A relação entre igrejas enviadoras e uma família missionária

Após 30 anos servindo no norte da África, um exemplo de retorno do campo a ser seguido

Muito se discute sobre o retorno precoce do campo (antes de três anos) e suas causas: falta de um preparo adequado ou de acompanhamento, rupturas na relação com a agência missionária ou igreja(s) enviadora(s) e assim por diante.

O relato a seguir é o de um bom exemplo a ser seguido, principalmente no que se refere à relação da(s) igreja(s) enviadora(s) com a família missionária. Após 30 anos no exterior servindo em ministérios transculturais, BS e a esposa BI (os nomes deles foram omitidos por precaução pelo contexto sensível da região em que viveram) estão de volta à terra natal, o Brasil, e contam, não sem emoção, como foi deixar o norte da África.

Que alegria desfrutarmos novamente do convívio da família, estarmos perto (fisicamente) de nossa comunidade de fé, vivermos em nosso país “de nascimento”. Antes de relatar nossa experiência positiva de retorno do campo, vale relembrar de forma breve o contexto de nossa saída do Brasil, em 1988. Foi um momento importante para o despertamento missionário brasileiro. Igrejas no País todo organizavam conferências missionárias, havia diversos movimentos de intercessão pelos povos não alcançados, e os cristãos brasileiros eram desafiados a ir a esses povos (e muitos, como nós, disseram: “Vou!”). Em 1987, houve o histórico I Congresso Missionário Ibero-americano (COMIBAM ’87), em São Paulo, evento catalizador desse despertar.

Impulsionados pelo desejo de servir entre povos não alcançados e com o apoio de um grupo de igrejas brasileiras, voamos para a Espanha, e dali fomos para o norte da África aprender o árabe e conviver em uma sociedade islâmica moderada. Nosso objetivo era espalhar, de forma respeitosa e contextualizada, a mensagem do evangelho: Jesus, o Messias.

Foram, então, cerca de 30 anos no norte da África (com uma passagem pelo Oriente Médio), onde nos esforçamos para espelhar o evangelho em palavras e ações. Experimentamos a alegria de ver pessoas indo a Jesus e participar de seu discipulado. Vivemos a dureza de fazer parte da minoria cristã diante de uma maioria tolerante e, paradoxalmente, opressora. Acompanhamos irmãos e irmãs que eram perseguidos pelas autoridades e famílias por causa da fé em Jesus. Por muitos anos, apoiamos irmãos que viviam em pequenas cidades, levando comunhão e amizade em meio ao seu isolamento.

Durante essas décadas, viemos regularmente ao Brasil. Nossas igrejas enviadoras mantiveram contato constante conosco, e nos apoiaram em toda nossa jornada. A cada vinda, sentíamos o carinho das igrejas e de irmãos e irmãs individualmente que, de muitas formas práticas, nos animavam a seguir. Muitas vezes, percebíamos que nossos irmãos não entendiam nossa realidade. Isso era normal, pois a realidade de se viver no norte da África muçulmano era muito diferente da brasileira. Mas isso foi paliado porque nossas igrejas se esforçaram para conhecer mais nosso dia-a-dia, visitando nossas casas “norte africanas” em duas ocasiões.

Em 2018, começamos a pensar em voltar ao Brasil. A maioria dos missionários que partem têm alguma ideia do tempo que pretendem permanecer no campo, têm um alvo. Hoje, os projetos, em geral, contemplam prazos mais curtos. Nós saímos na época das missões pioneiras, e partimos para ficar bastante tempo mesmo. Não tínhamos ideia de que seriam 30 anos, mas estávamos abertos a isso. No início, dizíamos às pessoas que ficaríamos por volta de 10 anos. Mas há muitos fatores envolvidos nisso: sustento, visto, a igreja local ou a missão pedindo pra retornar, saúde, guerras…

Bem, estávamos no campo há 30 anos, e veio uma inquietação – almejávamos algo novo em termos de ministério. Além disso, nossos pais já estavam mais velhos, e queríamos participar do cuidado deles nessa fase. Some-se a isso o desejo de estar mais perto de nossa igreja local, pois, por muito tempo, moramos em lugares em que não havia sequer uma igreja estabelecida. Conversamos, então, com os pastores do grupo de igrejas que nos apoiam desde que saímos do Brasil, e, aos poucos, fomos planejando nosso retorno. Paulatinamente, transferimos nossas reponsabilidades na ONG com a qual estávamos envolvidos, conversamos com parceiros locais, de forma que a nossa saída não prejudicasse o trabalho da equipe que ficou.

Iniciamos, em seguida, a parte mais difícil: a despedida dos nossos companheiros na ONG e de amigos e irmãos locais e estrangeiros em várias cidades. Voltar ao Brasil nos dava alegria – retornaríamos para o convívio de pessoas amadas –, mas dizer adeus a lugares e a pessoas que fizeram parte de nossa vida por tantos anos (e sem termos a certeza de que voltaríamos a nos encontrar!) foi duríssimo. Claro que continuamos a sustentar vínculos e hoje, com as facilidades tecnológicas, é possível manter contado sem problemas. Muitos missionários voltam em viagens de curto prazo para visitar líderes que deixaram no campo, encorajar o trabalho que continua, isso é saudável e interessante. Agora, não se pode viver em um lugar com a cabeça em outro, é necessário um equilíbrio. Já que voltou, tem de viver a realidade de onde se está.

Antes de partir, fizemos um curso de transição para quem está deixando o campo. Caminhamos pela cidade, despedindo-nos de lugares que fizeram parte da nossa rotina por anos: lugares públicos, associações parceiras, ruas, escadarias, cafés onde encontrei amigos e irmãos inúmeras vezes para conversar sobre a vida e sobre temas espirituais. Olhando as montanhas ao redor, pudemos dizer adeus ao norte da África do qual já fazíamos parte. Minha esposa fez um diário, registrando a experiência da preparação da partida, os sentimentos, dores e expectativas.

Visitamos outras cidades, e pessoas de regiões mais distantes vieram se despedir. Visitamos irmãos que vivem isolados, sem comunhão, uma vez mais, como fizemos por várias vezes anteriormente, mas, dessa vez, para dizer adeus. Infelizmente, não pudemos encontrar todos,  e de alguns precisamos nos despedir por telefone. Houve despedidas oficiais – como a da ONG, da equipe, da igreja local e as de parceiros locais – e informais – com amigos (alguns vieram especialmente para dizer adeus) e vizinhos. Tivemos, ainda, a alegria de sermos “enviados” pela igreja local de volta ao nosso país.

Participamos de um programa chamado “Plano de Vida e Ministério”, organizado pela nossa missão. Isso nos ajudou a traçar planos e metas concretos e realistas a médio prazo quando do regresso ao Brasil. Participamos de um curso on-line, o “What´s Your Pathway”, que nos auxiliou a processar todos as mudanças que estavam acontecendo, com dicas práticas para a transição: escrever o diário, sonhar ou imaginar o que está por vir, cuidar-se, rir, criar estruturas temporárias e dar a si mesmo tempo para experimentar.

Começamos “a mudança” em março de 2019, inventariando nossos documentos, papéis, livros, roupas e móveis. Separamos o que teríamos que deixar, doar ou vender e o que trazer para o Brasil. Desfizemo-nos dos nossos móveis, entregamos a casa alugada, preparamos as malas e, finalmente, chegou o dia de embarcarmos e voarmos para São Paulo. Voltamos com seis malas que levamos no avião e outras três grandes, cheias de livros, que despachamos como carga. Os nossos pertences estavam ali, a maioria itens que nos traziam memórias dos últimos 30 anos, os livros e algumas peças de roupa. Partimos com o coração cheio de gratidão pelo que Deus fez em nossas vidas.

Ao desembarcarmos no Brasil no dia 17 de julho de 2019, começou um período em que vimos como Deus cuidava de nós na nossa reentrada por meio de nossas igrejas enviadoras. Um casal querido e um grupo de irmãos e irmãs de São Paulo nos receberam e nos ajudaram a liberar as malas de livros no aeroporto.

O casal citado nos emprestou uma casa de campo para descansarmos alguns dias antes de viajarmos para a nossa casa no interior do estado. Ali, pudemos aliviar o estresse dos últimos meses de despedidas e preparação da viagem ao Brasil. Foram dias em que pudemos elaborar que tínhamos encerrado uma fase na nossa vida e começado outra.

Finalmente, viajamos ao interior com nosso pastor, que veio nos buscar com uma caminhonete alugada por ele especialmente para transportar a gente e a nossa bagagem.

Em 2018, em resposta à nossa oração, uma querida irmã nos indicou e negociou por nós o preço de um apartamento no interior de São Paulo. Outra querida amiga, nossa procuradora, comprou o imóvel para nós. Essas amigas trabalharam duro com irmãos e amigos de três igrejas e, ao chegarmos, encontramos maravilhosas surpresas: nosso apartamento mobiliado e equipado, e um grupo querido nos aguardando.

O corpo diaconal de nossa igreja organizou uma fantástica recepção de boas-vindas, com uma grande festa e mais presentes! Nossa igreja fez, ainda, um esforço além do normal, uma espécie de crowd funding (uma “vaquinha”), e nos comprou um carro. A Deus o louvor, e, às igrejas e irmãos, muita gratidão.

Isso tudo nos mostra como Deus cuida de nós. O serviço prestado a nós, bem as coisas materiais, são importantes, mas o mais valioso é o que eles representam: a provisão de Deus na forma de pessoas que pensam em nosso bem-estar. Nós nos sentimos realmente cuidados.

Agora, usamos nossa experiência transcultural em um projeto de nossa igreja para abençoar a nossa cidade: o apoio a imigrantes e refugiados aqui e na nossa região. O mesmo grupo de igrejas que nos sustentava no campo continua a nos sustentar aqui para realizarmos esse trabalho, que lida com refugiados especialmente da América Latina e Haiti. Mas muitos missionários, quando voltam do campo, precisam rever como obtém seu sustento, isso é caso a caso. Temos a oportunidade e a disciplina de, há vários anos, poupar para nossa aposentadoria, e estamos perto de obtê-la. Quanto à nossa atuação agora, podemos, ainda, ajudar irmãos e irmãs que estão se preparando para serem testemunhas de Cristo em um contexto transcultural. Este próprio texto é um pequeno exemplo disso. A experiência acumulada pode ser útil se quiser ser aproveitada.

Algumas lições que aprendemos: deixar o norte da África foi uma experiência doce-amarga. Amarga porque partir é difícil, parte da nossa vida ficou para trás. Mas o planejamento da transição tornou a despedida suportável. Doce pois continuamos a experimentar a fidelidade de Deus a cada dia nesta nova fase que começou.

Uma vez mais, vemos como a relação com as igrejas enviadoras é importante. O trabalho transcultural é de Deus, mas é feito por meio da parceria igrejas-obreiros. Por isso, é preciso cuidar dessa relação de forma intencional para que seja frutífera.

E, uma vez mais, aprendemos a lição: Deus é fiel.

A ele toda a glória.

 

Quer saber mais sobre o norte da África? Leia o post Tunísia, campo missionário.

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