Conselhos de uma senhora missionária

Em entrevista, Antonia Leonora van der Meer fala sobre liderança feminina, formação teológica deficitária, retorno do campo, humildade…

Com ousadia (de Deus), Antonia Leonora van der Meer deixou o Brasil para ser um sinal do reino de Deus em Angola em 1985, quando a guerra civil que assolou aquele país estava em curso. Nos 10 anos que passou na África, também atuou em Moçambique. Carinhosamente chamada de Tonica, podemos dizer, por sua experiência de vida, exemplo, currículo e obras publicadas, que se trata de uma senhora missionária!

Lançou, pela Editora Ultimato, os livros Eu, um Missionário?Missionários Feridos e O Estudo Bíblico Indutivo, além de ser autora de outras obras e de vários artigos em publicações missiológicas. Mestre em Teologia e doutora em Missiologia (Asia Graduate School of Theology, Filipinas), também serviu por 17 anos no CEM – Centro Evangélico de Missões (Viçosa, MG) como professora, deã e diretora. Hoje, é uma dos líderes do Departamento de Cuidado Integral do Missionário (CIM Brasil) da AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras, e atua em sua igreja local de origem em Carambeí (PR), de onde nos concedeu a seguinte entrevista.

Martureo – Os currículos dos cursos de missões poderiam ser melhores? Como?

Tonica – Poderiam, claro. Gostaria de ver as instituições de preparo missiológico apoiando-se mutualmente, com mais integração entre elas. Há alguns programas fortes na área antropológica, outros, na área de cuidado missionário. Existe, dentro da AMTB, o Departamento de Educação Missiológica (DEMI); talvez ele pudesse estimular o intercâmbio entre as instituições.

Martureo – Ainda hoje se discute se a missão de Deus engloba, além de proclamação e ensino, promoção da justiça, responder às necessidades humanas e cuidado com a criação. Que pensa sobre isso?

Tonica – Para mim, a missão, tal como Jesus mostrou por meio de seus atos e palavras, é integral. Como igreja, somos chamados a nos preocupar com e a atender as necessidades como um todo: proclamar o evangelho, discipular, cuidar da saúde, garantir a segurança alimentar, atuar em casos de injustiça… Em Angola, minha atuação foi dessa forma. Fui enviada para trabalhar com estudantes e ajudar em seminários teológicos, mas também visitava vítimas da guerra no hospital, sempre com duas sacolas com doações. Era uma carência sem fim. Com o tempo, conseguimos uma temporária ajuda da ONU. Também atuei com pessoas com deficiência e hoje há uma associação fruto disso, dirigida por pessoas com deficiência, o que me dá muita alegria.

Martureo – A abordagem missiológica baseada em ‘Grupos Culturais Homogêneos’ e povos não alcançados ainda é a mais adequada?

Tonica – Não é, mas não deve ser totalmente descartada. Há grupos etnolinguísticos que ainda não foram alcançados e que não podem ser negligenciados em termos da tarefa global. Houve, inclusive, grande avanço quanto aos métodos de tradução da Escritura: é possível fazer uma tradução em 5 ou 10 anos. No Brasil e em outras partes do globo, por exemplo, as pessoas com deficiência auditiva ainda precisam ser alcançadas. Mas a abordagem precisa ser mais heterogênea, levar em conta a realidade da globalização, das cidades, das migrações, dos refugiados. Há um desafio enorme em relação à juventude globalizada, e eles, bem como os adolescentes e as crianças, muitas vezes não são levados em conta em termos de estratégia global.

Martureo – Da época em que você foi para o campo até hoje, mudou algo quando o assunto é missões na igreja brasileira?

Tonica – Mudou bastante. Quando fui, na década de 80, era uma dos poucos brasileiros que havia em um campo no exterior, em um país marxista e em guerra. Nunca lutei para buscar sustento, as pessoas vinham de várias igrejas querendo ajudar. Hoje, o número de missionários é muito maior, e conseguir sustento, mais complexo. Desde que voltei de Angola, em 95, também tenho falado sobre o que podemos melhorar. Por exemplo, várias agências missionárias pensam que não há preocupação em mandar negros para Angola, mas o negro brasileiro não é africano. É necessário compreender a necessidade de se identificar com a cultura local, de se encarnar, e a maioria dos missionários não tinha uma formação para isso, mas creio que está melhorando. A forma como se trabalha no Brasil não é a como devemos fazer fora do País. Falta preparo para que saibam como trabalhar em uma cultura diferente.

Matureo – Falta coalização dos cristãos brasileiros para a tarefa global?

Tonica – Falta, sim. Há um grupo de líderes de missões no WhatsApp, um grupo de oração, encontros etc., mas há ainda há dentro desse grupo “facções” que são mais influentes e aceitas que outras. Muitas denominações ainda enfatizam muito “o meu jeito”, que acreditam ser superior ao de uma outra igreja ou denominação. A obra missionária tem de enfatizar o reino de Deus, não essa ou aquela igreja ou essa ou aquela denominação. Em Angola, devido à guerra, sempre nos apoiamos mutualmente, sem se importar com rótulos.

Martureo – A igreja brasileira poderia enviar mais missionários? Se sim, por que não o faz?

Tonica – Espero que sim, oro por isso. Quero que o Brasil envie bem mais missionários! Em um livro sobre os 100 anos de missão no Brasil com o qual contribuí com um capítulo há cerca de 10 anos, falava-se de 34 mil missionários brasileiros, mas essa informação é equivocada. A pesquisa de 2017 da AMTB afirma que a força missionária brasileira somava, à época, cerca de 15 mil obreiros. Pelo tamanho da igreja evangélica no País, esse número certamente poderia ser maior. Uma das coisas que fazem falta são os seminários teológicos darem uma maior ênfase para missões. Em programas de quatro anos de um curso de Teologia, em alguns casos, há apenas uma matéria introdutória sobre missões. E são nesses seminários que se formam os pastores e líderes da igreja brasileira. Fico muito feliz com movimentos entre jovens, como o Vocare, estive nos cinco encontros presenciais em Maringá (PR). Há jovens que se interessam, mas se a igreja não investe neles, não os apoia, a maior parte do entusiasmo arrefece. As igrejas precisam ampliar a visão. Os candidatos se queixam muito de as igrejas não terem visão missionária. Pertenço a uma igreja em que a visão missionária é estreita. Não recebi apoio dessa minha igreja, mas da ABU, para ir para o campo, mas sempre mantive contato com a igreja. Faz 8 anos que voltei para minha cidade de origem – Carambeí (PR) – com o intuito de fomentar a visão missionária nessa minha igreja. Faço parte da Comissão de Evangelismo e Missão ali, cujo foco é o evangelismo local, e estou terminando o segundo ano como presbítera de missão. O título parece encorajador, mas tem pouca influência. Há um jovem pastor de uma igreja irmã que está na Espanha. Conseguimos que ele falasse em nossa igreja, e todos gostaram, acharam fantástico. Seria uma das primeiras vezes que alguém está sendo apoiado pela igreja para um trabalho transcultural. Há hoje dois grupos de oração por missões. Como se diz: de grão em grão, a galinha enche o papo. Fico feliz quando vejo um passo positivo.

Martureo – Ser mulher e missionária ainda é difícil?

Tonica – Ainda é, sim. Conheço casos de mulheres solteiras que estão há muitos anos no campo e, quando chega uma nova família missionária para se juntar ao trabalho, a liderança é transferida para o marido do casal novo. O pensamento de que a liderança precisa ser masculina está mudando pouco a pouco, mas a ideia de que ela é mais forte ainda prevalece. O paradoxo é que, na prática, em contextos desafiadores, em geral há mais mulheres do que homens, isso segundo pesquisas realizadas pela Comibam e por agências enviadoras. Da parte dos países que recebem missionários, há uma valorização das mulheres. Creio que isso se deva, também, ao fato de os líderes locais masculinos se sentirem menos ameaçados pelas mulheres. A mulher missionária não representa uma ameaça, salvo se tiver um perfil muito altivo.

Martureo – Como fazer um bom processo de retorno do campo?

Tonica – É necessário, desde o começo, como estrangeiro, trabalhar para transferir a liderança para a própria terra, de forma que não haja dependência de alguém de fora. Isso significa não criar grandes estruturas físicas, algo que seja autossustentável para a realidade local. Difícil o missionário voltar sem dor no coração. Aprendemos a amar determinado povo, e voltar é muito dolorido. Passei um tempo cheia de muita dor, um tipo de luto. Por outro lado, saí de bem com as pessoas com que eu trabalhava, com despedidas significativas, palavras de gratidão e presentes. Ainda visito Angola, onde me chamam de Mamá Tonica. Não saia em conflito. Claro, às vezes o missionário tem de sair às pressas, seja por uma situação de guerra, perseguição ou negação do visto. Quanto à igreja enviadora, ela precisa se organizar para receber o missionário que retorna. Já vi casos de cortarem o sustento de forma imediata de obreiros que retornaram até por conta de doença. Como alguém que acabou de voltar pode, de uma hora para outra, ter sustento? Isso é muito triste. Eu fui enviada pela ABU e retornei em um mês de agosto, lembro que eles mantiveram o compromisso financeiro até dezembro para que eu pudesse me readaptar e me recolocar aqui no Brasil. Outra coisa boa de se fazer quando um missionário retorna é o que chamamos em inglês de debriefing, – uma pessoa ou poucas pessoas se sentarem com ele e deixarem ele falar tudo o que precisa para que supere as lutar e desafios.

Martureo – Que recomendações daria para um jovem que está considerando ir para um contexto transcultural?

Tonica – Em primeiro lugar, vamos orar por isso. O ideal é você amadurecer essa ideia, conversar com pessoas mais maduras em sua igreja. Se isso for de Deus, o sentimento vai se fortalecer, e as portas vão se abrir. Busque treinamento, fale com agências que trabalham no tipo de contexto em que pretende trabalhar. Não é necessário ter pressa, preparo é fundamental. Deus gastou 40 anos para preparar Moisés para sua tarefa, é preciso amadurecer. Enfim, encorajo, mas falo de apoio em oração e de não ter pressa. Ir com atitude humilde, não achando que sabemos mais, também é imprescindível.

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