Processos e métodos: faltam na Igreja brasileira em Missão?

O desafio transcultural dentro da própria equipe e a ajuda que atrapalha, até machuca

Gabriel Louback

Outro dia, em um bate-papo com um missiólogo, foi lançada para mim a pergunta: “Qual é, na sua opinião, um dos principais problemas relacionados à igreja brasileira, missões e organizações missionárias?”.

Ao longo de minha formação missiológica, uma das anedotas que ouvi em aulas sobre contextos transculturais tem como personagens missionários brasileiros e americanos. Na história, eles trabalhavam juntos em uma comunidade de aldeia. Diziam os americanos: “Os brasileiros não trabalham, passam o dia todo apenas passeando pra lá e pra cá, tomando chá com os locais, jogando futebol com eles, rindo, conversando, comendo. Enquanto isso, nós, americanos, realmente trabalhamos. Cuidamos do escritório, estudamos a língua nativa e traduzimos trechos da Bíblia para levar o Evangelho àquele povo. É um absurdo!”. De outro lado, diziam os brasileiros: “Os americanos não se envolvem na comunidade, não vivem a cultura, não aprendem os costumes, não fazem parte do dia-a-dia daqueles com quem vieram compartilhar as Boas Novas. Vivem só no escritório, com a cara enfiada em livros, sem realmente conectarem-se à vida da aldeia. Parece que não se importam com as pessoas, apenas com o trabalho, alvos e metas. Não demonstram preocupação em alcançar os corações dos locais com o Evangelho. É um absurdo!”.

Sinto-me privilegiado pela formação teórica que tive e, ainda mais, pelas inúmeras experiências que vivenciei. Tive a oportunidade de ter um chefe e um colega de trabalho americanos, e isso me ensinou muito a sempre considerar essa anedota como algo real e prático, quase que como uma parábola.

Ao mesmo tempo, é sabido que uma das principais fontes de crise no campo são os conflitos transculturais, e aqui não me refiro aos de missionários com os locais, mas a conflitos entre os membros de equipes transculturais de missionários, como no caso dos americanos e brasileiros da anedota.

Apesar de a história da igreja evangélica brasileira ter uma forte influência americana – e eu acreditar também que nisso residam alguns dos deslizes que cometemos como igreja e em nossa missiologia –, temos muito a aprender com nossos irmãos dos Estados Unidos e Europa com seu jeito mais estruturado e planejado de trabalho. Com nosso sangue latino, temos uma efervescência em nossa alma, um desejo ardente de para fazer e acontecer, de sair, de nos envolvermos, de nos jogarmos. Muitas vezes, para nós, processos e métodos atrapalham e atrasam, mas é justamente por meio deles que damos passos mais seguros e caminhamos mais longe do que quando seguimos apenas o nosso coração.

Um livro que aborda esse assunto é When Helping Hurts (Quando Ajudar Machuca)[1], de Steve Corbett e Brian Fikkert, dois autores, pasmem, norte-americanos. Foi escrito e pensado para o contexto da Igreja dos EUA, mas aplica-se de muitas formas à Igreja brasileira. Ele não trata, especificamente, da dicotomia planejamento versus impulso, mas foca no impulso do bem, no pensamento “precisamos fazer alguma coisa, nem que seja qualquer coisa”, mostrando que, na esmagadora maioria das vezes, seria melhor fazer nada do que “qualquer coisa”; que, ao tentar ajudar, podemos machucar ainda mais as pessoas.

O livro parte do exemplo pessoal e prático dos autores, que atuam na área de desenvolvimento comunitário (microcrédito) e são professores no Chalmers Center for Economic Development, instituição que capacita a Igreja para agir em contextos de pobreza. Por algum tempo, trabalharam em locais de vulnerabilidade na África, como na favela de Kibera, em Nairóbi (Quênia). Eles relatam como o trabalho de igrejas e missões americanas, ao longo dos anos, acabou causando mais mal do que bem às comunidades que tentavam ajudar, apensar do enorme coração e de tamanha boa vontade.

A obra traça, então, uma jornada bíblica a respeito de Missões, abordando o papel de Israel no Velho Testamento como nação escolhida e, principalmente, posicionando a si próprios dentro do propósito de quebrar as correntes de pobreza que aprisionam milhões de pessoas ao redor do mundo. Para tanto, trata de uma questão simples, mas profunda: como definimos pobreza?
Se dizemos que pobreza é falta de dinheiro, então um projeto de microcrédito e poupança resolveria? Se pobreza é falta de saúde básica, então hospitais seriam suficientes? Se a falta de educação é o que define a pobreza, construir escolas é a resposta? Se acreditamos que pobreza é somente o resultado do pecado, basta pregar o Evangelho e tudo está resolvido?

Corbett e Fikkert aprofundam o tema a ponto de tocar nosso coração e alma, mostrando como a Queda, no Jardim do Édem, corrompeu várias dimensões do relacionamento do ser humano – com Deus, com ele mesmo, com o próximo e com a Criação –, com consequências sérias e profundas até hoje.

Devemos reconhecer e lidar com nosso complexo de salvador (God complex, em inglês), que nos leva a crer que é melhor fazer qualquer coisa a não fazer nada, que somos nós que temos a resposta e sabemos de tudo, que a nossa maneira é a correta e a mais apropriada para executar determinada tarefa; e a dizer: “Que absurdo esses americanos que não se integram e não saem do escritório!” (ou o contrário, claro).

O livro, contudo, não aponta somente os erros cometidos pelos autores e pela igreja da qual fazem parte – e que em muitos aspectos são parecidos com os erros que cometemos como Igreja brasileira –, como a prática de socorro imediato quando a verdadeira ajuda seria promover o desenvolvimento sustentável (o famoso “sopão” sem lidar com a questão da situação de rua, por exemplo), ele apresenta saídas, ferramentas e abordagens diferentes das que estamos acostumados para enfrentar principalmente as questões que envolvem a pobreza (suas raízes, consequências e possíveis ações).

A leitura oferece a oportunidade de uma autoanálise e autocrítica bem objetivas e claramente inspiradas e guiadas pelo Espírito. Cobertt e Fikkert são usados por Deus para trazer questões pessoais e profundas nossas à luz. Fazem isso ao expor nossa própria pobreza e dependência Dele, sugerindo caminhos e possibilidades de cumprirmos Seu chamado de forma eficaz, de maneira que causemos o menor prejuízo possível em seu avanço.

Enfim, minha resposta para a pergunta do primeiro parágrafo vai na linha de que temos muita vontade e pouca orientação, muito impulso e pouco planejamento, muito coração e pouca paciência. Abrimos mão de treinamento e planejamento longos pois “tem gente precisando”, deixamos de lado cursos e projetos de longo prazo pois “as coisas não podem continuar assim”.

Se nossa crítica ao modo de atuar do americano e do europeu baseia-se no fato de que “planejam tanto e tão bem que não existe espaço para o Espírito”, em nosso ímpeto de “fazer alguma coisa, qualquer que seja”, atropelamos tudo à nossa frente, não deixando espaço para o Espírito agir nos processos e no curso das coisas que Deus faz enquanto estamos nessa jornada.

O que temos feito de errado? Achar que sabemos tudo. Acredito na riqueza e profundidade que existem em uma equipe missionária transcultural, basta ver as diferentes origens e culturas dos discípulos que Jesus chamou para caminhar consigo e formar sua equipe apostólica. Como brasileiros, acredito que precisamos dar um passo atrás e olhar para dentro de nós mesmos, ver o que está quebrado em nós antes de nos jogarmos na empreitada de “consertar os outros”. Precisamos ter a humildade para reconhecer que temos muito o que aprender. Na verdade, precisamos entender que sempre teremos muito o que aprender pelo resto de nossas vidas. Acredito que precisamos aprender a sermos aprendizes, a realmente sermos discípulos que seguem os passos daquele que é o único Mestre.

 

Sobre o autor
Gabriel de Oliveira Louback é jornalista com especialização em Missiologia no Gå Ut Senteret (Noruega), tendo atuado em Missões com sua profissão na Índia, Brasil e Itália. Fez parte da MAIS (Missão em Apoio à Igreja Sofredora) por 5 anos e, atualmente, é missionário com a AIM/Miaf (Missão pelo Interior da África). Está em preparo para integrar o time de storytellers da organização em Nairóbi (Quênia), com sua esposa, Carolina Rehder, e sua filha, Manuela.

 

[1]Publicado em 2009 por Moody Publishers.

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