

Assim, podemos dizer que a missão, em seus termos originais, é trazer à luz a imagem de Deus em todo homem e em toda a humanidade (não ostentando vaidade, mas refletindo humildemente). Se vamos matizar, podemos lançar mão destes termos do Novo Testamento: “(…) para se tornarem semelhantes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29). Podemos entender isso de forma restrita – os que recebem pela conversão o Filho – ou de forma acumulativa – transmitir de forma progressiva os valores do Filho, do caráter e das virtudes divinas, à humanidade (ou pelo menos alguns desses valores). Creio que ambas formas são importantes, e que, para Deus, o objetivo último da tarefa que nos encomendou é chegar à plena imagem do Filho em cada indivíduo e no coletivo. Também creio que isso não é plenamente possível, a não ser por meio da conversão e progressão na vida cristã até a plena transformação que experimentaremos no reencontro celestial com Jesus: “Da mesma forma que agora somos como o homem terreno, algum dia seremos como o homem celestial” (1Co 15.49) e

“(…) ele ainda não nos mostrou o que seremos quando Cristo vier. Sabemos, porém, que seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele realmente é” (1Jo 3.2).

Mas não por isso devemos desprezar nem menosprezar o caráter acumulativo dos valores do evangelho transferidos em algum nível às sociedades e ao mundo. Mais do que isso, temo que dificilmente poderemos cumprir adequadamente o aspecto mais específico (ou restrito) da tarefa se perdermos de vista e não trabalharmos para alcançar também o mais amplo (ou acumulativo). E não poderemos cumprir o encargo se não nos dermos conta de que um objetivo pode e deve nos levar também ao outro, e vice-versa. Isso mesmo que haja vaivéns de aceitação ou rejeição do evangelho em tempos e sociedades diversas. Seja como for, devemos procurar não limitar Deus, nem a maneira de ele alcançar seus propósitos.

Por exemplo: não devemos menosprezar quando Jesus se dá a conhecer ainda que, em alguns contextos, não haja resposta em conversões. Isso porque “pelo menos saberão que tiveram um profeta no meio deles” (Ez 2.4-5; 33.32-33). Às vezes, tudo começa por proclamar a Cristo, mesmo que [o evangelho] pareça cair em saco furado. Contudo, é um primeiro passo para comunicar ou transmitir a imagem de Deus, para permitir que sua presença comece a permear uma sociedade. É o que também chamamos de efeito “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5.13-14). Assim, o mundo passa a assumir certos valores e considerá-los como universais, sendo que [,na verdade,] eles têm sua origem em princípios bíblicos – o reconhecimento da dignidade de toda vida humana expresso nos “direitos humanos”, por exemplo. Consciente ou inconscientemente, o homem de hoje percebe, melhor do que nunca, o aroma de qualidade divino que se desprende de toda vida humana.[3] E isso acontece apesar de, nos últimos tempos, a proclamação de novos “direitos humanos” começar a eclipsar o que eu chamaria de “direitos divinos”, a saber, o direito de Deus de estabelecer onde estão os limites. Sem um equilíbrio entre ambos os direitos, corre-se o risco de naufragar. Contudo, ainda que certa parcela da humanidade esteja renegando e se afastando de certos valores cristãos que um dia sustentaram em suas terras – o que dilui gradativamente a imagem divina no homem –, há um efeito acumulativo nesses vaivéns que não podemos (nem devemos) ignorar.

Por que isso é importante? Frente à ideia tradicional de que a missão é ir e converter as almas, penso que descobrir ou reafirmar também o aspecto acumulativo da tarefa global é importante, importantíssimo. Isso, em si, resulta em um objetivo muito mais amplo e, portanto, mais difícil, mas também entusiasmante. Explico: se a missão somente consiste em saber quantos aceitaram o evangelho ao longo da história, por exemplo, basta olhar o livro de Patrick Johnstone, The Future of the Global Church, para nos surpreendermos. Na obra, ele analisa com trilhas estatísticas, gráficos e mapas o passado, o presente e o futuro do cristianismo global. A partir daí, percebemos que a imensa maioria da humanidade ficou e ainda está à margem de uma “conversão”, por mais que as cifras sobre o número de “cristãos” (boa parte são os que  chamamos de nominais) no mundo sigam sobressaindo-se em relação a outros grupos religiosos. Se o que buscamos é o evangelho dos números, da quantidade de adeptos, de quantos conseguimos recrutar – por mais que alguns gostem de inflar as cifras de forma “evangelástica” (prática não pouco difundida entre os nossos) –, os números da missão global deixam bastante a desejar. Claro, os dados são esperançosos e emocionantes, mas, ainda assim, se apenas nos centrarmos nesses números, penso que estamos minimizando, quando não subestimando, o verdadeiro impacto divino e, portanto, depreciando sua glória.

Trazer isso à tona é importante pois, caso contrário, apenas nos dirigiremos aos campos que sejam “rentáveis” em números, deixando de atender as áreas que no presente são estéreis. Em tal caso, estaremos ignorando o mandato de “encher a terra”. Afinal, o que há para dizer dos tempos do Antigo Testamento? Fora o povo de Israel e algumas exceções como Enoque, Noé, Jó, Nínive etc., quantos nesses tempos abraçaram realmente a fé? Em épocas mais caracterizadas por toda classe de idolatria destrutiva, escravidão de grande número de pessoas, extermínios, genocídios e por aí vai, que influência exerceram os padrões da imagem divina?

Apesar disso, se avaliarmos [ao longo da história] em que grau a humanidade reconhece valores como respeito aos diferentes, solidariedade para com os menos favorecidos, liberdade e justiça social, valor igualitário da vida de cada individuo etc., estamos melhor, muito melhor que antes. Não digo que o mundo ou nossa sociedade estejam vivendo plenamente aquilo que, em teoria, aceitam como virtude. Antes, contudo, nem sequer reconheciam esses valores. Tampouco digo que não haja retrocessos – o que dizer da secularização de um ocidente que renega a contribuição cristã em seu avanço, e, portanto, rejeita cada vez mais os “direitos divinos”? O contraditório é que a secularização é fruto, em parte, do desenvolvimento de muitos princípios que se originaram no evangelho e, portanto, na missão. E esses “avanços” em si foram possíveis por conta da proclamação do evangelho de conversão, ou seja, pela extensão da missão tradicional.

Só que não devemos ver os desafios de hoje apenas de forma negativa, como uma destruição implacável dos valores cristãos. Chegaremos a um ponto de retorno. Quando a onda arrebenta na praia, segue perdendo ímpeto até frear e regressar ao encontro do mar, até que outra onda avança e a ultrapassa. Há e haverá avanços – como as ondas, que se sobrepõem, se acumulam, e que, com a alta da maré, não quebram sempre no mesmo lugar, e potencializam um avanço indefectível do mar sobre a linha da praia. Creio que, se o Senhor não vier antes, o atropelo no reconhecimento dos direitos divinos chegará a um ponto limite, a um ponto de culminação e de retorno, onde a onda retrocederá, e cederá seu lugar a um novo tempo de reconversão e melhora. Não foi assim quando a perseguição romana precedeu o triunfo da igreja? Quando a Idade Média precedeu a Reforma? Quando o Iluminismo teve lugar antes dos grandes avivamentos? Depois das duas guerras mundiais, não houve o despertar de uma nova paixão na igreja mundial por completar a tarefa global?

Sou muito consciente da escola de interpretação que diz que tudo irá piorar. Eu cresci nela. Em muitos aspectos, ela tem razão. Mas me chama a atenção que a Palavra nos diz também: “Não viva saudoso dos ‘bons e velhos tempos’; isso não é sábio” (Ec 7.10).

Assim, não se trata de renegar a forma tradicional de fazer a obra, mas de não ficarmos travados nisso, e não deixarmos escapar a verdadeira dimensão e glória da missão em termos de Deus. Mesmo que isso possa soar muito pretensioso, na realidade, trato de encaixar uma compreensão mais humilde da missão, onde o homem seja menos protagonista (e tenha menos espaço para se vangloriar), e Deus, reconhecido como o verdadeiro herói da tarefa. É sua missão, a Missio Dei, e, portanto, devemos dar a glória somente a ele, e, dessa forma, encontrar razões ainda mais elevadas, dilatadas e motivadoras para levar adiante a tarefa com maior afinco!

A imagem: a projeção da sua glória

Necessito ser muito incisivo, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado, para poder transmitir de forma clara o que tento comunicar. Por isso, antes, é necessário “desmontar” para logo poder recompor, recolocar tudo em seu lugar, encaixar corretamente. O que digo é que a missão não é sobre conversões e números – ainda que isso seja parte legítima e imprescindível dela, e tenha motivado a propagação da imagem de Deus em muitos contextos. Mas o objetivo último da missão é transmitir sua imagem [a de Deus] e glorificá-lo. O resultado – glorificá-lo – é a irrigação de sua imagem em mais e mais vidas, em mais e mais sociedades.

O evangelho da imagem é, sobretudo, a “mensagem a respeito da glória de Cristo, que é a imagem de Deus”(2Co 4.4). À medida que glorificamos a Deus, que o fazemos resplandecer, que damos a conhecer “como é admirável aquele que os chamou” (1Pe 2.9), nessa medida, o mundo o tomará como exemplo, e, nessa medida, o mundo foi e será transformado por ele. Nesse sentido, quem há no mundo hoje que exalte a figura de Jesus? Muitas vezes, o que se exalta dele são aspectos que não incomodam e que reafirmam a negativa em aceitá-lo como aquele que tem o direito sobre todas as vidas. Exalta-se o pó grudado nos pés humanos, não o resplendor divino na abóboda celeste. Quando nós, aqueles que supostamente o glorificam, reduzimos sua incidência ao mundo das cifras, não estaríamos levantando mais pó, pó que obscurece ainda mais seu resplendor?

Como se glorifica a Cristo? Dando-o a conhecer, honrando-o. Aqueles que o reconhecem como Salvador e Senhor de suas vidas, que o obedecem, o servem, o refletem em seus afazeres, o louvam e o proclamam, são esses os que o glorificam. Mas a glória de Cristo e de seu evangelho não se reduz a isso, nem sequer depende disso. Ele e as boas-novas sobre si mesmo são, realmente, gloriosas, exista ou não resposta do homem. O evangelho não é o evangelho dos redimidos, nem dos convertidos, mas, sim, da glória de Cristo, por mais que os redimidos sejam como joias na coroa de sua glória. A glória de Jesus – segundo o evangelho – não é algo outorgado ou segurado pelos homens, é dada pelo Pai e inerente a ele: “Agora, Pai, glorifica-me e leva-me para junto de ti, para a glória que tive a teu lado antes do princípio do mundo” (Jo 17.5). Tal glória pertencia a ele, mas a ela não se apegou (Fp 2.6).

Mas, sobretudo, em que consiste essa glória? Em que ele “é a imagem de Deus” completa (2Co 4.4) e quem a transmite completamente! Portanto, tudo aquilo que sirva para dar a conhecer essa imagem e transmiti-la à humanidade é missão. E alguém dirá: esse é um termo muito amplo e vago. Pois bem, tão “amplo” e “vago” como as Escrituras. Não é que não se possa especificar e concretizar mais, mas, ao nos limitarmos a aspectos mais pontuais, corremos o risco de mutilar sua verdadeira dimensão e alcance, ficando aquém.

É evidente que, após a queda, a imagem ficou deslocada. Portanto, a tarefa deveria ter mudado, ou pelo menos alguns de seus requisitos. Por exemplo, o único objetivo agora deveria ser um chamado ao arrependimento e à conversão. Mas, no princípio, até chegar a Abraão, na época pré e pós-diluviana, o requisito continua sendo o mesmo. Enoque adverte sobre o juízo (Jd 14-15), e Noé “proclamava a justiça” (2Pe 2.5), e supomos que fariam o conhecido chamado ao arrependimento dos povos. Mas a consigna divina se repete: “Sejam férteis e multipliquem-se. Encham a terra” (Gn 9.1, 7), “pois eu criei o ser humano à minha imagem” (Gn 9.6). Assim, mesmo que o arrependimento seja um requisito, um trâmite para regressar a, ou para resgatar a imagem divina no homem, a tarefa encomendada continua sendo “enchei a terra da imagem de Deus” – se me permitem dizer nesses termos. Essa imagem implica, no mínimo, segundo se desprende do relato bíblico: responsabilidade frente à criação (Gn 1.26; 2.15), igualdade na dignidade do homem e da mulher (1.27; 5.2), respeito pela vida (9.6)… Mas, sobretudo, comunhão com Deus (1.26, 28), conhecimento de seus desígnios (2.16-17) e dependência do Criador para a vida eterna (3.21-22). Essa imagem é latente em todos os homens, mas letárgica em tantos casos, inclusive danificada irremediavelmente pela queda e a forma como o homem se afundou no mal depois da queda; deve ser de novo anunciada a todos os homens, e em algum grau salpicada sobre toda a humanidade.

Para outro exemplo, basta ler o livro de Erich Sauer (mesmo que não haja razão para comungar com seu enfoque dispensacionalista) – The Dawn of World Redemption [A Aurora da Redenção do Mundo] – para nos deleitarmos e admirarmos como Deus preparou e bordou o tecido do Antigo Testamento, um plano de incrível virtuosismo e clareza, para preparar e aplanar a vinda do Redentor e da redenção. Ou seja, para preparar a recuperação da “imagem”. Esses detalhes da revelação bíblica no Antigo Pacto são como pérolas de um colar unidas por um único fio “condutor”. Um único propósito, uma única mensagem e uma única tarefa!

Contudo, quando li a primeira vez o Antigo Testamento, e tendo lido e relido mais uma vez e outra vez, e me perguntando pelo destino de todos os povos que viveram alheios a tal conhecimento, hoje continuo enfrentando o mesmo dilema: quanto da humanidade participou do encontro direto com Deus na Bíblia? 20%, 10%, 5%, 1%? Se esse encontro apenas teve lugar por meio da conversão consciente e voluntária de cada indivíduo separadamente, podemos intuir pelo relato e pela história que a porcentagem foi realmente muito baixa (mesmo não dispondo de dados quantitativos e verificáveis). Foi, então, o Antigo Testamento, o período do Antigo Pacto, um tempo perdido? Absolutamente não. Porque o que devemos “medir” é o progresso na restituição da “imagem”, como se estivéssemos tratando de um reflorestamento. Nesse sentido, dito período incorporou uma evolução em constante avanço para a reabilitação de dita imagem (em contraposição, isso sim, a outras imagens – ídolos – que rivalizavam com ela para afastar os povos). Este é um exemplo que contribui para desenvolver e esclarecer a ideia: quando Nabucodonosor ou Assuero adoram o nome de Deus e o exaltam acima de outros deuses, ou quando Ciro é chamado de ungido – e se nos atentarmos aos dados que a história ou a Bíblia mesmo nos oferecem –, não podemos dizer que esses personagens se converteram (no sentido neotestamentário e evangélico), mas, sim, que proclamaram a glória de Deus, e, portanto, a “imagem”. Desse modo, contribuíram para o progresso do plano divino até que chegasse o dia em que a “imagem” se encarnaria e abriria as portas para a plena restituição.

A esse respeito, a carta de Efésios, como uma exposição do plano divino que transcende os limites do contínuo tempo-espaço, nos diz que tudo o que Deus faz no e por meio do evangelho é para “o louvor de sua gloriosa graça” (Ef 1.6, 12, 14), para o reconhecimento [de sua glória] e consequente reação de assombro e admiração diante do resplendor de sua glória. Essa glória que se expressa, sobretudo, em sua graça, ou seja, em suas bondades. A eleição, a santificação, a predestinação (qualquer que seja o entendimento), a adoção…, tudo é para que “louvássemos a Deus e lhe déssemos glória” (Ef 1.712).

A propagação da mensagem da verdade, a salvação, o selo do Espírito Santo, a garantia de nossa herança, nosso resgate como sua propriedade… são “para o louvor de sua glória” (Ef 1.13-14). De acordo com Samuel Zwemer, conhecido como apóstolo ao islã, “o principal fim das missões não é a salvação dos homens, mas, sim, a glória de Deus”[4]. O propósito inicial e último é o resplendor de sua glória, de sua imagem. Por quê? Porque só quando sua glória nos deslumbra estamos dispostos a receber todos os benefícios da bondade divina.

A consequente reação frente à percepção de sua gloriosa graça é adorável. John Piper explica assim: “As missões não são o objetivo último da igreja, mas, sim, a adoração. E as missões existem porque a adoração não é o que deveria [ser](…). As missões acabarão, a adoração durará para sempre”.[5] Existimos para louvor da sua glória!

Essa “adoração” ou “louvor” implica detectar essa graça e despertar, assim, os receptores espirituais para poder receber o que a glória traz consigo. A glória de sua graça é aquilo que irradia de Deus em direção aos homens, o que é transferido de sua natureza, o que em teologia se chamam atributos “comunicáveis”, tais como o amor, a justiça, a bondade, a sabedoria, a misericórdia… Assim, à medida que a imagem de Jesus se proclama de forma mais nítida, na mesma medida resplandece sua glória. E, à medida que resplandece sua glória, na mesma medida os seres humanos podem receber essa aspersão de bondades que a divindade tem reservada para eles. Dito de novo, nas palavras da carta aos Efésios: Deus nos mostra sua glória em Cristo pois, “nas eras futuras, Deus poderá apontar-nos como exemplos da riqueza insuperável de sua graça revelada na bondade que ele demonstrou por nós em Cristo Jesus” (Ef 2.7).

A manifestação gloriosa de sua graça é o desencadeador da efusão da bondade divina! Alguém poderia perguntar: para que Deus necessita de tantos elogios, é megalômano? O ponto é que ele não precisa “desses elogios”. Nós é que necessitamos! Isso porque apenas à medida que louvamos a glória de sua graça, à medida que descobrimos e anunciamos suas virtudes e bondades, essas podem ser transferidas a nós. Apenas olhando para o sol com o rosto descoberto é que ele pode bronzear nosso semblante! “Portanto, todos nós, dos quais o véu foi removido, podemos ver e refletir a glória do Senhor, e o Senhor, que é o Espírito, nos transforma gradativamente à sua imagem gloriosa, deixando-nos cada vez mais parecidos com ele” (2Co 3.18).

A bênção abraâmica

Frente ao caráter aparentemente centrado apenas em Israel que rapidamente toma o relato do Antigo Testamento, a promessa da bênção abraâmica a todas as nações se sobressai em Gênesis, do capítulo 12 em diante, como o lugar onde se reafirma sem fissuras a vocação de incluir toda a humanidade no projeto redentor. Quais implicações existem em “o abençoarei e (…) por meio de você, todas as famílias da terra serão abençoadas”? (Gn 12.2-3; 13.16; 15.5; 17.4-7, 16; 18.17-18; 22.17-18; 26.3-4, 24; 28.14; 32.12; 35.11). Isso significa que, por meio da semente, que é Cristo, abre-se a porta de acesso à promessa para os gentios (Gl 3.8-9, 14, 16, 29). Mas, a bênção aqui mencionada se reduz apenas àqueles que abraçam a fé de Cristo nas nações, ou há um aspecto transcendente aos convertidos e inclui, de alguma maneira, todos os coletivos humanos? O que dizer, por exemplo, de Ismael? Deus promete abençoar sua descendência. Refere-se à conversão? “Quanto a Ismael, também o abençoarei, como você pediu. Eu o tornarei extremamente fértil e multiplicarei seus descendentes. Ele será pai de doze príncipes, e farei dele uma grande nação” (Gn 17.20; ver também 16.10). Afinal, Deus é Deus apenas dos judeus? Não é também Deus dos gentios [no grego: ethnos]?” (Rm 3.29). Seja qual for o sentido que dermos aqui às palavra hebraicas mishpâchâh (Gn 12.3) ou gôy (Gn 17.4-7), e, na Grande Comissão (Mt 28.19; ver também Rm 4.17), à palavra grega ethnos – pode ser traduzida como “nação”, “família”, “grupo cultural” ou “étnico” –, o que parece claro é que esses termos se referem a coletivos inteiros.

A bênção para os judeus no AT apenas abarca aqueles que se “convertiam”? Ou havia aspectos que incluíam todo o povo? A Palavra não fala do povo judeu atual dizendo “as raízes da árvore são santas” (Rm 11.16) se referindo à totalidade de Israel sendo que a maioria havia desprezado o evangelho? E se Deus é, da mesma forma, Deus dos gentios, não haverá aspectos da bênção aos gentios que incluam ainda os que rejeitaram a fé? O que nos diz o conceito de graça “comum” ou “geral”? É a graça que se estende a todas as criaturas (graça comum universal), aquela que se aplica a toda a humanidade (graça comum geral), que cobre as sociedades que se vinculam aos valores do evangelho, incluindo aqueles que não abraçam a fé (graça comum do pacto[6]).

Quando Jesus nos encarrega na Grande Comissão de “discipular as nações”, está pensando em toda a população dessas nações, ou apenas no grupo maior ou menor que confessa a Deus dentro delas? E se faz referência à conversão de toda uma sociedade, se cumpriu ou vai se cumprir quando a nação inteira tiver sido discipulada? Seria como afirmar que todos os indivíduos se converteram de coração [genuinamente] – sem considerar o tempo do regresso do Messias à terra, claro. Podemos incluir os casos em que um rei proclamou o cristianismo como religião oficial como uma “conversão” de toda a nação? Não é necessário dizer que muitos que fizeram isso não tiveram nada a ver com uma verdadeira experiência de fé em Cristo, nem um encontro vital com ele. Sendo assim, com respeito à tarefa que Jesus encomenda a nós de discipular nações inteiras, ou a promessa de abençoar todas as famílias da terra, quais são os aspectos que podem incluir tanto os que professam a Cristo quanto os que não o fazem?

Não estou me referindo ao universalismo.[7] O que quero dizer é que tanto os convertidos quanto os efeitos redentores sobre toda a população, ainda que certa parcela dela não professe a fé cristã, ambos são aspectos da bênção e da Grande Comissão. Se pela presença de cristãos e sua incidência na sociedade uma nação avança, não é isso uma bênção para ela? Se o avanço das ciências – entendidas como a decodificação das leis de um universo desenhado pelo Criador – destaca um Isaac Newton (1643-1727), não é uma bênção para essa nação e para todo o mundo? Se um Johann Sebastian Bach (1685-1750) deslumbra o mundo com inumeráveis peças de louvor, não faz brilhar a glória de Deus? Se na abolição do comércio de escravos se sobressai um William Wilberforce (1759-1833), e se com uma ética protestante de trabalho há um efeito positivo para a economia, como aponta Max Weber (1864-1920), isso não representa uma bênção para essas nações?

Se um William Carey (1761-1834), além de pregar o evangelho na Índia, foi um notável botânico (duas plantas hoje levam seu nome), ajudou a introduzir a máquina a vapor, a imprensa, as bibliotecas e um sistema bancário na Índia, fundou o primeiro jornal e a Sociedade Agrícola da Índia, abriu hospitais para a lepra, desenvolveu os departamentos de bengali, sânscrito e marata da Universidade de Calcutá, introduziu os estudos de astronomia e promoveu a mudança da legislação sobre a execução das mulheres com seus maridos falecidos…, não foi uma bênção para essa nação? Inclusive, por tudo isso, foi expulso das colônias. E por quê? Por assumir que o homem foi criado à imagem de Deus, e que a tarefa consiste em restituir essa imagem, não em explodi-la! Para ele, o evangelho era tanto apresentar Jesus como o Salvador das almas como anunciá-lo como o Senhor das vidas.[8]

Devemos buscar a bênção tanto para o povo de Deus quanto para os povos do mundo. Inclusive para aqueles que nos oprimem! Não nos chama a isso o Senhor, por meio do profeta Jeremias, em sua carta aos exilados? “Trabalhem pela paz e pela prosperidade da cidade para a qual os deportei. Orem por ela ao Senhor, pois a prosperidade de vocês dependa da prosperidade dela” (Jr 29.7). Há, então, um aspecto da bênção e, portanto, do evangelho, que vai além da mera propagação da fé, e que busca o (e se mede pelo) progresso na paz coletiva, por exemplo. Essa paz, por sua vez, é propiciada pela extensão e prática de valores evangélicos (como a oração, nesse caso), fato que potencializaria a proliferação da fé.

A “bênção” em Gênesis [no hebraico: berâkâh] significa simplesmente abundância, plenitude, prosperidade. Ilustro seu significado com esta história. Em turco, existe a mesma expressão [bereket] procedente do árabe [barakat]. Anos atrás, me correspondendo com a filha de um colaborador global na Espanha que estava estudando no Texas e cursava uma disciplina em turco, na mensagem em espanhol, acrescentei uma despedida em turco: Rab seni bereketlesin [Que Deus te abençoe]. Na verdade, trata-se de uma verbalização do substantivo bereket que só os cristãos na Turquia usam. O caso é que a irmã perguntou a um professor turco, pois não havia entendido a expressão. O professor respondeu: “Ele está desejando que você tenha muitos filhos”. A irmã, que não tinha nem namorado, ficou um pouco surpresa. O fato é que o professor de turco estava dando o sentido literal – “abundância de…” –, e ele supôs que de filhos.

Mas esse é o significado de berâkâh em Gênesis. Muitos filhos, inclusive muitas nações: “pai de numerosas nações” (Gn 17.4-6), “mãe de muitas nações” (Gn 17.16). E por isso a bênção é oferecida a “todas as nações da terra” (Gn 18.18; 26.4)[9]. As “muitas nações” que procederiam de Abraão e Sara não são apenas sua descendência biológica (a que se vinculam hoje, por exemplo, tanto judeus quanto árabes), mas, como Paulo revela, todos aqueles que abraçam a promessa são descendentes espirituais de Abraão: “(…) toda a descendência de Abraão, não somente os que vivem sob a lei, mas todos que têm fé como a que teve Abraão. Pois ele é o pai de todos que creem” (Rm 4.16). E mais: “(…) Deus fez a promessa a Abraão e a seu descendente. Observem que as Escrituras não dizem ‘a seus descendentes’, como se fosse uma referência a muitos, mas sim ‘a seu descendente’, isto é, Cristo” (Gl 3.16). Mas a bênção tem – ou deveria ter – efeitos colaterais também na sociedade inteira. E é aí também que devemos ponderar.

Não estou falando aqui nem de uma mera interferência cristã na política (ainda que legítima), nem de buscar uma simples prosperidade material (ainda que isso possa ser outro dos efeitos colaterais)[10], nem de reduzir a tarefa global a uma ajuda social (ainda que isso seja parte dela). A bênção, como expressa no Novo Testamento, creio que nos ajuda a mirar no alvo.

Em Efésios, quando se estabelece que o objetivo da tarefa é “o louvor de sua glória” (Ef 1.6, 12, 14), o texto começa dizendo: “Todo louvor seja a Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou em Cristo com todas as bênçãos espirituais nos domínios celestiais” (Ef 1.3). Aqui se enunciam a “bênção” e a “glória” como os objetivos da tarefa global, que, por sua vez, querem dizer a “completa medida da estatura de Cristo” (Ef 4.13), ou seja, a realização plena da imagem. A “bênção” que se menciona aqui e em todo o NT em grego é eulogia, da qual procede nosso vocábulo “elogio” (em português: exaltar as virtudes e qualidades de alguém, com ou sem fundamento). Eulogeo se forma da união de eu (bem) e lego (dizer), ou seja, eu bendigo, daí vem o nosso  “abençoar”. Abençoar é dizer algo bom de alguém, expressar (comunicar) um bem. Esse é também o propósito divino, transmitir a nós todos os seus bens. Continuando com a carta de Jeremias: “‘Porque eu sei os planos que tenho para vocês’, diz o Senhor. ‘São planos de bem, e não de mal (…)’” (Jr 29.11).

Então, o objetivo da tarefa global é a recuperação da “imagem”, a manifestação de “sua glória” e a extensão da “bênção” aos povos. Em nível individual, isso é entendido pelo reencontro pessoal com Jesus (a conversão e discipulado das almas); em nível coletivo, pelo tratamento oferecido às nações por Jesus (a reconciliação e bem-estar dos povos); e, em nível global, pelo redescobrimento do ser humano completo que é Jesus (a difusão da imagem e do valor da vida humana). Tudo isso em prol de um mundo que desarraigue a morte espiritual, a injustiça social e a desumanização geral, e, mesmo que tudo isso não seja plenamente possível até que Jesus venha, não devemos por isso abrandar os esforços.

O discipulado das nações abrange todas essas áreas, não importa se o que acrescentamos é um grão de areia ou uma profusão de melhoras para o mundo. Precisamente porque o grão de areia é tão ou mais importante que a profusão, senti necessidade de insistir no tema, pois, em um mundo cada vez mais centrado em números (de likes, de seguidores, de comentários; números todos eles de aparência), parece que o que não se pode destacar com cifras não importa. Estou pensando em contextos onde os crentes são uma esmagadora minoria – na Turquia, por exemplo, são 0,01% da população; cada um deles, no entanto, é como um pequeno espelho voltado para Jesus, refletindo sua imagem e glória tanto como os demais. Em vez de enfatizar uma visão que menospreze seu número, devemos potencializar uma visão que renove suas forças e valorize seus esforços. Esse grão de areia, que soma, pode chegar a ser como a reverberação de uma gota que acaba partindo a rocha, como a unção que apodrece o jugo (Is 10.27). Esse é o primeiro passo no efeito acumulativo que acaba transformando as sociedades! Toda grande viagem começa com um primeiro passo, e, se desencorajamos ou menosprezamos esse primeiro passo, esquecemos a meta a ser alcançada![11]

Desde a Grande Depressão (1929), o mundo do livre mercado desenvolveu dois conceitos (chamados “liberais”) que hoje definem as nações: os fundamentos do “estado de direito” (o império é o da lei) e do “estado de bem-estar” (o estado assume a garantia das necessidades básicas: educação, saúde, salários mínimos, subsídios etc.). Hoje em dia, acrescenta-se a sustentabilidade a esses propósitos. A tudo isso se chegou pela secularização das instituições, secularização que se iniciou com a liberalização dos “leigos” frente ao “clero” a partir da Reforma, e chegou até a declaração dos “direitos humanos” em 1948. Contudo, como tudo neste mundo, tal liberalização teve um efeito de pêndulo (efeito que não imaginavam os reformadores), até se chegar à negação de todo “direito divino” ([pretensamente] dizer o que está bem e o que está mal). Tal onda quase chega a nos afogar. Todavia, a onda já quebrou na praia, e temos de submergir até a crista da onda que está a ponto de chegar: a de recuperação e celebração da imagem de Jesus no mundo, seja pelo avanço da tarefa global, seja pela segunda vinda de Cristo.

Enquanto isso, busquemos ser esses pequenos – ou grandes – espelhos voltados a Jesus. Porque a origem, modelo e meta da tarefa global é Jesus. Nada mais e nada menos!

O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

Sobre o autor

Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica[12] reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

 

[1] As citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Transformadora (NVT) (N. do T).

[2] Na verdade missão foi um termo posto em uso pelos jesuítas, e estava intimamente vinculado com a expansão colonial do Ocidente.

[3] Em contraste com épocas passadas, costuma-se dizer que Gengis Kan massacrou tantos milhões de seres humanos em suas campanhas quantos foram mortos sob o domínio de Hitler na segunda guerra mundial: 40 milhões! Hoje, esses acontecimentos seriam “crimes contra a humanidade”. Progredimos, pelo menos, nas definições.

[4] Samuel Zwemer, Thinking Missions with Christ, London: Marshall, Organ & Scott, 1934, p. 67.

[5] Piper, J., Let the nations be glad, Gran Rapids: Baker Books, 1993, p. 11.

[6] H. Kuiper, Calvin on Common Grace, Oosterbaan & Le Cointre, 1928, p. 192.

[7] Em termos de fé, o universalismo é a doutrina que postula a salvação universal de todos, sejam crentes ou não.

[8] Por conta da defesa legítima das culturas indígenas, alguns podem criticar a gestão de Carey pela prática de colonialismo ou imperialismo religioso. Mas os herdeiros de seu legado na Índia não opinam dessa forma; veja, por exemplo: Mangalwadi, Vishal & Ruth, The Legacy of William Carey: A Model for the Transformation of a Culture, Crossway, 1999.

[9] Sem entrar em um estudo detalhado do enfoque das nações no Antigo Testamento, sinto necessidade aqui de recordar duas coisas. Frente ao equívoco de pensar que Deus escolheu o povo de Israel e rejeitou os outros, vale a pena relembrar que foram escolhidos como “o servo” para abençoar as nações: “Para você, é muito pouco ser o meu servo para restaurar as tribos de Jacó e trazer de volta o remanescente de Israel. Farei também com que você seja uma luz para os gentios, para que você seja a minha salvação até os confins da terra” (Is 49.6 versão NAA). Nessa linha, Deuteronômio nos diz: “Quando o Altíssimo distribuiu a terra entre as nações, quando dividiu a humanidade, fixou os limites dos povos, de acordo com o número dos filhos de Israel” (Dt 32.8). Na verdade, todas e cada uma das famílias de Israel foram desenhas para abençoar, no mínimo, uma das famílias da terra.

[10] Os negócios administrados com princípios cristãos constituem outra maneira de estender a benção às nações. Seja pelo aporte econômico para a sociedade, seja pelo ambiente de respeito e promoção da justiça: os trabalhadores recebem bom tratamento e salários dignos. Demonstram, além disso, uma gestão ética dos negócios, contrariando a tendência à armadilha da corrupção. Produzem, ainda, riquezas, fomentando o crescimento saudável da economia. Além disso, geram recursos para a obra: “Em tudo vocês serão enriquecidos a fim de que possam ser sempre generosos. E, quando levarmos sua oferta para aqueles que precisam dela, eles darão graças a Deus” (2Co 9.11). Dessa forma, dignificam o homem (refletem a imagem), trazem prosperidade (estendem a bênção), e produzem ações de graças (exaltam a glória). De outra forma, em países fechados, podem proporcionar cobertura legal para os obreiros, assim como um meio de subsistência para os crentes naturais do país que facilmente perdem seus trabalhos por causa da fé.

[11] Algo similar constata Henry Martyn (1781-1821), precursor entre os protestantes na evangelização de muçulmanos: “Inclusive se nunca chegar a ver um só nativo convertido, Deus pode usar minha paciência e persistência em [estender] a Palavra, para que seja de ânimo a futuros [obreiros globais]” (Citado em Samuel Zwemer, Islam: A Challenge to Faith, New York, SVMFFM, 1907, p. 197).

[12] Que não procede das minorias étnicas cristãs (como gregos, armênios ou siríacos). Seus membros são, em sua maioria, turcos convertidos à fé cristã oriundos de um panorama muçulmano.

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