Uma hermenêutica comparativa dos textos de Lutero e Calvino quanto aos judeus e muçulmanos

Os textos dos reformadores promovem a paz inter-religiosa? Quanto e como somos influenciados por eles?

Charles Amjad-Ali

Preâmbulo
Por Marcos Amado

Justino, o Mártir (m. 165 d.C.), considerado santo por cristãos ortodoxos, católicos e anglicanos, foi um respeitado apologista do segundo século, estimado por Irineu, Tertuliano e outros teólogos dos primórdios do cristianismo. Ele defendia “a doutrina do logoi spermatikoi (as Sementes do Logos) em todos os seres racionais. Essa semente se revelou na sua plenitude em Cristo (Apologia I.5), que ‘era e é o Logos que habita em cada homem’ (Apologia II.10). ‘Toda a raça humana tem uma porção em Cristo, o primogênito de Deus’ (Apologia I.46)”.[1]

São palavras surpreendentes quando se tem em mente a atitude antagônica que nós, cristãos evangélicos brasileiros, temos tido em relação ao “outro’, seja o “outro” de outra religião, cultura ou cor, ou mesmo em relação àqueles que, declarando-se cristãos, possuem posições teológicas supostamente não-ortodoxas. Será que agiríamos da mesma maneira se realmente crêssemos que o Logos habita em cada homem e mulher, e que toda a raça humana tem uma porção em Cristo, não importando sua cor, religião ou cultura?

Tendo em vista essa realidade, o presente artigo é um convite à reflexão acadêmica sobre um assunto de suma importância: a influência dos reformadores sobre a maneira como os cristãos olham para o “outro” no século 21, tendo como base o que Lutero e Calvino escreveram sobre muçulmanos e judeus. Libertos do desejo de polemizar para ganhar popularidade, decidimos publicar esse artigo, pois é parte da missão do Martureo trazer perspectivas sobre missões mundiais nos tempos atuais. E, quem sabe, ajudar a abrir os horizontes para o que faremos para o Reino do Senhor Jesus nos próximos anos.

O autor, ex-muçulmano paquistanês que aceitou o Senhor Jesus como Salvador, é pastor luterano e professor em diferentes faculdades e universidades ao redor do mundo. Como cristão luterano e ex-muçulmano, ele está em uma posição especialmente privilegiada para nos conduzir por esse assunto espinhoso e sensível.

No texto, alguns leitores menos versados nos escritos desses reformadores certamente farão descobertas inusitadas. Ambos entendiam que o islã era o julgamento de Deus sobre um cristianismo corrupto e deturpado; por isso, o islã estava sendo o “chicote” de Deus ou “a vara da ira de Deus”. Já Lutero, entendendo a importância de os cristãos conhecerem mais profundamente sobre os seguidores de Maomé, foi fundamental para que houvesse uma nova tradução do Alcorão para o latim.

Como se verá no texto, há uma tentativa de traçar paralelos entre os posicionamentos de Maomé e Calvino, algo bastante difícil de concebermos, mas que é apresentado pelo autor com argumentos um tanto quanto plausíveis. Ainda que não concordemos, pode abrir janelas para o diálogo e, por que não, para mudanças (ainda que pequenas) em nossas próprias perspectivas.

 

  1. “Calvin’s Mecca” [“A Meca de Calvino”] – uma obra de arte controversa

Como parte das celebrações do 500º aniversário do nascimento de Calvino em 2009, uma obra de arte especial foi apresentada em Dordrecht, Holanda. Local do Sínodo de Dort em 1618-19, Dordrecht possui um significado especial para a teologia reformada e para a própria Reforma. Aqui o calvinismo e seus cinco pontos (veja TULIP[2]) foram estabelecidos como a religião oficial da Holanda contra o arminianismo. A obra foi encomendada pela cidade a um artista marroquino, Aziz Bekkaoui, e foi intitulada “Het Mekka van Calvijn” [A Meca de Calvino], um cubo de vidro reflexivo que aparentemente reproduz a Kaaba[3]. Ela mostrava uma ligação entre Calvino e o islã visivelmente ausente em trabalhos acadêmicos sobre Calvino, teologia reformada e a Reforma em geral. Esse monumento gerou emoções profundas, controvérsias e questionamentos na Holanda (e na Europa), e gerou ataques intensamente mordazes ao islã e aos muçulmanos. A identidade calvinista tornou-se de importância crítica no ambiente político e sociocultural altamente secularizado da Holanda. O então primeiro-ministro[4] chegou até a confessar abertamente em um discurso político que era calvinista – isso em um contexto em que confessar abertamente ser cristão era uma postura pública contestada. Um dos principais questionamentos que surgiram durante essa controvérsia foi: o que exatamente Calvino e a Reforma têm a ver com o islã?

 

2. O ressurgimento contemporâneo do islã: um desafio epistemológico[5]

Após o colapso da União Soviética em 1991, o islã emergiu como o novo inimigo binário. A mais conhecida articulação a esse respeito foi “The Clash of Civilizations?” [“O Choque de Civilizações?”], de Samuel Huntington.[6] Desde então, infelizmente, essa expressão adquiriu universalidade onipresente com pouca reflexão sobre sua exatidão histórica, pleno significado e implicações.[7] Especialmente na Europa, o islã como o novo inimigo do Ocidente é destacado regularmente em jornais e revistas, também em conferências em universidades e centros eclesiais. Esse debate está fundamentado na convicção epistemológica de que a religião é, na melhor das hipóteses, uma superstição residual que será erradicada com o pleno florescimento da ciência e da razão, e também é considerada a fonte de todos os conflitos e violências dentro e entre as sociedades. É irônico, portanto, que a identidade cristã do Ocidente seja instantaneamente defendida sempre que se lida com a “questão muçulmana”.[8]

Como novo inimigo, o islã se impôs nas arenas política e econômica, bem como na consciência sociocultural e no discurso do Ocidente. Isso representa uma ameaça à racionalidade científica ocidental, e levanta uma questão no Ocidente sobre o seu dever de levar a sua identidade cristã a sério. O islã representa um problema de segurança, e desafia as conquistas sociopolíticas baseadas em direitos no Ocidente. Esses padrões são cada vez mais ameaçados pela reversão a uma “ética de sobrevivência”, ou seja, os direitos são suspensos em face dessas ameaças. O islã também desafia a própria sobrevivência do moderno estado-nação ocidental – um produto da Reforma finalizada nos Tratados de Westfália (1648).

O debate “Het Mekka van Calvijn” [A Meca de Calvino] trouxe não apenas simbolicamente essas questões à tona, mas exigiu também um olhar crítico sobre a Reforma em relação ao islã. Epistemologicamente, essa questão foi conscientemente, quase universalmente, ignorada. Isso, a despeito da percepção da ameaça generalizada do islã, de seu profundo impacto e grande significado na época da Reforma. Trata-se de uma verdadeira ironia uma vez que parte da antipatia e dos sofismas contemporâneos contra o islã são emprestados de forma acrítica diretamente do vitríolo da Reforma.

 

3. Crise de significado e o surgimento da nova episteme

A Reforma causou mudanças drásticas com consequências radicais na Europa. Ela desafiou completamente o aparente sistema político arquitetônico singular do Sacro Império Romano e a ortodoxia determinante do cristianismo, controlada pelo papado e pela Igreja Católica. O seu encolhimento levou ao surgimento de autoridades religiosas e morais plurívocas. Os bispos adquiriram autoridade eclesial de governante local, enquanto os príncipes adquiriram o poder político local de “imperadores”, precipitando o surgimento de estados-nação denominacionais principescos por meio dos Tratados de Westfália. Isso foi conseguido com a reconfirmação da cláusula crítica cuius regio, eius religio (cuja região/reino, sua religião) da Paz de Augsburgo (1555),[9] enquanto, ao mesmo tempo, reivindicava-se epistemologicamente a separação de “Igreja e Estado”.[10] Esse último foi, então, lançado como um requisito para aceitabilidade e validade epistemológica na ordem mundial política e religiosa contemporânea.

A Reforma não mudou apenas as dimensões religiosas, teológicas e espirituais, mas também impactou o discurso filosófico e político. Politicamente, levou a tendências nacionalistas, e, filosófica e religiosamente, a uma elevada individualização. Essas produziram, em seu rastro, a Teoria Política Liberal com o locus politicus vinculado a uma individualidade competitiva e, na religião, o imperativo da fé e das conversões pessoais individuais.

Foi um período de grande repensar, não apenas das doutrinas existentes, da teologia e compreensão da fé cristã, mas também da epistemologia teológica, bem como da natureza sociopolítica da igreja. Essas posições evoluíram ao longo de 1.100 anos, desde o início do século 4 e o Édito de Milão em 313, a subsequente “conversão de Constantino” e, finalmente, o cristianismo como a religião imperial oficial sob Teodósio, em 380. Essa sequência de eventos proporcionou a base epistemológica para a teologia, a ética, a virtude social etc.

Tudo isso nós aprendemos em nossa formação teológica e doutrinária e em nossa história da igreja. O que tendemos a ignorar, no entanto, é o papel crítico do islã durante a época medieval e, particularmente, durante a Reforma.

 

4. O surgimento do islã e seu desafio para a cristandade

Nascido no início do século 7, o islã se expandiu rapidamente, e conquistou quase todas as terras bíblicas, absorvendo três dos cinco patriarcados fundadores (a pentarquia) do cristianismo.[11] Ele controlava a maior parte do Mediterrâneo e do Império Romano do Oriente, bem como grande parte do Império Romano do Ocidente. Ocupou o Norte da África, e governou a maior parte da Península Ibérica por 800 anos; fez incursões na França e na Itália, e atacou o Império Romano do Oriente (Bizâncio, atual Istambul), finalmente tomando Constantinopla por completo em 1453.

A ameaça e o temor do islã foram ainda mais exacerbados durante as cruzadas, que se tornaram uma causa célebre autojustificadora para o cristianismo, e desempenharam um papel muito significativo na maioria dos aspectos da vida medieval europeia. Desde o início, as cruzadas foram colocadas em bases religiosas e espirituais por Urbano II em 1095 no Conselho de Clermont, que as ligou às lutas pela independência cristã na Península Ibérica muçulmana. Resumindo, as cruzadas foram uma série de “guerras santas” cristãs, inicialmente entre 1096 e 1270[12], contra os muçulmanos nas grandes Síria e Palestina e, posteriormente, em outras partes da região. Steven Runciman, um dos maiores historiadores das cruzadas, descreve-as corretamente como “um longo ato de intolerância em nome de Deus, que é um pecado contra o Espírito Santo”.[13] Outros argumentaram que, “em um sentido amplo, as cruzadas foram uma expressão do cristianismo militante e da expansão europeia”.[14] É óbvio que, além da religião, havia interesses políticos e econômicos em jogo. O que raramente é mencionado é que, além de matar um grande número de muçulmanos não combatentes, as cruzadas também mataram um grande número de judeus na Europa ao longo do caminho, bem como no Oriente Próximo. Esses massacres genocidas foram justificados com base no fato de que tais assassinatos não eram pecaminosos porque os mortos não eram cristãos, mas infiéis (não da fé).[15] Tudo isso causou um profundo impacto nos acontecimentos que levaram à Reforma.

Após o eufórico sucesso da primeira cruzada, os fracassos subsequentes em sustentá-la abalaram o cristianismo, dada a noção religiosa onipresente de que o sucesso e a vitória mostram que “Deus está do nosso lado / Deus está conosco” (Nobiscum deus / Gott mit uns etc.). Por outro lado, os muçulmanos foram estimulados pela mesma ideia, devido ao seu sucesso nesses séculos. Na época da Reforma, os turcos estavam às portas de Viena, ameaçando o centro do que hoje é conhecido como Europa Ocidental. O Sacro Imperador Romano Carlos V, então, convocou um jejum na cidade imperial de Augsburg em 1530 para garantir a unidade dos príncipes católicos e luteranos para uma nova cruzada contra essa ameaça. A Confissão de Augsburg – uma doutrina crítica para os luteranos e a Reforma – foi apresentada lá no contexto das cruzadas e da guerra contra os muçulmanos. Foi também a precursora da Paz de Augsburgo de 1555, e levou aos Tratados de Westfália de 1648.

De forma geral, esses tempos foram vistos como apocalípticos pelos fundadores da Reforma. Eles anteciparam a perseguição cataclísmica dos santos sob o islã, que eles perceberam como um julgamento de Deus – daí sua polêmica anti-islâmica altamente negativa. Sua retórica antipapista era porque eles consideravam o catolicismo, e às vezes também os judeus, como a causa por trás da punição de Deus pela vara do islã.[16]

 

5. Contexto multirreligioso e multicultural da Reforma

Contrariando a sabedoria popular, a Europa na época de Lutero não era monorreligiosa, nem monocultural, mas refletia sim um contexto altamente pluralista, fruto de uma sequência de desenvolvimentos históricos dos séculos anteriores. Esses desenvolvimentos ainda faziam parte da memória coletiva e, de fato, eram o grão teológico e epistêmico para a Reforma. A Espanha esteve sob domínio muçulmano desde 711[17] até a conclusão da reconquista (1492) com a queda de Granada, o último estado islâmico da Península Ibérica.[18] Após 1492, os monarcas mais católicos, Isabela e Fernando, converteram à força os muçulmanos e judeus da Espanha.[19] A expulsão dos judeus começou após o genocídio de 1391,[20] e é vista como o ponto de virada para a existência judaica espanhola (sefardita) na Europa.[21] Isso levou à inquisição em 1478 (para controlar a ortodoxia dos convertidos) e, finalmente, à expulsão até mesmo dos judeus convertidos que se seguiu. A expulsão final dos convertidos muçulmanos da Espanha começou em 1609, e foi concluída em 1614.[22]

Apesar dessa história do islã no sul da Europa, atualmente o norte e o oeste da Europa reivindicam continuidade direta e sem mediação para com as antigas civilizações do sul e leste do Mediterrâneo, e para com as civilizações “mães” greco-romanas. Esse truque de mágica localiza conceitualmente e emocionalmente o Mediterrâneo[23] exclusivamente na Europa, embora geograficamente esteja localizado entre a África, a Ásia e a Europa. Por meio dessa manipulação histórica, eles reivindicam a posse exclusiva dessa herança, e, portanto, seriam os verdadeiros sucessores do Império Romano.

O entendimento fundamental necessário é essa percepção de continuidade mediterrânea desenfreada e o status monorreligioso da Europa, que evoluiu amplamente a partir de um modelo da cristandade constantiniana. A localização da capital dessa cristandade e do Império Constantiniano fazia fronteira com a Ásia, isso se não fosse diretamente na própria Ásia, ou seja, no Bósforo. Não houve nenhuma contribuição real – nem fora um produto direto – das chamadas tribos “bárbaras” europeias[24] (exceto negativamente na ameaça que representavam para Roma e ao Império Romano). Na verdade, foram suas agressões contínuas que levaram à mudança de Roma, Itália, para Bizâncio (a Nova Roma no Bósforo) como a nova capital do império no século 4. Também é importante lembrar que no início desse período havia apenas um Império Romano, nenhuma aberração mítica como o Império Romano Ocidental e Oriental[25] como muitas vezes é romanticamente, mas falsamente, afirmado. Também é importante notar que é aqui que o cristianismo se torna a religião da Roma imperial. Constantinopla, portanto, é o local original do que veio a ser chamado de “cristandade”, em vez de sua localização aceita na Europa ocidental.

Para o islã, que surgiu após essa mudança, Constantinopla era o Lugar. Foram eles que se tornaram os verdadeiros herdeiros desse Império Romano e da maior parte do Mediterrâneo, começando com o período inicial de expansão e conquista islâmica, crescendo finalmente com a captura de Constantinopla em 1453. Com isso, os muçulmanos herdaram as tradições intelectuais do mundo greco-romano, que mais tarde foram transmitidas ao Ocidente por meio de estudiosos muçulmanos, até mesmo para um teólogo/filósofo cristão tão central e fundamental quanto São Tomás de Aquino. Sidney Griffiths aponta corretamente que

 

Al-Farabi (870-950), Ibn Sina/Avicenna (980-1037) e Ibn Rushd/Averroes (1126-1198) são os nomes dos filósofos muçulmanos com maior reconhecimento, todavia estão longe de ser os únicos a fazer contribuições importantes. E, é claro, suas realizações desencadearam outro movimento de tradução nos séculos 11 e 12, dessa vez no oeste islâmico-cristão, em lugares como Bolonha, Toledo e Barcelona, onde mentes ávidas traduziram textos filosóficos do árabe para o latim, e forneceram o ímpeto para o florescimento da filosofia e teologia escolástica nas obras de Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Scotus por meio de realizações anteriores de estudiosos como Abelardo e Alberto, o Grande.[26]

 

Portanto, não foi pela espada que essas grandes figuras históricas aceitaram os mestres muçulmanos por sua filosofia e teologia. Foi à luz desses mestres que Tomás reexaminou o cristianismo, e insistiu na perspicuidade (clareza) do texto sagrado como era defendido centralmente no islã. Isso, então, influenciou a sola scriptura de Lutero (e a centralidade calvinista da Palavra de Deus – a Escritura), que tinha pouco ou nenhum espaço para a mediação da traditio. Por outro lado, foi o julgamento e a crítica de Tomás sobre esses, seus mestres e professores, e suas filosofias aristotélicas, in summa de veritate catholique fide contra gentiles (Tratado sobre a Verdade da Fé Católica contra os descrentes),[27] que determinaram nossa posição sobre o islã e os muçulmanos no Ocidente, bem como sobre Aristóteles nos círculos protestantes. Esses foram os antecessores e guias de Lutero que antecederam a Reforma.

Grande parte da Europa central e oriental também vivia sob o controle contínuo dos turcos otomanos muçulmanos. Isso já havia começado pelo menos em 1389, na batalha de Kosovo. Com algumas poucas mudanças, esse status permaneceu praticamente inalterado até a Primeira Guerra Mundial, ou seja, um período de mais de 500 anos.[28] Com o controle de Constantinopla em 1453, e de toda a Grécia em 1460 (o berço da “civilização ocidental”),[29] os muçulmanos turcos também tinham uma presença abrangente e persistente nessa parte fundacional da Europa.

Os dois contextos multirreligiosos de longo prazo (ou seja, islâmico e judaico) nas partes ocidental, central e oriental da Europa “cristã” desmentem qualquer reivindicação monorreligiosa exclusiva do cristianismo. Isso nos obriga a reavaliar nossos atuais fundamentos epistêmicos à luz do significado dessa experiência multirreligiosa e suas práticas dialógicas concomitantes. Além disso, exige de nós um reexame mais crítico dessa história, e uma “desmitologização” dela para uma tarefa teológica e filosófica mais honesta. As três tradições religiosas monoteístas certamente se valeram de empréstimos umas das outras na Espanha governada por muçulmanos, beneficiando-se especialmente do florescimento da filosofia e das ciências medievais na Espanha muçulmana e no Oriente Médio. Havia mais “tolerância” e coexistência, o que agora começa a ser reconhecido, mesmo quando alguns estudiosos questionam se essa convivência poderia realmente ser definida como “pluralismo religioso”.[30] Isso mudou completamente após 1492.

 

6. Envolvimento pré-Reforma com o islã

Por volta do século 12, o islã estava se tornando objeto de investigação intelectual por causa de sua iminente ameaça ao Ocidente. Essas abordagens acadêmicas eram quase todas totalmente negativas. Para dar alguns exemplos da compreensão do islã nos estudos medievais disponíveis para a Reforma:

  1. Pedro, o Venerável (c. 1092-1156), iniciou o trabalho intelectual para combater “a heresia” do islã. Ele escreveu Summa Totius Heresis Saracenorum [O Resumo de Toda a Heresia dos Sarracenos] e Liber Contra Sectam Sive Heresim Saracenorum [Refutação da Seita ou Heresia dos Sarracenos]. Ele também solicitou a primeira tradução do Alcorão para o latim.
  2. Robert Ketton (1110-1160) fez essa primeira tradução seminal do Alcorão para o latim, ironicamente chamada de Lex Mahumet Psuedoprophete [A Lei de Maomé, o Pseudo-Profeta], c. 1143.[31]
  3. Roger Bacon (c. 1214–1294) relutantemente reconheceu que foi profundamente influenciado por cientistas islâmicos e estudiosos judeus na tradição de Ibn Sina, Ibn Rushd e Musa bin Maimun [Moses Maimonides].
  4. Tomás de Aquino (c. 1225-1274), como já foi observado, escreveu Summa contra gentiles – uma apologética filosófica, até polêmica, contra os judeus e muçulmanos (mouros) na Espanha em defesa do cristianismo.[32] Ele também teve como alvo os mestres gregos (a quem mais tarde usou na Summa Theologica, particularmente Aristóteles) e estudiosos islâmicos, especialmente Ibn Rushd, com quem permaneceu comprometido durante toda a sua vida.[33] Algumas de suas raízes epistemológicas e hermenêuticas centrais e contribuições foram profundamente influenciadas pelo islã.
  1. Ramon Llull (c. 1232-1315) foi um missionário para os muçulmanos no Norte da África e escreveu Liber del Gentili e dels Tres Savis [Livro do Pagão e os Três Sábios] em 1277, no qual um judeu, um cristão e um muçulmano fazem defesas de suas respectivas crenças a um pagão e de suas respectivas religiões.[34]
  2. Ricoldo de Montecroce (c.1243-1320) foi um missionário dominicano para os muçulmanos em Bagdá. Ele escreveu o Contra Legem Sarracenorum [Contra a Lei dos Sarracenos], uma abrangente refutação do islã, que foi traduzido para o alemão por Martinho Lutero em 1542. Ricoldo tentou traduzir o Alcorão, embora não se saiba se ele o completou.
  3. Juan de Segovia (c. 1400-1458) estava preocupado em encontrar a melhor maneira de converter os muçulmanos ao cristianismo. Para isso, ele encomendou uma tradução do Alcorão para o castelhano, que então traduziu para o latim e, presumivelmente, formou a base para seu De mittendo gladio divini Spiritus in corda Sarracenorum [Sobre a Condução da Espada do Espírito Santo nos Corações dos Sarracenos] – uma refutação do Alcorão.[35]
  4. Nicolau de Cusa (c. 1401-1464) escreveu De pace fide [Sobre a Paz da Fé] logo após a tomada turca de Constantinopla em 1453. Ele argumentou que a verdadeira fé pode ser manifestada em diferentes religiões, incluindo especificamente o islã, embora o cristianismo seja, certamente, a maior delas. Ele também escreveu Cribratio Alchorani [Peneirando o Alcorão] (c. 1460), uma revisão detalhada da tradução latina do Alcorão de Ketton, que ele usou para provar a superioridade do cristianismo, mas ele tratou o judaísmo e o islã como compartilhando a verdade. Apesar dessa abertura, Nicolau apoiou totalmente o apelo do Papa Pio II para a realização de uma nova cruzada contra os turcos, mesmo quando elas estavam sendo amplamente questionadas.
  5. Havia uma tradição que via o islã como um espelho fornecido para a autorreflexão crítica da cristandade e como uma vara de Deus, assim como a Assíria foi para Israel em Jeremias e Isaías.[36] Essa atitude estava especialmente presente nas obras de John Wycliffe (c. 1320-1384) e, em certa medida, em Erasmo de Rotterdam (c. 1466/69-1536).

Enquanto Pedro, o Venerável, Ketton, Bacon, Aquino e Nicolau de Cusa viviam exclusivamente no contexto da “Europa cristã”, Llull viveu e trabalhou na Espanha e no Norte da África, Ricoldo de Montecroce trabalhou em Bagdá, e João de Segóvia, na Espanha, ou seja, em contextos islâmicos. O surpreendente é que eles foram autorizados a trabalhar nesses contextos muçulmanos sem serem seriamente ameaçados, especialmente porque muitos de seus textos depunham contra o islã. Talvez isso reflita um nível não reconhecido de tolerância do contexto islâmico, o qual certamente nem sempre foi retribuído para com os muçulmanos que vivem em contextos cristãos. No entanto, deve-se reconhecer que as escolas de Ibn Sina, Ibn Rushd e Al Ghazali puderam funcionar em Paris e Nápoles, influenciando epistemologicamente quase toda a Europa.

 

7. O problema islâmico

A existência do islã mostrou-se um problema fora de alcance para a cristandade medieval e para a Reforma em todos os níveis. Ela estabeleceu um problema político operacional quanto à necessidade de se discernir entre as possibilidades conflitantes de se promover cruzadas, conversões (missões), coexistência e intercâmbio comercial. E o mistério de sua existência era um problema teológico: qual seria o papel do islã na história? Seria um sinal dos últimos dias do mundo, ou seria um estágio no desenvolvimento cristão? Seria uma heresia, um cisma ou uma nova religião? Seria o produto de uma pessoa altamente deturpada e moralmente corrupta (a saber, Maomé) ou até mesmo do próprio diabo? Seria uma paródia obscena do cristianismo? Ou seria um sistema de pensamento que merecia ser tratado com respeito? Como uma religião pós-cristã com crescimento geográfico e numérico, o islamismo desafiou a reivindicação da eficácia absoluta e final do cristianismo. Também desafiou a afirmação cristã (e de seus antecedentes judaicos) de ser o povo escolhido/favorecido de Deus. Reivindicava tanto a continuidade como a anulação da “herança judaico-cristã”, e de ser o cumprimento final dessas religiões. Tudo isso foi profundamente desconcertante, e causou uma crise de fé para o Ocidente e para o cristianismo.

Norman Daniel, um filósofo, cientista político e eticista da Universidade de Harvard, escrevendo sobre a abordagem ‘científica’ ocidental em relação ao islã, corretamente nos aconselha que “(…) mesmo quando lemos os estudiosos mais destacados, precisamos ter em mente quais eram os argumentos da cristandade medieval, porque eles sempre foram e ainda fazem parte da composição de todas as mentes ocidentais que abordaram [e abordam] o assunto”.[37] Com uma visão muito diferente, Colin Chapman, um missionário evangélico que passou um tempo [em instituições como] Near East School of Theology e London Bible College, no Reino Unido, escreve que: “Na época da Reforma, os protestantes viam o islã e o catolicismo romano como personificações do anticristo, enquanto os católicos viram no islã muitas das características que mais odiavam nos protestantes. Então, com o surgimento do Iluminismo, os racionalistas tiveram a sua vez de denegrir o islã e despejar escárnio sobre o profeta”.[38] O que existe de consistente nessas duas citações críticas, de fontes altamente divergentes, é a atitude anti-islâmica onipresente e o julgamento negativo que tem sido a norma epistêmica do Ocidente ao longo de vários séculos, embora esses próprios interlocutores ocidentais tenham pontos de partida ideológicos diferentes e antagônicos entre si.

Dada a ávida crença do cristianismo medieval de que após a conversão de Constantino (visto como um sinal claro de Deus e prova da eficácia do cristianismo) a Europa se tornara um lugar monorreligioso, não seriam necessários, portanto, quaisquer recursos epistemológicos reais para combater o islã. No geral, a Europa não possuía o conhecimento das principais origens do islã, nem possuía as habilidades linguísticas para acessá-las. Isso era verdade apesar dos cerca de 300 anos de cruzadas e de um longo tempo habitando no Oriente Médio, assim como dos vários séculos convivendo com os vizinhos muçulmanos na Europa. Seus preconceitos culturais e o medo da contaminação (sincretismo) gerado pela Igreja em suas polêmicas pelas cruzadas mantinham o Ocidente mergulhado na ignorância e, ao mesmo tempo, cada vez mais temeroso quanto ao islã. A abundância de literatura polêmica antijudaica falhou em fornecer uma epistemologia adequada para lidar com os desafios trazidos pelo islã porque o judaísmo era uma religião pré-cristã e, como tal, poderia simplesmente ocupar o espaço da preparatoria evangelica (preparação para o evangelho). O islã, contudo, como religião pós-cristã, precisou ser entendido de forma diferente: era, por um prisma bíblico, como parte dos elementos apocalípticos negativos que sinalizam o fim do mundo, ou era como um espelho para uma reflexão autocrítica, ou como o cetro de Deus punindo a cristandade por suas transgressões. O islã foi intencionalmente mal compreendido e deliberadamente mal apresentado (de modo que agora se forma uma tradição hermenêutica própria milenar, com sua própria história efetiva – Wirkungsgeschichte [palavra alemã cujo significado aproximado é impacto ou efeito da história]).

Lutero defendeu cada uma dessas posições em diferentes lugares. Por outro lado, Calvino mal menciona o islã e os muçulmanos, mas, quando o faz, segue basicamente a avaliação de Lutero, e, sempre que verbaliza seu próprio julgamento, ele é invariavelmente negativo.

 

8. Reforma: islã e judaísmo

Os sentimentos antijudeu e anti-islâmico predominantes durante as cruzadas permaneceram no período da Reforma, como ficou evidente nos escritos de Lutero e, posteriormente, nos de Calvino. Ambos polemizaram seriamente contra o islã, e, de maneira ainda mais significativa, ambos viram o islã como o julgamento de Deus sobre um cristianismo altamente corrupto e deturpado, especialmente o Catolicismo Romano. Assim, Lutero chamou o islã de “a vara de Deus”. Escrevendo já em 1518, Lutero diz: “Lutar contra os turcos é o mesmo que resistir a Deus, que visita nossos pecados [e vem] sobre nós com essa vara”.[39] Assim, em resposta ao apelo do Papa Leão X para o levante de uma nova cruzada contra os turcos otomanos, Lutero, em Resolutiones disputationum de indulgentiarum virtute [Discussão de explicações sobre o poder das indulgências], argumenta: “Muitos, no entanto, até mesmo as ‘grandes autoridades’ na Igreja, agora sonham com nada mais do que a guerra contra os turcos. Eles querem lutar não contra as iniquidades, mas contra o instrumento de castigo da iniquidade, e, portanto, se oporiam a Deus, que diz que, por meio desse chicote, ele mesmo nos pune por nossas iniquidades, porque não nos punimos por elas”.[40] Sua oposição às cruzadas não era motivada por qualquer pacifismo para com o islã, mas sim por sua oposição vociferante à corrupção da venda de indulgências que financiava essas cruzadas. Após as derrotas de Belgrado (1521) e da Hungria (1526) pelos otomanos, Lutero já havia convocado o Sacro Imperador Romano, Carlos V, para travar uma guerra contra os turcos.[41] No entanto, em 1529, em On War Against the Turk [Na Guerra Contra os Turcos], ele ainda descreve os turcos como a “vara da ira de Deus” por meio da qual “Deus está punindo o mundo”.[42]

Lutero via o islã como uma religião enganosa e assassina, que defendia o total desrespeito ao casamento, e como inimiga do cristianismo. No entanto, ele enxergava que muitas dessas falhas não eram exclusivas dos turcos, mas eram características igualmente prevalentes no papado, entre os judeus e até mesmo nos reformadores radicais. Ele via o islã, junto com o catolicismo, como “o segundo chifre na cabeça do diabo”. Para Lutero, os turcos eram, portanto, a vara da ira de Deus e também de Satanás. Ambas as posições aparentemente paradoxais em relação ao islã foram mantidas por Lutero, e seguidas por Calvino.[43] Como George Forell argumenta: “Para Lutero, o diabo sempre foi o diabo de Deus, ou seja, na tentativa de neutralizar Deus, o diabo, em última instância, serve a Deus”.[44] Então Satanás (e, portanto, os turcos) estava sendo usado por Deus para os propósitos de Deus. Isso foi posteriormente confirmado por uma guerra injusta conduzida exclusivamente para fins agressivos (que é o modus operandi do diabo), em vez de defensivamente. Assim, os turcos eram, de acordo com Lutero, o instrumento “com o qual Deus está punindo o mundo como frequentemente faz por meio de canalhas perversos e, às vezes, de pessoas piedosas”.[45]

Francisco ressalta que Lutero raramente fala sobre os turcos sem mencionar também o papado:

 

Seus colegas registraram que ele sugeria que ambos eram o Anticristo. “O papa é o espírito do Anticristo e o turco, a carne do Anticristo. Ambos se ajudam a [nos] sufocar, o último com corpo e alma, o primeiro com doutrina e espírito.”[46] Em seus próprios escritos (…), ele via o papa como o Anticristo, enquanto os turcos eram outro tipo de aberração demoníaca. Junto com o resto do mundo muçulmano, eles eram seguidores da besta de Apocalipse 20.10, que seria Maomé. A situação, de acordo com a exegese de Lutero da passagem, era a seguinte: o reino de Maomé (a besta) reinou no Oriente, e o papado (o falso profeta do Anticristo) reinou no Ocidente. Ambos estavam sob o comando de Satanás, aguardando ordens para iniciar o ataque final à Igreja. “Porque o fim do mundo está próximo”, escreveu ele, “o Diabo deve atacar a cristandade com suas duas forças”. No entanto, curiosamente, e provavelmente devido à proximidade, Lutero quase sempre viu o papado como uma ameaça maior do que Maomé e os turcos. Ele frequentemente falava que, em comparação ao papa, “Maomé se apresentava perante o mundo como um santo puro”. No entanto, ambos desempenharam um papel fundamental em sua visão escatológica da história e em sua avaliação da natureza da ameaça turca.[47]

 

Apesar de tudo, Lutero é um dos primeiros dos principais teólogos ocidentais a reconhecer o papel crítico do islã, mesmo quando enfrentou sua ameaça e a iminente conquista da Europa. Isso está presente em muitos de seus escritos, e não, como tantas vezes retratado, exclusivamente em seu On the War Against the Turks [Na Guerra Contra os Turcos]. Lutero aconselhou que “de todas as maneiras possíveis, a religião e os costumes dos ‘seguidores de Maomé’ sejam publicados e divulgados no exterior”.[48] É particularmente fascinante lembrar que Lutero, ao final de sua vida, em 1543, foi criticamente fundamental na publicação de uma nova tradução do Alcorão para o latim por Theodore Bibliander.[49]

Bibliander, a pedido de Lutero, publicou uma versão reformulada do Alcorão latino de Ketton. Em 1542, Lutero usou de sua influência para persuadir o Concílio de Basileia a suspender a proibição dessa tradução, o que eles acataram, mas com a condição de que Lutero e Melanchthon escrevessem prefácios para ela. A tradução do Alcorão de Bibliander foi finalmente publicada em 1543 junto com esses prefácios. Henrich e Boyce resumem que:

 

O principal encargo do prefácio de Lutero (…) era argumentar mais uma vez que, pela apresentação clara dos ensinamentos de Maomé, por contraste, eles pudessem ser mais prontamente refutados pelos ensinamentos claros da Igreja sobre Cristo, sua encarnação, sua morte por nossos pecados, e a ressurreição, para que os cristãos pudessem assim estar armados na confrontação com o inimigo, por meio de um conhecimento seguro e certo dos princípios centrais de sua própria fé.”[50]

 

Isso porque Lutero considerava o Alcorão um “livro imundo e vergonhoso”,[51] e procurou traduzi-lo para expor suas perversidades. Além dessas advertências e críticas, Lutero, no final de seu prefácio, escreve:

 

Nesta nossa era, quantos variados inimigos já vimos? Defensores papistas da idolatria, os judeus, as monstruosidades multifacetadas dos anabatistas, Servetus (Miguel de) e outros. Vamos agora nos preparar contra Maomé. Mas o que podemos dizer sobre assuntos que ainda estão fora de nosso conhecimento? Portanto, é de valor para os aprendizes[52] ler os escritos do inimigo a fim de refutá-los mais incisivamente, cortá-los em pedaços e derrubá-los, a fim de que possam trazer alguns para a segurança, ou certamente para fortalecer nosso povo com argumentos mais sólidos.[53]

 

Portanto, a abordagem de Lutero foi a de tentar preencher a lacuna existente de conhecimento vis-à-vis [frente a frente] sobre religião dos turcos. De acordo com Southern, isso aconteceu porque “ele contava antecipadamente com a probabilidade de que a cristandade fosse engolfada pelo Islã”[54] e assim os cristãos deveriam se preparar para viver sob esse inimigo. Lutero havia argumentado anteriormente, em seu prefácio do Libellus de ritu et moribus Turcorum [Tratado sobre os ritos e costumes dos turcos] (1530):[55]

 

Uma vez que agora temos os turcos e sua religião à nossa porta, nosso povo deve ser avisado para que, movidos pelo esplendor da religião turca e as aparências externas de seus costumes, ou decepcionados pela escassa exibição de nossa própria fé ou pela deformidade de nossos costumes, eles não neguem a seu Cristo e sigam Maomé.[56]

 

No início do texto, ele argumenta:

 

(…) vemos que a religião dos turcos ou de Maomé é muito mais esplêndida em cerimônias – e, quase posso dizer, em costumes – do que a nossa, mesmo incluindo a dos religiosos ou de todos os clérigos. A modéstia e a simplicidade de sua comida, roupas, moradias e tudo mais, bem como os jejuns, orações e reuniões comuns do povo que este livro revela não são vistos em nenhum lugar entre nós. (…) Quais de nossos monges, seja um da Ordem dos Cartuxos (aqueles que desejam parecer os melhores) ou um beneditino, não se envergonham da milagrosa e maravilhosa abstinência e disciplina entre seus religiosos? Nossos religiosos são meras sombras quando comparados a eles, e nosso povo, claramente profano quando comparado ao deles. Nem mesmo os verdadeiros cristãos, nem o próprio Cristo, nem os apóstolos ou profetas exibiram tamanha demonstração. Essa é a razão pela qual muitas pessoas se afastam tão facilmente da fé em Cristo pelo maometismo e aderem a ele tão tenazmente. Eu sinceramente acredito que nenhum papista, monge, clérigo ou seu igual na fé seria capaz de permanecer em sua fé se passasse três dias entre os turcos.[57] (…) De fato, em todas essas coisas os turcos são, de longe, muito superiores.[58]

 

Elogios muito elevados de verdade! Embora, claramente, para um telos [objetivo] negativo. Como tal, ele não via nada de valor no islã; apesar de sua piedade moral e bom comportamento, não poderia ser salvífico, pois a salvação só vem por meio de Cristo. Assim, ele mostra as tendências medievais gerais de sempre ao julgar o islã negativamente, embora às vezes afirme, relutantemente, alguma interpretação mais positiva.

Em seus escritos anteriores, Lutero não endossou ou condenou explicitamente as várias medidas militares tomadas contra os turcos, mas rejeitou completamente a ideia de uma nova cruzada. Quando George Spalatin solicitou sua opinião em 1518 sobre os planos papais para uma nova cruzada contra os turcos, ele respondeu:

 

Se eu o entendi corretamente, você pergunta se uma expedição contra os turcos pode ser defendida por mim com base bíblica. Mesmo supondo que a guerra deva ser travada por motivos piedosos e não por lucro, confesso que não posso prometer o que você pede, mas o contrário, sim. (…) Parece-me que, se devemos travar alguma guerra turca, devemos começar por nós mesmos. Em vão travamos guerras carnais externas enquanto em casa somos conquistados por batalhas espirituais. (…) Agora que a Cúria Romana se mostra mais tirânica do que qualquer turco, ela que luta com tais feitos portentosos contra Cristo e sua Igreja, e agora que o clero é mergulhado nas profundezas da avareza, ambição e luxo, e agora que o rosto da Igreja se mostra em toda parte mais miserável, não há esperança de se ver uma guerra bem-sucedida ou de obtenção de vitória. Até onde posso ver, Deus luta contra nós; primeiro, devemos conquistá-lo com lágrimas, orações puras, vida santa e fé pura.[59]

 

A denúncia de Lutero sobre o papado e sua demanda por uma cruzada popular/guerra santa em face da iminente invasão turca já havia irritado a Igreja Católica. Em 1518, Lutero chegou ao ponto de declarar publicamente “que o papa não era apenas um ‘tirano’ do cristianismo, mas também o ‘Anticristo’”.[60] Ele piorou as coisas quando, em 1520, hiperbolizou que os “turcos” na verdade eram os servos do papa, seus “lacaios e prostitutas”.[61] A resposta do papa a esse ataque prolongado foi ameaçar excomungar Lutero em 1520. Entre os muitos supostos ensinos heréticos e escandalosos de Lutero denunciados pelo papado na bula Exsurge Domine (1520), estava um resumo de uma declaração anterior que ele havia feito a respeito dos turcos: “Lutar contra os turcos é lutar contra a visitação de Deus sobre nossas iniquidades”.[62]

A resposta de Lutero à bula papal de excomunhão foi sustentar que:

 

Esse artigo não significa que não devemos lutar contra os turcos, o santo fabricante de heresias acusado pelo papa. Significa, antes, que devemos consertar nossos caminhos, e fazer com que Deus seja misericordioso para conosco. Não devemos mergulhar na guerra, contando com a indulgência do papa com a qual ele enganou os cristãos no passado e ainda os está enganando. (…) O que o papa realiza com as suas indulgências cruzadas e suas promessas do céu nada mais é do que conduzir os cristãos com suas vidas para a morte e com suas almas para o inferno. Essa é, obviamente, uma obra própria do Anticristo. Deus não exige cruzadas, indulgências e guerras. Ele quer que vivamos bem. Mas o papa e seus seguidores fogem do fazer o bem mais rápido do que qualquer outra coisa, ainda assim ele quer devorar os turcos. (…) Essa é a razão pela qual nossa guerra contra os turcos é tão bem-sucedida – pois onde antes ele possuía uma milha de terra, ele agora possui cem. Mas ainda não o vemos tão completamente se fomos tomados por este líder romano dos cegos.[63]

 

Isso não significa que Lutero fosse um pacifista, algo pelo que condenou veementemente os anabatistas. Em vez disso, ele endossou uma resposta militar contra os turcos. Veja, por exemplo, o Türkenbüchlein – os chamados escritos turcos, dos quais o mais conhecido é Vom Kriege wider die Türken [Na Guerra Contra os Turcos], de 1529. Ele escreve o último a fim de se opor àqueles

 

pregadores estúpidos entre nós, alemães (…), que nos fazem acreditar que não devemos, não podemos lutar. Alguns são tão tolos em dizer que não é apropriado que os cristãos portem a espada temporal ou sejam governantes (…), alguns realmente querem que os turcos venham e governem porque pensam que nosso povo alemão é selvagem e incivilizado.[64]

 

Com a conquista de Belgrado por Suleyman I em 1521, o Reino da Hungria em 1526 e o (repelido) ataque otomano a Viena em 1529, a ameaça de ocupação otomana da Europa Ocidental tornou-se realmente muito séria. Não era tanto uma questão de uma cruzada contra os turcos (ou seja, um ataque ofensivo ao território turco fora da Europa), mas sim uma possibilidade muito real de ter de defender território europeu contra a ocupação otomana.

Em Na Guerra Contra os Turcos, Lutero reconfirmou o seu posicionamento anterior (ou seja, de que os cristãos deveriam lutar suas guerras por meios espirituais, por meio do arrependimento e da Reforma) porque o papa promoveu essa guerra como uma guerra santa (cruzada) a ser empreendida em nome de Cristo, o que ele considerou ser uma blasfêmia. Ele então argumenta que eles deveriam lutar contra os turcos, mas apenas como parte de sua vocação secular: não como uma cruzada, uma guerra santa contra a religião turca, mas sim uma guerra secular, liderada por líderes seculares, contra um invasor. Se alguém fosse para a guerra contra a heresia, teria de começar com o catolicismo romano. “Deixe o turco acreditar em que quiser e viver como quiser, assim como alguém permite que o papado e outros falsos cristãos vivam.”[65] Agora, ele exortou todos a pegarem em armas contra os turcos, não como uma questão religiosa, mas como uma questão de vocação. Em Eine Heerpredigt wide den Türken [Um Sermão do Exército contra os Turcos], 1530, Lutero encoraja os cristãos a abraçarem a vocação de soldado porque “tal pessoa deve saber que eles estavam apenas se defendendo ‘contra os turcos em uma guerra iniciada por eles’, e que eles tinham tanto o direito quanto a obrigação de fazê-lo (…) pois, ao lutar contra os turcos, alguém estava ‘lutando contra um inimigo de Deus e um blasfemador de Cristo, na verdade, o próprio Diabo’”.[66]

Dois dos princípios centrais da teologia de Lutero (ou seja, os Dois Reinos e o conceito de vocatio dei) foram, creio, profundamente influenciados pela ameaça turca e pelas respostas que ele gerou dos católicos (que invocaram a cruzada), ou, inversamente, pelo pacifismo dos anabatistas. Esses últimos, embora concordassem com Lutero que o islã era de fato o cetro de Deus para purificar o cristianismo de seu pecado e calúnia, viram sua resistência contra os turcos como anticristã e oposta à ordenação e ao desígnio de Deus. Diferentemente dos anabatistas, que não se preocupavam com a forma como eram percebidos, Lutero ainda precisava do apoio do povo, especialmente de seus amigos principescos, daí a necessidade de  sua correspondência com o reverendo Spalatin mencionado acima. Então, ele desenvolve uma ideia muito nova e criativa de apresentar uma noção mais ampla de vocatio dei, ao invés do entendimento exclusivo existente (que restringe a vocação aos deveres sacramentais do sacerdócio). É por meio dessa noção de soldadesca como vocação, e da vocação de soldado, que Lutero reconfigura a noção da teoria da guerra justa, afastando-a da noção católica de guerra religiosa, e refuta a posição anabatista de pacifismo total. Para Lutero, portanto, o que está em questão não é tanto uma definição da própria guerra, mas de dois conjuntos de governo – civil e religioso –, bem como a noção de a vocação cristã ser maior do que exclusivamente o sacerdócio. A guerra está, portanto, no domínio do governo civil, e deve ser iniciada e conduzida por esse lado dos dois reinos, e não deve ser empreendida como uma guerra santa ou cruzada iniciada pela Igreja.

 

9. A atitude de Calvino em relação ao islã

A ameaça turca deve ter sido muito real para Calvino, já que ele tinha apenas 20 anos quando ocorreu o cerco a Viena. Além disso, a Hungria, que estava sob constante ameaça dos otomanos desde sua vitória na Batalha de Mohacs em 1526, era de particular importância existencial para Calvino, visto que a Hungria teve uma forte presença luterana (e depois calvinista), e os reformadores de outras partes da Europa forneceram fundos significativos para a guerra ali contra os turcos otomanos. Então, quando Francisco I da França fez uma aliança franco-otomana com Solimão, o Magnífico, em 1536, contra o Sacro Império Romano, isso causou séria consternação a Calvino, ainda mais exacerbada pela queda de Buda em 1541.

Tudo isso para dizer que é bastante surpreendente que Calvino, um humanista com formação jurídica, demonstre apenas uma compreensão superficial a respeito do islã. Pessoas como Jan Slomp[67] previsivelmente justificam Calvino com base no fato de que ele teve poucas oportunidades de entrar em contato com os muçulmanos e de conhecer o islã. Isso, no entanto, não justifica sua pura falta de investigação, simples curiosidade e apologética, ou mesmo a ausência do desejo de conhecer mais sobre a persistente polêmica a respeito de um antigo inimigo que ameaçava a Europa, especialmente à luz da imensa “curiosidade intelectual de Lutero”. Calvino demonstra claramente a influência das polêmicas medievais e, como Lutero, em grande parte as rearticula, mas com pouco ou nenhum apreço pelo islã. Assim, Calvino segue a abordagem de Lutero de que a Europa deveria se defender dos turcos sem uma guerra agressiva ou situação semelhante a uma cruzada, e a Igreja deveria organizar dias de orações e penitência.

O maior estigma da carreira de Calvino em Genebra foi a execução de Miguel Servet,[68] queimado como um herege em 1553. Servet, um espanhol, foi um homem realmente renascentista, bem-educado em muitos campos e mais conhecido por suas contribuições para a Teologia e a Medicina (um campo fortemente influenciado pelos muçulmanos). Sua teologia o opôs a Calvino por ter refutado o monoteísmo trinitário a fim de fazer uma apologética cristã que atendesse às necessidades do monoteísmo unitarista judeu e islâmico.[69]

A influência islâmica por trás de sua cristologia não-trinitária não recebeu a devida atenção acadêmica, nem tampouco os sentimentos anti-islâmicos de Calvino que, claramente, estavam por trás dessa farsa. Durante o julgamento de Servet, ele foi questionado sobre o porquê de ter estudado o Alcorão, e se acreditava ou não que ele [o Alcorão] estava cheio de blasfêmias.[70] Essa pergunta, provavelmente de autoria de Calvino, indicaria a percepção quanto à heresia de Servet, pela qual ele fora finalmente executado como sendo informado pelo (e ligado ao) islã. Além disso, Servet já havia criticado a exclusão pregada por Calvino por meio da dupla predestinação – que, segundo sua percepção, violava a graça inclusiva de Deus e sua compreensão da cristologia inclusiva, segundo a qual a graça era disponibilizada tanto para os muçulmanos quanto para os judeus.

Ambos, Calvino e Lutero, embora fossem altamente críticos do islã, encorajavam os crentes cristãos a um exercício de maior fidelidade ao prescrever o zelo da prática da fé muçulmana. Isso acrescenta importância maior e particular em Calvino devido à sua ênfase na santificação e talvez no “terceiro uso da lei”, que é uma reminiscência das obrigações ortopráticas muçulmanas de piedade, justiça e santificação. É claro que essa recomendação não continha, em nenhum aspecto, uma apreciação geral pela fé islâmica, sua doutrina etc., e as condenações eram geralmente associadas aos papistas. O que é interessante notar é que parece haver pouca evidência na obra de Calvino sugerindo que os cristãos deveriam pregar aos muçulmanos ou tentar convertê-los. Essa falta de zelo missionário é igualmente válida para os papistas e para os judeus: todos sendo apóstatas eram, como tal, um problema de Deus, não nosso.

A equação de Calvino quanto a turcos e papistas também é baseada na busca desses pela verdade fora das Escrituras, que é um teste definitivo aplicado igualmente contra turcos, papistas e judeus. Enquanto para os últimos esse ataque é baseado em sua apostasia de negação do cumprimento do Antigo Testamento, os dois primeiros são acusados de buscar fontes fora da Bíblia como tendo poder revelador e como fontes de doutrina, teologia e orientação para a prática de fé. Para os católicos, essa fonte extraescriturística está ligada à sua compreensão do papel sacramental da Igreja, bem como do ofício petrino. Para os muçulmanos, são o Alcorão e Maomé. Portanto, para Calvino, todos os três devem ser atacados não apenas porque são errados e apóstatas, mas também porque negam duas coisas centrais para sua teologia: 1) a centralidade e a coerência das Escrituras em si mesmas; e 2) o Deus das Escrituras, que é o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Curiosamente, em termos de epistemologia, Calvino tem mais semelhanças com os muçulmanos do que com os papistas e até mesmo com os luteranos, ouso dizer.[71] Para ele, a escritura canônica (como a Palavra de Deus) parecia adquirir um status que Lutero nunca quis dar, apesar de sua ênfase em sola scriptura. Lutero desenvolveu seus próprios antilegômenos de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, alegando que eles violavam as doutrinas protestantes fundamentais como sola gratia e sola fide. Ao contrário dos católicos, e juntamente com Lutero, Calvino não reconheceu nenhuma fonte de revelação e graça além de Jesus e, vicariamente, das Escrituras. Calvino, porém, às vezes parece elevar o texto a um status revelador tão alto que o logos tou theou secundário (a Palavra de Deus, ou seja, as Escrituras) quase parece igual ao logos tou theou principal (ou seja, Jesus Cristo). No islã, o Alcorão é o logos tou theou primário (kalam allah), mas ele é a palavra direta de Deus não mediada por agentes humanos, exceto pelo Profeta Maomé, que simplesmente recitou a mensagem (iqra – de onde vem a palavra “Alcorão”) dada a ele pelo anjo de Deus; ele não teve nenhum papel em escrevê-la. Novamente, ao contrário de Lutero, Calvino exige uma certa piedade e santificação para os crentes, a isso ele normalmente se refere como “terceiro uso da lei” (que para Lutero era claramente um anátema contra o poder abrangente da graça, que ele articulou em seu chamado de sola gratia e sola fide, sendo [a fé] o dom da graça). Assim, o entendimento de Calvino sobre santificação e piedade é semelhante ao defendido no islã.

A despeito de sua falta de curiosidade teológica em relação ao islã, Calvino é particularmente hostil a Maomé, considerando-o um enganador e agente corruptor que desviou os turcos para longe do cristianismo em direção a uma heresia distorcida.[72] Assim, Calvino o descreveu como sendo o “sem lei” de 2Ts 2.8.[73] Ele conecta Maomé ao papa, chamando-o de “o companheiro do papa” porque ambos pregam falsas doutrinas e envenenam as mentes e as almas das pessoas.[74]

Todavia, é perfeitamente possível ver paralelos entre Maomé e Calvino. Isso se manifesta mais claramente na maneira como eles conceberam a relevância de suas pregações e ensino na construção de suas sociedades, comunidades e até mesmo do Estado, o que significa a centralidade da injunção divina para a ordem adequada das coisas.

Um outro ponto a ser observado é que tem havido uma contínua má interpretação da herança doutrinária reformada da dupla predestinação, especialmente nos Estados Unidos[75] e também em estruturas africâner do apartheid na África do Sul. Em ambos os contextos, os cristãos que reivindicam uma herança calvinista se veem como o povo escolhido exclusivamente por Deus, com direito à terra de outros e até mesmo à sua mão de obra (escravos), e veem os povos autóctones como estando sob a maldição da eterna perdição (predestinados à eterna danação). É possível encontrar estudiosos e apologistas muçulmanos adotando uma abordagem da dupla-predestinação semelhante em suas teorias atuais sobre estados islâmicos, os muçulmanos e o mundo moderno. Eles baseiam sua abordagem em uma má interpretação das doutrinas dar-ul-Islam (a casa do islã) e dar-ul-Harb (a casa de guerra), levando a políticas internas e externas semelhantes às seguidas pelos primeiros calvinistas.

Uma outra questão que une Calvino e muçulmanos é a popularização da contribuição social, como se vê nas obras de Max Weber, especialmente em The Protestant Ethics and the Spirit of Capitalism [A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo][76]. Weber enxerga uma conexão direta entre a teologia de Calvino e o capitalismo emergente. Quando a construção social de Calvino é privada de seu ascetismo teológico, ela produz um capitalismo voraz e a jaula da burocracia. Alguns estudiosos muçulmanos argumentaram que o islã possui uma ética ascética semelhante e, seguindo a abordagem de Weber, consideram-se calvinistas islâmicos, e veem as bênçãos de Deus como a recompensa por sua piedade ascética.[77] Penso que Calvino, na verdade, faz um duplo movimento simultaneamente: 1) pedir a todos os cristãos que desenvolvam uma moralidade monástica; e 2) fazer isso sem que essa moralidade se torne um ascetismo celibatário. Então, na verdade, Calvino acaba com a diferença entre as ordens religiosas e os padres seculares da Igreja Católica, pois ele vê a moralidade das ordens religiosas como aquela aplicável a todos os cristãos como parte do “terceiro uso da lei”, [a saber,] piedade e santificação. Esse entendimento é muito semelhante ao do islã que, embora veja o ascetismo celibatário como algo absolutamente inaceitável, acredita que a piedade moral é um imperativo absoluto.

 

10. As implicações contemporâneas dos textos da Reforma em relação aos judeus e muçulmanos

Uma investigação sobre as aplicações contemporâneas e a relevância das atitudes da Reforma em relação aos turcos e judeus é crítica. Se a terrível apropriação dos sentimentos antijudaicos de Lutero por parte dos nazistas funcionar como um indicador, a consciência crítica da situação dos imigrantes muçulmanos na Europa torna-se vital. A Alemanha atua como um microcosmo paradigmático para o restante da Europa. Com o surgimento da nova e totalmente transcendente “identidade europeia unida” (como nos EUA) superando as velhas identidades nacionalistas provincianas germânicas, a questão do “outro” torna-se crítica. Isso se aplica particularmente a imigrantes não europeus (nacionalizados ou não), especialmente os muçulmanos e, especificamente, os turcos na Alemanha. Isso se tornou ainda mais crucial desde 11 de setembro de 2001, com a cada vez mais crescente retórica islamofóbica. A presença contemporânea do islã e sua crescente radicalização fazem brotar questões sérias, e desafiam alguns dos pressupostos fundamentais por trás da democracia liberal e do regime dos direitos humanos que se desenvolveu nos últimos séculos na Europa. Questões como:

  • liberdade de expressão versus discursos de ódio (por exemplo, as imagens depreciativas do profeta Maomé e a essencialização terrorista associada ao islã, a liberdade de imprensa do Charlie Hebdo e seu discurso e os parâmetros do discurso de ódio contra estrangeiros);
  • o caráter da liberdade religiosa em um contexto secular pós-cristão;
  • o caráter da lei (por exemplo, a questão do sofisma assustador da imposição da shariah [lei islâmica] pelos muçulmanos sobre uma Europa secular);
  • a liberdade de religião e expressão consagrada no direito de se usar o véu versus a imposição estatal de um código de vestimenta;
  • a ascensão de organizações (neonazistas) como PEGIDA[78] e sua política xenófoba;
  • partidos políticos nacionalistas e sua xenofobia extrema como Partij voor de Vrijheid de Geert Wilders e Front National de Marine Le Pen etc.

demandam uma séria reavaliação da democracia, dos padrões aceitos dos direitos humanos, bem como o reconhecimento do papel reconstrutivo dos imigrantes na história europeia após a Segunda Guerra Mundial e a apropriada justiça compensatória na avaliação desses papéis construtivos contributivos.

Dada a horrível história do holocausto alemão, com algum nível de permissividade cooperativa por parte da maior parte da Europa, ou pelo menos do seu consentimento por meio do silêncio e da omissão, não é corretamente aceitável fazer declarações antijudaicas ou negar o holocausto;[79] os quais são, com justiça, percebidos como crimes de ódio. A mesma cortesia, no entanto, não se estende às minorias muçulmanas que agora residem na Europa. A linguagem, as imagens e a retórica altamente negativas que uma vez foram aplicadas aos judeus são agora usadas impunemente contra os muçulmanos e contra o islã, com pouca ou nenhuma aprovação contra tais práticas.

Em 2009, foi estimado pelo Escritório Federal de Migração e Refugiados da Alemanha que havia 4,3 milhões de muçulmanos na Alemanha (ou seja, 5,2% da população geral). Cerca de 63% deles eram descendentes de turcos (ou seja, 2,7 milhões, constituindo 3,0% da população total). Cerca de 65% desses muçulmanos eram cidadãos totalmente alemães. E, com a nova crise de refugiados de 2015, a situação está mudando rapidamente para um cenário de inclusão de ainda mais muçulmanos. Isso dá alguma ideia do contexto numérico contemporâneo das minorias religiosas na Alemanha, contexto esse que se torna especialmente crítico quando comparado à população judaica na Alemanha pré-Segunda Guerra Mundial: “Na Europa central do pré-guerra, a maior comunidade judaica estava na Alemanha, com cerca de 500 mil membros (0,75% do total da população alemã)”.[80] Se esse pequeno número de judeus foi considerado inaceitável de 1933 em diante e, portanto, houve a aceitação generalizada dos campos de concentração e até mesmo do genocídio,[81] perguntamo-nos aonde pode levar essa atual, muito maior, presença turca e muçulmana, caso algum gatilho qualquer seja disparado. Como o Judenfrage anterior (a Questão Judaica), estamos agora enfrentando o Muslimfrage (a Questão Muçulmana), e a preocupação é que ele poderia ser convertido em uma remoção estruturada mais violenta dos “outros” contemporâneos, semelhante àquele exercido contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

No contexto contemporâneo, os turcos na Alemanha são, por um lado, uma minoria étnica e religiosa vulnerável, fraca e dependente, assim como foram os judeus da época de Lutero (e de Hitler). Às vezes, são tratados com descaso caprichoso e alta coerção moral e social. Devido ao vínculo causal de serem inicialmente uma “classe inferior/trabalhadora” e uma minoria étnica vulnerável, o que Lutero e a Reforma perceberam acerca dos turcos otomanos não se aplica diretamente aos turcos alemães contemporâneos. No entanto, o que ele escreveu sobre os judeus pode ser facilmente aplicado a eles.

Por outro lado, eles são muçulmanos, e, portanto, após o fim da Guerra Fria e do colapso da União Soviética, tornaram-se o novo inimigo binário. Eles são considerados, desse modo, genericamente culpados e estereotipados como parte da “Guerra ao Terror” e, como resultado, o status dos turcos na Alemanha sofreu uma grande mudança desde 11 de setembro de 2001 (como é o caso de todo imigrante muçulmano em toda a Europa). De uma força de trabalho vulnerável de colarinho azul – e, portanto, de certa forma, tolerada por conveniência econômica e social –, os muçulmanos, agora, representam a nova Inbegriff der Feindschaft ([símbolo da] inimizade), com implicações quase apocalípticas para o que os valores sociais ocidentais representam, e, por conseguinte, eles agora são vistos como uma ameaça e um desafio a essa “vida virtuosa normativa”.

Assim sendo, aqui os textos de Lutero sobre os turcos otomanos podem ser aplicados de forma bastante direta. Isso promoveu a maior das mudanças e, com ela, novos conjuntos de preconceitos: o islã e os muçulmanos não são mais vistos como uma minoria fraca e vulnerável que vive na Europa em guetos culturais e sociais específicos; pelo contrário, agora eles são uma ameaça altamente hiperbolizada e um inimigo muito poderoso, tanto dentro como fora, que poderia assumir o controle da Europa em um prazo muito curto, impor sua lei (shariah) aos cidadãos locais e destruir os valores e conquistas europeus. Portanto, em face da atual presença islâmica europeia, ambas as abordagens de Lutero, em relação aos judeus e aos turcos, têm aplicação e possibilidades.

 

Conclusão

Neste artigo, procurei fazer uma hermenêutica comparativa dos textos de Lutero e Calvino quanto aos judeus e os muçulmanos (turcos), os eventos históricos em que seus escritos surgiram e o contexto geral de seu trabalho a fim de radicalizar a Reforma e lançar luz crítica sobre os seus pré-julgamentos (o preconceito europeu – para usar o conceito maravilhoso de Hans-Georg Gadamer[82]) contra o “outro”. Por trás dessa tarefa hermenêutica, está a preocupação para com o desenvolvimento da teologia da Reforma com foco nos “outros religiosos” dos judeus e muçulmanos (turcos) durante aquele período, e o que isso significa para os nossos próprios dias. Devemos ir para além da santificação dos textos e eventos da Reforma para obtermos assertividade e material doutrinário e dogmático, e também [ir além] da atitude de auto justificação que desenvolvemos em relação a esses textos da Reforma. Faço votos que essa tarefa forneça pistas críticas para a nossa própria autocompreensão em nosso contexto e em nosso tempo para que uma abordagem mais virtuosa do “outro” contemporâneo seja feita; para que a justiça e a paz prevaleçam.

Nos pais da Reforma, vemos um alto nível de antipatia não relacionado apenas ao islã que, é claro, sempre esteve presente mesmo antes da Reforma, mas também em relação ao papa (catolicismo), anabatistas e judaísmo. Eles usam linguagem, expressões idiomáticas e vocabulário espantosos e, para nossos ouvidos atuais, anacronicamente rudes. Nenhuma porção atual de justificativas ou racionalizações poderia, ou deveria, proteger essas grandes figuras da teologia e da história da Igreja em face de seu vitríolo e de sua calúnia. Quem o faz, acaba dando argumentos muito pueris para defendê-los, ou ainda se mostra totalmente preconceituoso, com sua ortodoxia petrificada, sem nous ético e com pouca ou nenhuma consciência das restrições contemporâneas de linguagem, idioma e metáfora. Na igreja pós-ecumênica e pós-conciliar, e em uma igreja que vive na pós-cristandade (um fato frequentemente afirmado, mas raramente epistemologicamente reconhecido e seguido), não podemos nos permitir uma teologia que comece com a exclusão qualquer que seja a posição de dupla-predestinação na escola calvinista contemporânea. Já experimentamos as terríveis implicações de tal exclusão até mesmo na história de nossos tempos e, portanto, nunca poderemos vê-la como tendo qualquer valor ou lugar ao se fazer teologia aos pés da cruz.

A teologia da Reforma, mais do que qualquer outra coisa, enfatiza corretamente a suficiência e a universalidade da graça de Deus em Cristo. Também nos prepara para reconhecer abertamente o caráter inclusivo geral do evangelho de Jesus Cristo e a centralidade da missio dei no contexto dessa inclusividade. A Reforma entendeu isso, pregou e até desenvolveu mantras para esse efeito, contudo a Reforma ainda era uma criança – embora a última criança ofegante – da cristandade. Ambos os principais reformadores, Lutero e Calvino, haviam bebido profundamente daquela fonte. Portanto, embora falassem de sola gratia e sola fide, isso foi usado para fins exclusivistas e não para a inclusividade radical que tal conceito teológico deve implicar, pois não se baseia no esforço humano, na vontade ou mesmo na presença sacramental eclesial, mas é localizado no Deus reconciliador de 2 Coríntios 5.17ss e no Deus kenótico do hino filipense (Fp 2). Essa inclusão deve fazer parte da nossa piedade, da nossa santificação, e deve ser vista como um imperativo cristão e parte do terceiro uso da lei.

Na história recente, a mudança de foco da teologia, eclesiologia e missiologia tem estado seriamente envolvida na recuperação tanto da vocação ecumênica quanto do imperativo da inclusão. Assim, iniciamos uma relação dialógica muito construtiva com os católicos. Por isso devemos ser gratos a Deus. De modo ainda mais radical, ao longo dos últimos setenta anos ou mais, reconhecemos o persistente pecado ocorrido contra os judeus na igreja por cerca de 1.700 anos e a sua mais vil manifestação no holocausto. No entanto, esse último nem sempre é um verdadeiro discurso ecumênico, sendo muitas vezes realizado pela mera culpa que ainda permeia a nossa atitude para com o Estado de Israel e, portanto, nossa total incapacidade de desafiar os próprios vícios que condenamos em nossa recém-cunhada e hifenizada compreensão da continuidade da fé judaico-cristã.[83] Para mim, o imperativo é desenvolver um ouvido solidário de inclusão e uma parceria dialógica e vocacional para o bem do mundo que Deus ama e para o shalom/ salaam de Deus. Espero que isso se torne parte do novo imperativo para a compreensão da teologia da Reforma e parte de sua santificação. Normalmente, quando coloco isso para meus colegas e amigos no contexto do islã, sou rapidamente lembrado de que isso só acontecerá quando o islã também o buscar. Essa resposta realmente me entristece porque nossa santificação e piedade não podem ser baseadas na reciprocidade ou na teologia do quid pro quo; em vez disso, deveriam ser uma parte da expressão da nossa fé, independente do que os outros fazem. Se isso for um imperativo para a prática da fé muçulmana, piedade e santificação seriam coisas que caberiam a eles decidir praticar e coisas pelas quais lutar, mas isso é claramente exigido de nós como parte do imperativo fundamental e da dialética do amor a Deus e do amor ao próximo. Mesmo os piores antinomianos entre nós têm de reconhecer a qualidade absoluta desses dois mandamentos. No entanto, quando se trata dos muçulmanos, a quem caluniamos e odiamos por cerca de 1.400 anos, e mesmo em nosso melhor momento da história, a Reforma, não mostramos nenhuma compaixão ou humanidade para com eles, mas continuamos inabaláveis em nossos preconceitos e ódio. Devemos continuar nesse preconceito e ódio, escondendo-nos atrás do fato de que isso faz parte de nossas confissões, tradições, história e herança da Reforma, ou devemos olhar para essa mesma Reforma por meio de seu apelo à Ecclesia Reformata, Semper Reformanda (a igreja reformada, sempre sendo reformada) para superar esses preconceitos e buscar um admirável mundo novo? Assim como agora vemos nossos irmãos e irmãs católicos e judeus como parte integrante de nossos próprios imperativos biográficos teológicos, também não seria hora de considerar os muçulmanos como igualmente parte de uma realidade biográfica e teológica contemporânea, e vê-los como nossa realidade teológica e imperativo missiológico com aquele olho inclusivo? Além disso, devemos reconhecer a verdade de sua história: que o islã não é um novo entrante em nosso horizonte por causa de novos imigrantes e do legado colonial. Em vez disso, estivemos entrelaçados nos momentos fundamentais de nossa história e pensamento contemporâneo, especialmente como as igrejas da Reforma. Tal tarefa é empolgante e desafiadora, e pode até mesmo colocar em risco nossa segurança e nosso senso de valor em relação ao outro. Mas tal compreensão vem das profundezas da teologia da cruz, com sua fundação no Gólgota e não em algum padrão monárquico gerado pelo cristianismo constantiniano e sua concomitante cristandade. Não é gerada com o poder de dominar e vencer, mas com o poder de amar e morrer, com uma ressurreição e esperança pentecostal para todos.

 

Sobre o autor
Charles Amjad-Ali foi ordenado presbítero pela Igreja do Paquistão em 1987. Sua formação acadêmica inclui pós-doutorado em Direito Islâmico e História (Columbia University), doutorado em Filosofia Contemporânea (Frederich Wilhelm University, Alemanha) e mestrado em Divindade (Princeton Theological Seminary). Professor emérito no Luther Seminary (EUA), ele já lecionou em instituições como Princeton e Notre Dame, e também serviu em faculdades na África do Sul, Suécia, Inglaterra, Alemanha, Austrália, Japão, Filipinas e em seu Paquistão natal. Membro da força-tarefa cristão-muçulmana da Federação Mundial Luterana em Genebra (Suíça), Amjad-Ali publicou, entre outros livros, Islamophobia [Islamofobia] (2006), Liberation Ethics [Ética da Libertação] (1985) e Passion for Change [Paixão por Mudança] (1989).

 

O texto desse artigo é o primeiro capítulo (páginas 1-38) da obra The Protestant Reformation and World Christianity: Global Perspectives [A Reforma Protestante e o Cristianismo Mundial: Perspectivas Globais], editado por Dale Irwin e publicado para o 500º aniversário da Reforma pela William B. Eerdmans Publishing Co (Grand Rapids, MI) em 2017. O Martureo obteve a devida autorização para traduzi-lo e republicá-lo. Tradução: Marcos Tachikawa. Edição: Fernanda Schimenes.

 

[1] Carlos Madrigal, “Jesús ante el Contacto com las Religiones” [“Jesus antes do Contato com as Religiões”] (outubro de 2020), não publicado até então.

[2] TULIP significa 1. Total depravity (deprevação total); 2. Unconditional election (eleição incondicional); 3. Limited atonement (expiação limitada); 4. Irresistible (or Irrevocable) grace (irresistível ou irrevogável graça); e 5. Perseverance of the saints (perseverança dos santos).

[3] O centro da peregrinação muçulmana – Haje (um dos cinco pilares do islã), em Meca, Arábia Saudita. A inauguração da obra de arte foi repetidamente adiada. Ironicamente, as placas de rua apontando para o monumento tinham duas setas diferentes: uma para calvinistas e outra para não calvinistas, talvez simbologias de “dupla predestinação”.

[4] Jan Peter Balkenende, primeiro ministro da Holanda de 2002-2010, tinha formação como jurista, mas também ensinou Teologia na Free University de Amsterdam.

[5] Epistemologia refere-se ao ramo da filosofia que se ocupa do conhecimento científico, da teoria do conhecimento (N.do T.).

[6] Cf. Foreign Affairs – revista norte-americana sobre políticas externas – 72: 3 (verão de 1993): 22-28. Mais tarde, foi convertido no livro The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order [O Choque das Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial] (Nova York: Simon e Schuster, 1996).

[7] Para uma avaliação crítica da história e do uso generalizado da expressão “choque de civilizações”, consulte meu Islamophobia or Restorative Justice: Tearing the Veils of Ignorance [Islamofobia ou Justiça Restaurativa: Rasgando os Véus da Ignorância] (Johannesburg: Ditshwanelo CAR2AS, 2006), esp. 2-5.

[8] Além da questão existencial colocada pelos imigrantes muçulmanos que vêm em sua maioria de ex-colônias europeias, o problema do desafio da inclusão da Turquia na União Europeia permanece claramente sem a devida atenção.

[9] A Paz de Augsburgo ocorreu entre o Sacro Imperador Romano (Carlos V) e uma aliança de príncipes luteranos, a Schmalkaldic League [Liga de Esmalcalda]; calvinistas e anabatistas não faziam parte desse acordo. Os Tratados de Westfália expandiram a Paz de Augsburgo para incluir os calvinistas mas, mesmo aqui, os anabatistas foram excluídos, uma vez que não possuíam um príncipe que partilhasse da convicção demandada para representá-los no tratado. Posteriormente, foram perseguidos igualmente por todos os príncipes de outras religiões (denominações) e, assim, migraram para o Novo Mundo, não encontrando abrigo seguro em qualquer lugar da Europa.

[10] Isso foi, em grande parte, baseado numa hermenêutica muito pobre de Lucas 20.20-26, e na frase muito repetida “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Cf. o meu “Confusing Power and Authority: A Case Against Idolatrous Nationalism” [“Confundindo Poder e Autoridade: Um Caso Contra a Idolatria do Nacionalismo”] em Working Preacher, 19 de janeiro de 2009. Disponível em: http://www.workingpreacher.org/craft.aspx?post=1646. Para uma discussão mais teológica da separação de “Igreja e Estado” e “Religião e Política”, veja meu “The Religious Dimension of Social Change” [“A Dimensão Religiosa da Mudança Social”] em Shin Chiba, George R. Hunsberger e Lester E.J. Ruiz (Ed.), Christian Ethics in Ecumenical Context: Theology, Culture, and Politics in Dialogue [Ética Cristã no Contexto Ecumênico: Teologia, Cultura e Política em Diálogo] (Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Co., 1995), 268-278.

[11] Isso significa Jerusalém, Antioquia e Alexandria; mais tarde, até mesmo Constantinopla. Roma foi a exceção, embora também tenha chegado muito perto de ser capturada. O sultão Mehmet II do Império Otomano claramente estava de olho em Roma, já tendo capturado Otranto em 1480. No entanto, ele morreu repentinamente, e a expansão turca foi interrompida devido a conflitos internos sobre sua sucessão.

[12] Houve pelo menos oito cruzadas, das quais as quatro primeiras são as mais relevantes. Os gritos de batalha da primeira cruzada – “Deus assim o deseja” e “Para libertar a Terra Santa dos infiéis” – estabeleceram-se como a razão de ser evidente para as cruzadas subsequentes. A primeira cruzada foi bem-sucedida: Jerusalém foi tomada em 1099, estabelecendo o reino dos cruzados de Jerusalém, que durou até 1187. A segunda foi um desastre. A terceira levou ao Tratado de Ramla em 1192, permitindo a peregrinação cristã a Jerusalém, apesar da vitória muçulmana e da continuidade do controle da própria cidade. Na quarta, em 1204, os cruzados saquearam Constantinopla (cerca de 250 anos antes de sua subjugação pelos muçulmanos otomanos em 1453), profanando muitas igrejas ortodoxas, incluindo Hagia Sophia (construída em 537), um dos locais eclesiais mais sagrados de todos do cristianismo.

[13] Steven Runciman, A History of the Crusades [A História das Cruzadas] (Nova York: Harper and Row, 3 volumes, 1967), 480.

[14] Veja http://history-world.org/crusades.htm. Acesso em: 9 de fevereiro de 2015.

[15] Cf. Gustavo Perednik, um estudioso da judeofobia, que afirma: “(…) A primeira metade deste milênio testemunhou genocídios de judeus como uma norma [o último milênio terminou com o holocausto alemão/europeu]. (…) Os principais genocídios foram as três primeiras Cruzadas e as quatro campanhas de assassinato de judeus que se seguiram”. Perednik também aponta com razão que “o Papa Urbano II convocou uma campanha ‘para libertar a Terra Santa dos infiéis muçulmanos’. (…) Os cruzados decidiram começar a limpeza dos ‘infiéis em casa’, e atacaram todos os judeus sobre Lorraine, massacrando aqueles que recusaram o batismo. Logo se espalhou o boato de que seu líder Godfrey jurou não partir para a Cruzada até que ele vingasse a crucificação derramando o sangue dos judeus, e que ele não poderia tolerar a existência de qualquer homem que se chamasse um judeu. Na verdade, um denominador comum dos genocídios (…) foi a tentativa de exterminar toda a população judaica, incluindo as crianças”. Assim, “no final do século 13, os judeus foram expulsos da Inglaterra, França e Alemanha”. Veja em seu “Judeofobia – Anti-Semitismo, Ódio aos Judeus e Anti-Sionismo”, uma série de palestras baseadas em seu livro La Judeofobia: Como y Cuando Nace, Donde y Por Que Pervive (México: Tusquets, 2001), disponível on-line em: http://www.zionism-israel.com/his/judeophobia.htm.

[16] Os muçulmanos sempre estiveram presentes nas condenações dos reformadores, todavia de modo mais brando do que naquelas dirigidas à Igreja Católica. Os judeus não tinham status de poder, exceto como um lembrete teológico constante de sua ligação com Jesus, sem conversões potenciais ao cristianismo e a aceitação de Jesus como o Messias. Talvez, inconscientemente, eles lembrassem os cristãos do fracasso em alcançar esses objetivos do ministério e missão de Jesus.

[17] O ano em que o general muçulmano Tariq ibn Ziyad (em homenagem a Gibraltar, ou seja, Jabal Tariq, a montanha de Tariq) derrotou o rei Roderico, o último dos governantes visigodos da Hispânia, e estabeleceu o domínio muçulmano na Península Ibérica.

[18] O ano de 1492 é agora mais conhecido por Cristóvão Colombo e a “descoberta” (ou seja, colonização) das Américas sob o patrocínio dos monarcas espanhóis.

[19] Os convertidos muçulmanos eram chamados de mouriscos, ou seja, mouros, um termo amplamente aplicado aos convertidos muçulmanos espanhóis nativos, e não tanto aos de ascendência árabe. Os judeus convertidos eram pejorativamente chamados de marranos – o que significa porcos, ou seja, “imundo” e “sem escrúpulos”. Para os judeus, serem chamados de porcos, especialmente no contexto de 800 anos de domínio islâmico (que tem leis dietéticas religiosas semelhantes), era obscenamente ofensivo; seus descendentes, portanto, naturalmente preferiam o termo hebrauico anusim, que quer dizer por força.

[20] Esse genocídio ocorreu em diferentes locais por toda a Espanha: Sevilha, Córdoba, Toledo, Aragão, Catalunha, Majorica, Valência, Palma, Barcelona etc.

[21]As estimativas do número de judeus expulsos da Espanha variam. Juan de Mariana, um jesuíta espanhol, estima que esse número chegue a 800 mil. Veja sua famosa Historiae de rebus Hispaniae [História dos Espanhóis], uma obra de 20 volumes publicada pela primeira vez em Toledo em 1592 (trad. em inglês por J. Stevens como The General History of Spain em 1699). O rabino Isidore Loeb, editor fundador do jornal judeu Revue des Études Juives, estima que esse número não passe de 165 mil. Ele também mostra que cerca de 90 mil (mais de 50%) desses refugiados migraram para a Turquia ao serem recebidos pelo sultão. Ver “Le nombre des juifs de Castille et d’Espagne” na Revue des Études Juives, vol. xiv, 1887, 162-183.

[22] Em 1609, Filipe III emitiu um Ato de Expulsão dos Muçulmanos (Expulsión de los Moriscos) que foram deixados para trás depois de 1492 porque os considerava leal aos turcos otomanos e, portanto, como uma quinta coluna subversiva na Península Ibérica. Veja, especialmente Mary E. Perry, The Handless Maiden: Moriscos and the Politics of Religion in Early Modern Spain [A Donzela sem Mãos: Mouriscos e a Política Religiosa na Espanha Moderma Recente] (Princeton: Princeton University Press, 2005).

[23] O próprio termo deriva da palavra latina mediterraneus (medi: “meio” ou “entre”; + terra: “terra”), ou seja, “no meio da terra” ou “entre terras”, sendo o mar entre os então três continentes conhecidos: África, Ásia e Europa. Os alemães o chamaram corretamente de Mittelmeer, ou seja, o mar do meio.

[24] Godos, visigodos, hunos, vândalos, francos, anglos, saxões etc. Essas tribos estavam localizadas de maneira variada no leste da Alemanha, Pomerânia no Mar Negro, Escandinávia e Cáucaso na Ásia Central, bem como tribos normandas germânicas controlavam Portugal e Espanha (Hispânia), sul da Polônia, algumas partes do Norte da África, da França e Grã-Bretanha, especialmente depois que os romanos deixaram a área em 410 d.C..

[25] Esse mito foi cunhado na moderna historiografia europeia para definir as províncias e cortes ocidentais do Império Romano como uma entidade separada, e para dar-lhes igualdade com o “Império Romano Oriental” em Constantinopla. O fato é que a capital foi transferida de Roma para Bizâncio por Constantino em 330 (após sua morte rebatizada de Constantinopla), e permaneceu a capital do Império Romano até 1204 e a quarta cruzada. No entanto, nomeamos o governo carolíngio de Carlos Magno quinhentos anos depois (800-814) com a bênção do bispo de Roma (Papa Leão III). Para essa historiografia, veja esp. Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire [A História do Declínio e Queda do Império Romano], 6 vols. (Londres: Straham & Cadell, 1776-1789).

[26] Sidney H. Griffith, The Church in the Shadows of the Mosque: Christians and Muslims in the World of Islam [A Igreja nas Sombras da Mesquita: Cristãos e Muçulmanos no Mundo do Islã] (Princeton: Princeton University Press, 2008), 18. Ver também: Majid Fakhry, A History of Islamic Philosophy [História da Filosofia Islâmica], 3a ed. (Nova York: Columbia University Press, 2004); Fernand van Steenberghen, Aristotle and the West: The Origins of Latin Aristotelianism [Aristóteles e o Ocidente: As Origens do Aristotelismo Latino], trad. por Leonard Johnston (Nova York: Humanities Press, 1970); Charles Burnett, “The Translating Activity in Medieval Spain” [“A Atividade de Tradução na Espanha Medieval”], em The Legacy of Muslim Spain [O Legado da Espanha Muçulmana], 2 vols., Ed. Salma Khadra Jayyusi, vol. 2 (Leiden: E.J. Brill, 1994), 1036-58; Burnett, “Arabic into Latin: The Reception of Arabic Philosophy into Western Europe” [“Árabe para o Latim: A Recepção da Filosofia Árabe na Europa Ocidental”], em The Cambridge Companion to Arabic Philosophy, Peter Adamson e Richard C. Taylor (Ed.) (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 370-404; John E. Wansborough, The Sectarian Milieu: Content and Composition of Islamic Salvation History [O Meio Sectário: Conteúdo e Composição da História da Salvação Islâmica] (Oxford: Oxford University Press, 1978). Veja também: Islamofobia [Islamofobia] do presente autor (op. cit.), especificamente o primeiro capítulo.

[27] Foi tradicionalmente datado de 1264, embora algfununs estudos recentes o coloquem perto do final da vida de Tomás, em algum lugar entre 1270 a 1273. É o sucesso desse texto que traz Tomás ao conhecimento papal e à autoria da Summa Theologica.

[28] Essa presença turca na Europa pode ser datada da Batalha de Maritsa em 1371, vencida pelos otomanos, ou ainda da vitória turca na Batalha de Kosovo em 1389. Essa última adquiriu um papel central no folclore sérvio, e é vista como a batalha épica que marcou o início da má sorte para a Sérvia. Esse folclore desempenhou um papel bastante significativo nas Guerras dos Balcãs da década de 1990, levando ao genocídio dos muçulmanos cerca de 600 anos depois. O Império Otomano também conquistou as áreas gregas da Trácia e grande parte da Macedônia após a Batalha de Maritsa. Sofia caiu em 1382, seguida por Tarnovgrado em 1393, e pelo estado da Romênia/Hungria após a Batalha de Nicópolis em 1396. A vitória turca sobre as forças húngaras na Batalha de Varna, em 1444, expandiu seu controle sobre os Balcãs, e foi de preocupação especial para Calvino. Veja meu artigo “Debilitando a esperança do passado e do futuro: Calvino, Calvinismo e Islamismo” em Reformed World [Mundo Reformado], vol. 61, No. 2 (2011), 120-133.

[29] O que agora é a Grécia moderna também fez parte do Império Otomano de meados do século 15 até sua declaração de independência em 1821, um período de aproximadamente trezentos anos, historicamente conhecido como Tourkokratia ou “domínio turco”.

[30] Ver, por exemplo, Stephen O’Shea, Sea of Faith: Islam and Christianity in the Medieval Mediterranean World [Mar de Fé: Islã e Cristianismo no Mundo Medieval Mediterrâneo] (Nova York: Walker & Company, 2006).

[31] Adam S. Francisco afirma corretamente que “(…) a tradução de Robert é mais bem descrita como uma paráfrase e, da mesma forma, serviu para alimentar a maioria das polêmicas antimuçulmanas medievais”. Veja seu Martin Luther and Islam: A Study in Sixteenth-Century Polemics and Apologetics [Martinho Lutero e Islã: Um Estudo em Polêmicas e Apologéticas do Século 16] (Leiden: Brill, 2007), 12.

[32] Convém ressaltar que, ao lidar com a revelação, o Concílio Vaticano de 1869-70 empregou quase literalmente o tratamento de Tomás sobre o assunto nessa obra. Acho muito fascinante que a maioria das polêmicas cristãs contra o islã faça alguma referência, ou repita o argumento dessa obra até hoje, sem sequer ter lido esse material ou ter qualquer conhecimento da própria obra ou mesmo de sua existência.

[33] Mais tarde, ele escreveu mais duas obras contra Ibn Rushd e o aristotelismo radical: De unitate intellectus contra Averroistas [A unidade do intelecto contra os Averroístas] (1270), em que criticou o averroísmo como incompatível com a doutrina cristã; e De aeternitate mundi contra murmurantes [A eternidade do mundo contra os murmuradores] (1270-72), na qual tratou da controversa teoria averroísta e aristotélica quanto à ausência de um princípio do universo.

[34] Samuel M. Zwemmer (que ensinou missões no Seminário Teológico de Princeton e depois teve um instituto missionário no Seminário Fuller com o seu nome) considerou Llull o primeiro missionário para os muçulmanos. Cf. Raymond Llull: First Missionary to the Moslems [Raymond Llull: Primeiro Missionário aos Muçulmanos] (Nova York: Funk & Wagnalls, 1902).

[35] Veja Leonard Patrick Harvey, Islamic Spain [Espanha Islâmica], 1250 to 1500 (Chicago: University of Chicago Press, 1990), 79-85.

[36] Esp. Isaías 10.5 e Jeremias 2.46.

[37] Norman Daniel, Islam and the West: The Making of an Image (Edimburgo: Edinburgh University Press, 1960; edição revisada de 1993), 326.

[38] Colin Chapman, Islam and the West: Conflict, Coexistence or Conversion? (London: Paternoster Press, 1998), 11.

[39] Ver: Sarah Henrich e James L. Boyce, “Martin Luther – Translations of Two Prefaces on Islam: Preface to the Libellus de ritu et moribus Turcorum (1530) and Preface to Bibliander’s Edition of the Qur’ān (1543)” em Word & World [Palavra e Mundo], vol. XVI, No. 2, Primavera de 1996, 250-266, esp. 252, nota de rodapé 3, citando As Explicações das Noventa e Cinco Teses nas Obras de Lutero, trad. Harold J. Grimm e Helmut T. Lehmann, vol. 31 (Philadelphia: Muhlenberg Press and Fortress Press, 1957), 79-252, esp. 91-92.

[40] Ver: Explanations of the Disputation Concerning the Value of Indulgences [Explicações das Disputas Concernentes ao Valor das Indulgências], popularmente conhecido como The Explanations of the Ninety-Five Theses [As Explicações das Noventa e Cinco Teses], op. cit., 92.

[41] Alguns até sugeriram que chamado hino da Reforma, “Castelo Forte é Nosso Deus” (c. 1527-1529), baseado no Salmo 46, foi escrito no contexto do cerco turco de Viena em 1529.

[42] Conforme citado por Henrich e Boyce (op. cit.), 252.

[43] Ver: Amjad-Ali, “Debilitating Past” [“Passado Debilitante”].

[44] George Forell, “Luther and the War Against the Turks” [“Lutero e a Guerra Contra os Turcos”] em William Russell (Ed.), Martin Luther, Theologian of the Church: Collected Essays [Martinho Lutero, Teologia da Igreja: Ensaios Coletados] (St. Paul: Luther Seminary, 1994), 127.

[45] On War Against the Turks [Na Guerra Contra os Turcos], LW 46:170. Ver Francisco, 80.

[46] D. Martin Luthers Werke: Tischreden [Obras de D. Martinho Lutero: Discursos de Mesa], 6 vols. (Weimar: Bohlau, 1912–1921).1:135.15–17: ‘Papa est spiritus Antichristi, et Turca est caro Antichristi. Sie helffen beyde einander wurgen, hic corpore et gladio, ille doctrina et spiritu’; cf. também 3:158.31–35.

[47] Francisco, 83-4.

[48] Henrich & Boyce, 255.

[49] Nascido em Bischofszell, Suíça, Theodor Buchmann é conhecido por seu nome grego de Theodore Bibliander, uma prática comum (junto com o latim) para elevar o status da pessoa na Europa central.

[50] Henrich & Boyce, 256.

[51] Luther’s Works [Trabalhos de Lutero] (Saint Louis, MO: Concordia Publishing House, 1955), Vol. 46:176.

[52] Portanto, ao contrário de sua ênfase na língua franca, Lutero queria a nova tradução do Alcorão em latim e não em alemão, mantendo a distinção tradicional entre lingua sacra e lingua popularis. Esta foi talvez mais uma forma de manter a distinção entre a lingua intelligentia/academia e a lingua popularis.

[53] Henrich & Boyce, 266. Ênfase adicionada, visto que Servet é de importância crítica no encontro de Calvino com o islã.

[54] R.W. Southern, Western Views of Islam in the Middle Ages [Visões Ocidentais sobre o Islã na Idade Média] (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1962, 3ª impressão 1982), 105-106.

[55] Um tratado publicado originalmente em 1481.

[56] Henrich & Boyce, 260.

[57] Apesar de toda a sua negatividade sobre o islã, aqui Lutero involuntariamente vê a conversão ao islã com base em virtude e moralidade, ao invés de pontuar a causa usual, que seria a com base na espada.

[58] Henrich & Boyce, 259, ênfase adicionada.

[59] Luther’s Correspondence [Correspondências de Lutero], 1:140-141, conforme citado em Francisco, 68.

[60] Francisco, 69, citando Eyn Sermon von den newen Testament [Sermão de Eyn no Novo Testamento] em Luther’s Works [Trabalhos de Lutero], Vol. 35:107.

[61] Luther’s Works [Trabalhos de Lutero], Vol. 35:90.

[62] ‘Exsurge Domine’ em Carl Mirbt (Ed.), Quellen zur Geschichte des Papsttums und das römische Katholizismus, 2a ed. (Tübingen: J.C.B. Mohr, 1901), 184. O Papa Leão X também enviou uma carta ao Eleitor Frederico acompanhando a bula, alegando que Lutero “favorece os turcos”. Ver Francisco, 70, nota de rodapé 11.

[63] Luther’s Works [Trabalhos de Lutero], vol. 32: 89-91, conforme citado em Francisco, 70. O papa excomungou Lutero oficialmente em 1521 por meio da bula Decet Romanum Pontificen.

[64] Luther’s Works [Trabalhos de Lutero], 46:161–162, ênfase adicionada.

[65] Luther’s Works [Trabalhos de Lutero], 46:185–186.

[66] Francisco, 77, citando Eine Heerpredigt wider den Türken in Luther’s Werken [Um Sermão do Exército contra os Turcos nas Obras de Lutero], 30/2:173, 4-5, 9. Esse argumento de Lutero foi usado por alguns luteranos contemporâneos que pressionam por uma reformulação da “teoria da guerra justa” fora dos parâmetros católicos; veja esp. o “Prefácio” de Charles Lutz para John H. Yoder, When War is Injust: Being Honest in Just-War Thinking [Quando a Guerra é Injusta: Sendo Honesto no Pensamento sobre Guerra Justa] (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1996) e Gary Simpson, War, Peace and God: Rethinking the Just-war Tradition [Guerra, Paz e Deus: Repensando a Tradição da Guerra Justa] (Minneapolis, Fortaleza de Augsburg, 2007). Esses luteranos, entre muitos outros, consideram o pacifismo um anátema para a fé cristã com base no conceito de Lutero da soldadesca como vocação. Portanto, por razões diferentes, luteranos e católicos têm lugar teológico para uma teoria da guerra justa. Ambos são contra o pacifismo dos anabatistas, quakers e outros, que eles veem como violadores da doutrina da Igreja. Em outro lugar, argumentei que essa doutrina não tem fundamento no testemunho bíblico (especialmente no Novo Testamento) ou na tradição da Igreja como tal, mas é baseada na posição seminal de Cícero sobre esse assunto, que deve ser irrelevante para uma teologia que reivindica sola scriptura. Veja meu “Jihad e a Teoria da Guerra Justa: Dissonância e Verdade” em Diálogo: Um Jornal de Teologia, vol 48, No. 3, Outono de 2009, setembro, 239-247.

[67] Jan Slomp, “Calvin and the Turks” [“Calvino e os Turcos”] em Haddad, Yvonne Yazbeck e Wadi Z. Haddad (eds.), Christian-Muslim Encounters [Encontros Cristãos-Muçulmanos] (Gainesville: University Press of Florida, 1995), 126-142.

[68] Servet já havia sido avaliado muito negativamente por Lutero, como mencionado acima.

[69] Em 1531, ele publicou The Errors of the Trinity [Os Erros da Trindade].

[70] Ver “The Complaint of Nicholas de la Fontaine Against Servetus” (14 de agosto de 1553) em Translations and Reprints from the Original Sources of European History [Traduções e Reimpressões das Fontes Originais de História Europeia], Volume 3 (Filadélfia: Departamento de História da Universidade da Pensilvânia, 1907), 12-16, esp. 16: “Nos artigos do Procurador Geral encontram-se várias acusações. (…) Dentre elas estão as seguintes: 21. Item, se ele não sabia que sua doutrina era perniciosa, considerando que favorece judeus e turcos, dando desculpas para eles, e se ele não estudou o Alcorão a fim de refutar e contestar a doutrina e religião que as igrejas cristãs sustentam, junto com outros livros profanos, dos quais as pessoas devem se abster em questões religiosas, de acordo com a doutrina de São Paulo. 22. Item, se o referido livro Alcorão não é um livro ruim, cheio de blasfêmias”.

[71] Veja as obras de James Anthony Froude, Calvinism: An Address Delivered at St. Andrews, 17 de março de 1871, (Nova York: Charles Scribner & Co., 1871), e especialmente o grande missiologista Samuel Zwemmer, “Calvinism and Missionary Enterprise” em Theology Today, 7: 2 de julho de 1950, 206-216.

[72] Joannis Calvini, Opera Quae Supersunt Omnia, Wilhelm Baum, Eduard Cunitz e Eduard Reuss (Ed.) (Neukirchen, Alemanha: Neukirchener Verlag der Buchhandlung des Erziehungsverein 1863-1900). Vol. 54: 138. Doravante denominado CO.

[73] CO 52:197.

[74] CO 53:340; também cf. CO 47:335.

[75] Will Herberg, um teólogo judeu, corretamente argumenta que, na América, todos, de maneiras significativas, sejam judeus, católicos ou protestantes, são vítimas dessa teologia dupla-predestinarista e sua justificativa, cf. Will Herberg, Protestant, Catholic, Jew: An Essay in American Religious Sociology [Protestante, Católico, Judeu: Um Ensaio em Sociologia Religiosa Americana] (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1955).

[76] Trans. por T. Parsons (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1976).

[77] Cf. Dorian Jones, “Islamic Calvinism and industrialisation meet in Turkey” (17 April 2007) em http://www.commongroundnews.org/article.php?id=20708&lan=en&sp=0, e Aasiya Lodhi, “Turkish Toil Brings New Form of Faith” (13 March 2006) em http://news.bbc.co.uk/2/hi/business/4788712.stm, acessado em 27/9/15.

[78] Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes [Europeus Patrióticos Contra a Islamização do Ocidente].

[79] Embora quando essa restrição (válida contra a difamação de um povo ou indivíduos, ou seja, judeus) for expandida para cobrir o estado, ou seja, Israel, moral ou não, isso implica retirar o direito do próprio discurso ético, que é uma condição sine qua non para a moderna democracia e para a governança transparente e responsável. Portanto, se qualquer crítica ao estado de Israel, mesmo por seus atos mais imorais, for vista como um julgamento pejorativo contra os judeus, haverá uma séria confusão de categorias. Se isso não for contestado, a própria questão da justiça restaurativa que está por trás dessa posição será seriamente prejudicada, senão totalmente anulada, e a ideia do pensamento crítico virtuoso e da própria cidadania será seriamente questionada. A falta desses direitos foi fundamental para se gerar os crimes contra os judeus em primeiro lugar. Portanto, quando uma crítica ao estado é vista como antissemita e toda a conversa crítica é encerrada, temos uma grande confusão entre o povo (demos) e o estado (basileia). Isso restringe o valor central da capacidade do discurso moral contra o estado e seu alcance coercitivo e mortal.

[80] Ver: “Jewish Population of Europe in 1933: Population Data by Country” na Enciclopédia do Holocausto do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em http://www.ushmm.org/wlc/en/article.php?ModuleId=10005161.

[81] Sobre o envolvimento abrangente da população alemã nesse período moralmente escuro da história alemã, consulte Daniel J. Goldhagen, Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust [Carrascos Determinados de Hitler: Alemães Comuns e o Holocausto] (Nova York: Alfred A. Knopf, 1996).

[82] Veja seu Truth and Method [Verdade e Método] (New York: Seabury Press, 1975).

[83] Após muita pesquisa e desafios aos meus alunos de pós-graduação, a primeira referência a qualquer coisa judaico-cristã que consegui encontrar foi de 1939. Antes disso, esse conceito parece não existir e, sempre que o judaísmo era mencionado, era feito de maneira muito negativa.

Compartilhe!
0
    0
    Seu carrinho
    Seu carrinho está vazioVoltar para as compras